Seduzidos pela Dama de Copas: aos inimigos... prisao? Afinal, podera o direito penal ser emancipatorio?/Seduced by the Queen of Hearths: for enemies... prison? After all, can penal law be emancipatory?

AutorVieira, Fernanda Maria Da Costa
CargoReport

Introducao

Um dos aspectos no campo juridico que mais instigam aos estudiosos da criminologia esta em decifrar o "enigma" da seducao punitiva que parece ser uma orientacao em escala global.

Se tomarmos como base o Brasil, por exemplo, veremos que as taxas de encarceramento durante o periodo compreendido entre 1990 - 2010 aumentaram em 450%, colocando-o no ranking de quarto pais em taxa prisional, ficando abaixo apenas com relacao aos Estados Unidos, China e Russia, ainda de acordo com os dados do site ingles King's College London--World Prison Brief (1), a porcentagem de crescimento da populacao carceraria no Brasil foi superior aos paises que estao na sua frente, levando a projecao de que a continuar tal porcentagem o Brasil em 2034 ira ocupar o primeiro lugar no ranking.

Nao se trata de um fenomeno isolado e acredito que nos diga muito sobre a atual conjuntura quando se analisa a questao penal. Mais instigante se torna o debate se pensarmos que durante as decada de 60 e 70, a prisao, bem como, o proprio estatuto punitivo eram vistos como um contraponto a democracia, e para muitos analistas a prisao seria um metodo punitivo em decadencia para o combate a criminalidade (Abramovay, 2010).

O que parece ter mudado nessas ultimas decadas e a transformacao do cenario atual aproximando esquerda e direita com um mesmo proposito: prisao!

Como entender que tantos movimentos sociais tambem se apoiem no discurso punitivo como mecanismo de efetivacao de direitos?

Varias sao as organizacoes populares que terao na sua agenda reivindicatoria o discurso da producao normativa como forma de criminalizar determinadas condutas discriminatorias como forma de reconhecimento do proprio movimento: como a reivindicacao da transformacao do crime de racismo em hediondo pelo movimento negro; da penalizacao mais rigorosa da violencia a mulher, luta travada pelo movimento de mulheres; da criacao do crime de homofobia como crime hediondo pelo movimento LGBTS; da criacao de um Tribunal Internacional Penal para os crimes cometidos por empresas Transnacionais, enfim sao muitos os exemplos das organizacoes que no embate cotidiano com as categorias que lhes oprimem, sejam homens, proprietarios rurais, brancos, vao reivindicar como mecanismo a conquista de direitos uma ampliacao do estatuto punitivo.

Seria de fato o direito penal o marco regulatorio garantidor de direitos? Um direito que se demarca por ser seletivo, portanto, direcionado a determinado setor social, voltado para domesticacao dos corpos rebeldes, como analisa Foucault, o melhor instrumento de efetivacao de direitos? Sera o direito penal mecanismo juridico contra-hegemonico das classes subalternas? Seria o direito penal emancipatorio?

Minha intencao esta em compreender nos limites desse trabalho essa seducao pelo direito penal, a Rainha de Copas do mundo de Alice, que a todos condenava com: Cortem-lhes a cabeca! Uma sentenca que parece aproximar Prospero e Caliban, representantes arquetipos de projetos antagonicos, expressao simbolica da relacao entre colonizador-colonizado, e que, no entanto, parecem partir de uma mesma matriz quando se refere ao discurso punitivo.

Assim, proponho-me a um dialogo com o texto do professor Boaventura de Sousa Santos, qual seja: Podera o direito ser emancipatorio? (2003), para problematizar a seducao penal e entender se ha de fato uma raiz emancipatoria no instrumento punitivo.

Torna-se necessario antes de adentrar no debate sobre as possibilidades do direito penal ser ou nao emancipatorio esclarecer os termos que adoto aqui no presente trabalho para a definicao de direito.

Isto porque falar em direito implica em reconhecer a polifonia que essa categoria produz. Diversos sao os estudos, dentre eles os que o prof. Boaventura Santos vem realizando, que dao conta da multiplicidade de eixos produtores de direito para alem da esfera estritamente estatal.

No entanto, para esse trabalho deter-me-ei na esfera estatal, entendendo aqui o direito como o positivado, aquele produto das instituicoes legais competentes para a producao normativa, em outras palavras: o direito advindo do Legislativo e sancionado pelo Executivo. Essa demarcacao se justifica em razao do campo de analise que me proponho aqui, qual seja: compreender os anseios dos movimentos sociais por novos marcos punitivos. Essa reivindicacao passa pela esfera estatal e necessariamente exige o marco legal positivado.

Nesse sentido, analisar o marco normativo estatal tambem estabelece como limite ao campo analitico a perspectiva de acao jurisdicional estatal. Pensar nas possibilidades de emancipacao do campo punitivo coloca em questao a propria acao judicial e a capilaridade desse poder (o Judiciario) diante dos novos conflitos que surgirao a partir dos tambem novos marcos normativos reivindicados pelos movimentos sociais, ainda que, mais adiante, haja o cotejo com outros modos de resolucao do conflito para uma melhor apreensao das possibilidades ou nao de se alcancar uma meta emancipatoria na logica punitiva.

