O sentido de morrer com dignidade

AutorRodnei J. Paz
CargoAdvogado
Páginas1-28

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Introdução

A evolução da ciência1 tem tornado capaz o prolongamento da vida e/ou da morte a situações limites, o que fez ressurgir um acirrado debate ético-jurídico a respeito de princípios e valores consagrados ao longo dos séculos, como o direito à autonomia privada e o direito à vida. O embate entre o direito de decidir morrer sob determinadas circunstâncias e o direito/dever de viver, passa a ser visto à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, que fundamenta um novo movimento social conhecido como o direito de morrer com dignidade.

O filme Mar Adentro, ilustra bem essa tensão produzida pelas águas revoltas do direito de morrer com dignidade e o dever de lutar pela vida, com a história dePage 2 Ramón Sampedro que depois de ficar paraplégico, lutou durante 29 anos pelo direito de ser eutanatizado. Com esse propósito recorreu à Justiça, que recusou o seu pedido em várias instâncias, inclusive pelo Tribunal Constitucional Espanhol. O seu pedido também foi negado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pelo Rei da Espanha e pelo Comitê de Direitos da ONU.2

Finalmente, sua namorada Ramonia Maneiro, lhe prestou a ajuda final. Assim, Ramón Sampedro bebeu sozinho, com o testemunho de uma câmera filmadora ligada, o cianureto de potássio posto em um copo que foi deixado à cabeceira de sua cama3. Embora tenha se tratado de um verdadeiro suicídio assistido, e não de uma eutanásia propriamente dita, o caso serve para levantar questões éticas morais fundamentais sobre o direito à vida e à morte, especialmente a morte digna, além de importantes considerações a respeito da autonomia da vontade.

Portanto, o objetivo desse trabalho consiste em analisar o “novo” direito de morrer com dignidade, defendido por diversos movimentos sociais, por meio de categorias como a eutanásia, a distanásia e a ortotanásia. Para tanto, tomar-se-á como norte o princípio da dignidade da pessoa humana, para a partir dele, fazer-se uma reflexão ética filosófica sobre o sentido da vida e os valores que colidem ao abdicar-se do direito de viver.

Registre-se, desde o início, que temas como a vida e a morte ultrapassam as fronteiras do cartesianismo jurídico, razão pela qual justificamos o aporte teológico, psicológico e filosófico como necessário para uma compreensão dialética da temática. Ademais, aos temas dos “novos” direitos impõem-se uma (re)leitura interdisciplinar que dialogue com outras ciências, sob pena de deitarmos vinho novo em odres velhos.

1. Os “novos” direitos (?)

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Os novos direitos costumam ser associados pela doutrina à evolução linear e cumulativa das gerações4 e/ou dimensões dos direitos. Nesse sentido, a ordenação histórica dos direitos poderia ser classificada para fins didáticos em cinco grandes divisões: i) os direitos de “primeira dimensão”, que são os direitos de defesa em relação ao Estado e que tem especificidade de direitos negativos; ii) os direitos de “segunda dimensão”, ou os assim chamados direitos sociais, econômicos e culturais, que fundamentam o modelo de Estado de Bem-Estar Social; iii) os direitos de “terceira dimensão” também conhecidos como direitos meta individuais, coletivos e difusos; iv) os direitos de “quarta dimensão”, ou seja, os “novos” direitos referentes à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética; v) e os direitos de “quinta dimensão”, que são os novos direitos advindos das tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral.5

Dessa forma, os novos direitos estão ligados à evolução histórica produzida por um processo de permanentes reivindicações, conflitos e modernizações, e nesse sentido passam a ser sinônimos dos direitos de terceira, quarta e quinta dimensão. Essa evolução histórica traz novos desafios que põem em dificuldade as formas tradicionais do direito, seus institutos e modalidades. Daí Antonio Carlos Wolkmer afirmar que esses novos direitos produzem “uma verdadeira revolução inserida na combatida e nem sempre atualizada dogmática jurídica clássica”.6

Contudo, aqui nos interessa falar sobre os “novos” direitos de “quarta dimensão”, pois teriam vinculação direta com a vida humana, e todas as suas implicações como a reprodução assistida, o aborto, a eutanásia, a engenharia genética, entre outros.7 Ficando a temática do trabalho adstrita à eutanásia e as suas variações relativas ao direito de morrer com dignidade.

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Por essa sucinta apresentação dos “novos” direitos, fica claro que os direitos relativos à vida humana ganharam uma nova dimensão por meio do progresso das ciências biomédicas e as revoluções tecnológicas no campo da saúde humana, originando uma série de questões éticas que se desenvolvem entre a biologia, a medicina e a vida humana.8

Portanto, essa cadeia evolutiva do direito que acompanha a ciência e deságua na sustentabilidade da vida humana por meios artificiais, requer a construção de um “novo” paradigma jurídico capaz de captar as novidades e ao mesmo tempo assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana.

