Saúde e consumo: o hospital como lugar de produção de identidade

AutorKassia de Oliveira Martins Siqueira
Páginas213-229
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Revista de Ciências HUMANAS, Florianópolis, v. 51, n. 1, p. 213-229, jan-jun 2017
O objetivo deste artigo é problematizar a
relação entre saúde e consumo na política pública
de saúde. A metodologia utilizada é a pesquisa-
intervenção, ferramenta da análise institucional, em
que a pesquisa realiza-se a partir das experiências
vividas pelo próprio pesquisador. Como resultado
da problematização das minhas vivências na área
da saúde, destaco a importância da compreensão
das relações de poder que atravessam o cotidiano
hospitalar, no sentido de desnaturalizar a lógica da
saúde instituída como dever, possibilitando pensá-
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vinculam saúde e consumo.
Palavras-chave: saúde; consumo; identidade;
resistência.
The purpose of this article is to discuss the
relationship between health and consumption in
public health policy. The methodology used is the
intervention research, institutional analysis tool, in
which research is carried out from the experiences
of the researcher. As a result of questioning of my
experiences in health, emphasize the importance of
understanding the power relations involved in the
daily hospital routine, to deconstruct the logic of
health established as a duty, making it possible to
think of it in a philosophical way beyond practices
that link health and consumption.
Keywords: health; consumption; identity; strength.
Introdução
Estamos envoltos numa severa malha de deveres e dela não
podemos sair – nisso precisamente somos também nós, “homens
do dever”! Ocasionalmente, é verdade, dançamos com nossas
“cadeias” e entre nossas “espadas”; com mais freqüência, não
é menos verdade, gememos debaixo delas e somos impacientes
com toda a secreta dureza do nosso destino. (NIETZSCHE,
2005, p. 118)
Em um mês de dezembro no hall de entrada de um hospital de câncer
situado no Rio de Janeiro, encontrava-se uma grande árvore de natal enfeitada
com luzes pisca-pisca e laços vermelhos, contrastando com o cheiro de
hospital e com o frio que aquele ambiente costuma provocar.
Nos corredores, pessoas passavam de um lado para o outro. Adultos e
crianças. Muitos sem cabelo, alguns com feridas no rosto e pescoço, cobertas
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Saúde e consumo: o hospital como lugar de
produção de identidade
Health and consumption: the hospital as a place of
identity production
http://dx.doi.org/10.5007/2178-4582.2017v51n1p213
Kassia de Oliveira Martins Siqueira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/RJ, Brasil
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SIQUEIRA, Kassia de Oliveira Martins. Saúde e consumo: o hospital como lugar de produção de...
usando roupas brancas - já que é obrigatório o uso de jaleco branco para
grande parte dos que atuam na assistência aos “pacientes”.
Foi nesse cenário que passei a atuar como assistente social, quando fui
transferida, por solicitação minha, de outra unidade hospitalar pertencente a
esse mesmo hospital, que tratava apenas de pessoas com câncer de mama. Ce-
nário parecido com o que eu atuava antes, mas que se mostra ainda mais triste
pela presença constante de crianças com expressão de sofrimento ou em cadei-
ra de rodas, usando muletas e mesmo com partes de seus corpos amputados.
“A árvore de natal certamente está ali por causa delas...”, pensei durante
o mês de dezembro. No hospital de adultos em que eu atuava antes, não havia
uma árvore grande como aquela. E no hall do 5º andar, onde as crianças
permanecem internadas, havia no chão uma cobertura de tecido imitando
neve, com uma arvore colorida por cima, um cercadinho em volta e diversos
e pequenos brinquedos espalhados pelo chão.
Apesar de aparentemente ser esse o objetivo, a presença da árvore de natal
parece não ter deixado o ambiente alegre, ao contrário, acentuou a tristeza,
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o auge do consumo e em que se propagam os ideais - pautados em modelos
- de vida, saúde, felicidade, longevidade e família, havia pessoas doentes e
morrendo. E elas eram crianças.
Aquelas crianças não estavam consumindo comidas natalinas ou
outras coisas que crianças consumiam naquele período do ano, mas elas
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institucionalizado. Nesse contexto, elas não eram apenas crianças, mas
também “pacientes”.
Assim, os “pacientes” - crianças e adultos - internados nesse hospital em
dezembro, estavam submetidos ao tratamento oncológico, em uma rotina em
que o espaço físico se divide em alas, leitos, medicações, cadeiras de ro-
das e higiênicas, poltronas para acompanhantes, salas de cirurgia, postos de
enfermagem, uniformes brancos, quartos com janelas fechadas cobertas por
película escurecida que muitas vezes inviabiliza até mesmo a entrada da luz
do sol.
O ar condicionado frio em demasia ressalta a rigidez do ambiente,
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intenso e a cor branca e bege das paredes da maioria dos quartos e das escadas
contribuía para a falta de alegria e potência no hospital, que muitas vezes
parecia hostil: sem cor, sem calor.
A preocupação com os registros e a relevância que a disciplina tem no
cotidiano hospitalar parece substituir a força das relações que poderiam se dar

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