Portanto, compreender a seducao que o campo punitivo exerce em muitas organizacoes sociais, especialmente pelas organizacoes que sao o publico-alvo das politicas persecutorias das instituicoes de seguranca, impoe a necessidade de se desvelar o que ha de novo no atual cenario, sendo esse o passo a seguir.

  1. A (des)ordem neoliberal: manda quem pode... Obedece quem tem juizo?

    A cidade esta a ser invadida

    Por caixoes enormes onde cabem cidades inteiras

    Os cidadaos perguntam-se:

    Como e possivel

    Depois de termos substituido

    As armas do despotismo

    Pelas armas da liberdade?

    Boaventura Santos--King-cidade in--Escrita INKZ

    Empreender uma analise entre o sistema punitivo e suas relacoes com a estrutura social nao e de fato um fenomeno novo. Rusche e Kirchheimer (1999) ja na decada de 30 deram conta dessas imbricadas relacoes entre o sistema produtivo e os reflexos no sistema punitivo. Em sua obra Punicao e estrutura social, os autores se debrucaram nos processos de transformacao da gestao do capital para compreender sua correspondencia com a estrutura punitiva, percebendo a partir desse ponto as novas configuracoes que a pena vai desempenhando na logica punitiva e, em especial, o papel que a prisao tera para o capital:

    O inicio do desaparecimento da reserva de mao-de-obra implicou um choque duro para aqueles que eram proprietarios dos meios de producao. (...) As classes dominantes nao deixaram de usar de todos os meios para superar as condicoes do mercado de trabalho. Uma serie de medidas rigorosas restringindo a liberdade individual foram introduzidas (1999: 42/43). Em termos de punicao, a resposta diante da escassa mao-de-obra sera a utilizacao da escravidao nas gales, deportacao e servidao penal. Surge assim a base do modelo de prisao que hoje conhecemos. Altera-se tambem a visao com relacao a pobreza: do olhar condescendente para um olhar penalista, criminalizadora da pobreza.

    Nao e outro motivo que leva a ideologia burguesa, calcada na nocao de trabalho como fonte geradora de riqueza, a justificar uma serie de medidas duras em termos penais, como as voltadas para punicao dos "mendigos", aqueles entendidos como trabalhadores aptos ao trabalho embora nao inseridos. A legislacao sera rigorosa aos que se mostram indolentes.

    A criacao das casas de correcao surge sob essa perspectiva de garantia de uma mao-de-obra de reserva, tendo em vista que, em sua grande maioria, esse exercito de reserva era altamente desqualificado, indisciplinado, de pouca serventia para a industria:

    A essencia da casa de correcao era uma combinacao de principios das casas de assistencia aos pobres (poorhouse), oficinas de trabalho (workhouse) e instituicao penal. Seu objetivo principal era transformar a forca de trabalho dos indesejaveis, tornando-a socialmente util. Atraves do trabalho forcado dentro da instituicao, os prisioneiros formariam habitos industriosos e, ao mesmo tempo, receberiam um treinamento profissional (1999: 62/63). A perspectiva analisada por Rusche e Kirchheimer traz uma preocupacao que se mantem na logica de funcionamento do sistema punitivo, qual seja: produzir para o individuo que se encontra no sistema carcerario uma condicao existencial "a niveis os mais baixos possiveis" (1999:64). Tal principio sera incorporado pelo sistema penal atual, conhecido como less eligibility, no qual se garante uma condicao existencial para o preso inferior ao destinado ao trabalhador livre de menor salario, como forma de se garantir um constrangimento ao cometimento da pratica delitiva.

    E esse caldo cultural que se constitui o que Alvaro Pires (2004) denomina como uma "maneira de pensar do sistema punitivo", o estabelecimento de uma racionalidade que se assenta a partir de meados do seculo XVIII. Essa racionalidade servira de base para a construcao de uma logica punitiva que se apoia na ideia da necessidade da pena como mecanismo de resolucao. Nao apenas cria obstaculos para se pensar em qualquer outra perspectiva que nao seja a pena, como incorpora o sentido de que havendo pena, deve haver tambem aflicao, remontando o passado inquisitorial que marca a formacao ocidental nos processos punitivos:

    A partir do seculo XVIII o sistema penal projeta um auto-retrato identitario essencialmente punitivo, em que o procedimento penal hostil, autoritario e acompanhado de sancoes aflitivas e considerado o melhor meio de defesa contra o crime ("so convem uma pena que produza sofrimento"). Esse nucleo identitario dominante da racionalidade penal moderna foi reproduzido incondicionalmente pelas teorias da pena aflitiva (da dissuasao ou da retribuicao), que, valorizando tao-somente os meios penais negativos, excluem as sancoes de reparacao pecuniaria ou outras alternativas, e ainda por certas teorias contemporaneas (por exemplo, as principais variantes da teoria da prevencao positiva). (2004: 43). Ha que se pensar diante do quadro estabelecido a partir do seculo XVIII, no que se refere a logica punitiva, os reflexos dessa...

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