No entanto, antes de prosseguir, faz-se necessário esclarecer que a doutrina majoritária questiona a natureza dos “novos” direitos, que apesar de direitos de quarta e/ou quinta dimensão, acabam gerando efeitos de natureza individual, social e meta individual.9

Por essa razão Antônio Carlos Wolkmer destaca que “os ‘novos’ direitos nem sempre são inteiramente ‘novos.’”10 E no mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet vê com ceticismo a definição do que é um “novo” direito, por entender que muitas vezes o que está em jogo é a tutela da mesma dignidade e de direitos fundamentais já amplamente consagrados.11

Na verdade, a novidade não está no direito tutelado, mas sim no contexto em que este está inserido. Dessa forma, até mesmo direitos fundamentais clássicos como o direito à vida, acabam ganhando uma aparência de novo, em face dos avanços da ciência e da tecnologia.12

Nesse ponto Ingo Wolfgang Sarlet esclarece que “o que ocorre não é propriamente o reconhecimento (...) de ‘novos’ direitos, mas uma espécie dePage 5 transmutação hermenêutica, no sentido do reconhecimento de novos conteúdos e funções dos direitos fundamentais já consagrados.”13 Trata-se de uma constante lembrança de que os velhos problemas da justiça não lograram ser superados pelo avanço tecnológico e científico.14

Contudo, ainda que os chamados novos direitos não sejam inteiramente novos, com bem observa a doutrina, ainda assim é válida a conceituação apresentada por Antônio Carlos Wolkmer, segundo a qual os novos direitos devem ser compreendidos como

a afirmação contínua e a materialização pontual de necessidades individuais (pessoais), coletivas (grupos) e meta individuais (difusas) que emergem informalmente de toda e qualquer ação social, advindas de práticas conflituosas ou cooperativas, estando ou não previstas ou contidas na legislação estatal positiva, mas que acabam se instituindo informalmente.15

Trata-se, portanto, de um novo paradigma, muitas vezes voltado para temas tradicionais do direito, que se impõem em virtude das transformações políticas, sociais, culturais e tecnológicas. É como se velhos atores encenassem uma peça em um novo cenário. Por isso, na falta de uma terminologia mais adequada, valernos-emos da expressão “novos” direitos para representar os novos remendos deitados no velho e bom pano do direito.

2. A autonomia da vontade na relação médico-paciente

Os adeptos e defensores da eutanásia fundamentam o seu posicionamento na autonomia da vontade. Para eles, as pessoas têm o direito de decidir não somente sobre os rumos da sua vida, mas também sobre a sua morte. Parece ter sido isso que Ramón Sampedro quis dizer ao afirmar que “é um grave erro negar a uma pessoa o direito a dispor da sua vida porque é negar-lhe o direito a corrigir oPage 6 erro da dor irracional (...) Parece que todos podem dispor da minha consciência. Menos eu!” (grifo nosso)16

A palavra autonomia, vem do grego autos (próprio) e nomos (regra, autoridade ou lei)17, e significa o poder de tomar decisões sobre si mesmo e assumir o controle da sua vida. Para Diaulas Costa Ribeiro “cada indivíduo é um Estado em si mesmo; cada indivíduo, enquanto não violar direitos alheios, é o seu próprio soberano, é autônomo.”18

A autonomia da vontade passou a ganhar destaque no campo da saúde em 1973, quando a Associação Americana de Hospitais privados aprovou a carta de direitos dos enfermos, que introduziu uma nova forma de entender a relação entre os profissionais da saúde e o doente.19 Com essa carta, a autonomia do paciente ganhou força, e a relação médico-paciente deixou de ser essencialmente paternalista.

Se antes o paciente estava sujeito ao império da vontade do médico nessa relação, agora conquistou o poder de interferir nas decisões sobre a sua saúde e a sua vida. O papel do médico hoje deve estar adstrito ao de um conselheiro sobre decisões clínicas, mas não deve tomar as decisões sem o consentimento do seu paciente. Dessa forma, a relação médico-paciente passa por um processo de gradual substituição do paternalismo pelo consentimento informado.20

Uma prova dessa transformação que o princípio da autonomia privada provocou na relação médico-paciente são os testamentos vitais (living will) e as diretivas antecipadas, que “são instrumentos de manifestação de vontade com a indicação negativa ou positiva de tratamentos e assistência médica a serem ou nãoPage 7 realizados em determinadas situações”21. Por meio desses documentos, privilegia-se não somente a autonomia, mas também a capacidade.

Dessa forma, os testamentos vitais “são utilizados para...

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