Sexo, poder e imunidade: uma reflexão sobre dois casos brasileiros/Sex, power and immunity: a reflection on two Brazilian cases.

AutorFonseca, Angela Couto Machado
  1. Introdução (1)

    No interior de um cenário já bastante conhecido sobre as análises de Michel Foucault acerca das relações de poder, um tipo de esquema é geralmente acionado. Esse esquema, como boa parte dos esquemas a que lançamos mão, auxilia a compreensão sobre os traços mais gerais e/ou fundamentais do que se quer investigar. Mas o esquema também vicia o olhar a repetir os velhos caminhos analíticos.

    Diríamos que o esquema para começar a tratar das problemáticas das relações de poder em Foucault utiliza alguns espaços divisórios que se tornaram notáveis. De início, a intenção de não fazer uma teoria do poder, mas sim uma analítica do poder; nos espaços da analítica do poder outro campo de distinções: as técnicas da anátomo-política e as técnicas biopolíticas e, finalmente, as distinções de seu modo de pensar o poder como relações de poder, diferente de uma tradição teórica voltada para as definições do que é e o que pode o poder jurídico-soberano.

    A partir desse esquema, a tentativa de diálogo de Foucault com o direito, por exemplo, precisa se munir de argumentos de viabilidade e validade. Como nos lembram Fitzpatrick e Golder (2009 e 2016) a usual leitura que se faz de Foucault é a de que nele não há em definitivo uma preocupação com o direito. Tal compreensão leva a supor que o uso de Foucault no direito se resume a uma tentativa de 'aplicar' do estrangeiro e de fora um conjunto de 'conceitos' que, não sendo do espaço jurídico, arrancam o direito de seu lugar para pensá-lo sob outra perspectiva.

    Sugerimos que seguir repetindo tais lugares comuns, não leva a investigações férteis. Mais que isso, sugerimos mesmo que tais fronteiras são artificiais e não permitem ver o que Foucault pode fornecer e o quanto sua preocupação com as relações de poder toca em questões fundamentais das práticas jurídicas.

    Se permanecemos considerando o poder jurídico-soberano e o poder pensado por Foucault como diferentes continentes, conceitualmente diversos, que podem eventualmente se tocar, falhamos na primeira e mais básica questão foucaultiana: a inexistência de realidades dadas e próprias, que possam ser definidas e contornadas em definitivo. Procedemos não só com o direito, mas também com a analítica do poder, de modo substancialista. E se há algo que podemos extrair do pensamento de Foucault, é que ao ser um pensador de problemas, são exatamente as atuações, as operações de poder que importam e não qualquer significado que a ele se atribua (já que significação não é fundamento, mas resultado de movimentos e contingências). Mais que isso, a relação entre poder e vida, atualmente problematizadas em autores como Giorgio Agamben (2002), Roberto Esposito (2010) e Achille Mbembe (2016), é um ponto de diagnóstico e análise fundamental em Foucault, o que inscreve seu trabalho teórico no centro das práticas jurídicas como práticas de poder capazes de gerir e moldar as formas de vida.

    Assim, propomos não a leitura da divisão, mas dos encontros e pertinências. Menos que as diferentes gramáticas de uma teoria do poder e de uma analítica do poder, o que importa é explicitar o quanto a analítica revela funcionamentos não percebidos das práticas jurídicas e estatais e que não cabem nos seus conceitos. Pensar os exercícios de poder, o que fazem e os efeitos produzidos por tais práticas, é a forma que Foucault encontrou para, por fora das estruturas do direito, pensar seu funcionamento e as consequências desse funcionamento.

    Do mesmo modo como os bárbaros noticiados por Peter Pal Pelbart, que a muralha da China deveria manter na exterioridade, mas um dia se vê que estão instalados no coração do Império (PELBART, 2003, p. 19-20), assim opera a estratégia da analítica do poder. Ao não compor ou ceder aos conceitos do direito, na aparente exterioridade em que se move, mostra-se capaz de atacar seus núcleos problemáticos mais caros. A analítica do poder, que se move num terreno aparentemente diverso daquele do poder jurídico-soberano, mostra-se capaz de descortinar práticas jurídicas e seus efeitos, não capturáveis pelos meios usuais. Ela se coloca no interior da investigação dos mecanismos de poder do direito.

    Assim, o modo como queremos proceder, não será orientado por explicitar e descrever diferentes projetos teóricos--o 'foucaultiano' e o 'jurídico-estatal', mas em pensar problemas provocados por Foucault e como tais problemas nos enviam para o debate direto com práticas jurídico-estatais.

    O poder jurídico em oposição ao qual Foucault pensa o poder na Modernidade é caracterizado pela lógica da lei (lícito/ilícito) e pela centralidade das discussões acerca da soberania, da delegação de poder e, portanto, da legitimidade (FOUCAULT, 1989). O próprio autor, no entanto, articula que o funcionamento do direito na sociedade moderna não pode ser compreendido a partir dos termos estritos em que ele é pensado pelos próprios juristas; tal discurso é afirmado como tendo a função de dissolver o fato da dominação dentro do poder, fazendo em seu lugar aparecer os direitos legítimos de soberania e a obrigação legal de obediência. Mais adequado seria, no entanto, pensar o sistema do direito e o campo judiciário como canais permanentes de relações de dominação e técnicas polimorfas de sujeição (FOUCAULT, 1989, p. 182). Neste trabalho, ao articular-se a categoria "direito", estar-se-á constantemente dialogando com esse deslocamento.

    Nesse sentido, visualiza-se que a contenção e organização da vida social como uma problemática de fundo comum, presente tanto na teoria (jurídica) quanto na analítica (foucaultiana) do poder (2). Se o Estado se coloca como fonte soberana e politicamente legítima para tais atividades, Foucault, por sua vez, pensa os efeitos concretos delas. As questões que são retiradas daí, não perguntam como lidar com a tensão constante de conter e respeitar os cidadãos - proteger a sociedade -, mas perguntam pelos efeitos dessas práticas. É nesse espaço compartilhado do problema de como defender a sociedade que distintas compreensões sobre o poder se colocam e se entrelaçam, colocando em questão a validade e o fundamento de certas premissas eminentemente jurídicas, tais quais os direitos individuais. Nosso foco, assim, estará em capturar como algumas trajetórias de organização, segurança e defesa do social, colocam indivíduos e conjuntos populacionais, bem como seus "direitos", em redes de produção de significados sobre o que são e como precisam ser tratados.

    Tais redes de significação atuam em conjunto com técnicas de poder e possuem diferentes tonalidades. Uma primeira tonalidade do problema pergunta pela relação entre subjetividade e poder. Como práticas de poder atuam para que a sociedade não seja abalada por seus indivíduos constituintes? Como modelar condutas que não perturbem a ordem do corpo social? Aqui a disciplina, a anátomo-política, pensa tais atuações de poder em suas formas de subjetivação e sujeição. A maneira pela qual são postos a funcionar mecanismos que estabelecem quem somos nós. E esse nós é povoado por fronteiras divisórias, os adequados e inadequados, os pertinentes e os excluídos, constituídos pelo perigo que representam à ordem social. Em outros termos, tratamos das subjetividades normativamente estabelecidas e diferenciadas hierarquicamente.

    Uma segunda tonalidade evade do indivíduo particular para se ocupar de fenômenos de massa e como estabelecer mecanismos de segurança ao corpo da população. Trata-se das técnicas biopolíticas de regulação da população e dos mecanismos de governamentalidade que o Estado desenvolve e assume no contexto do poder sobre a vida.

    É a partir dessa postura de análise do funcionamento do Direito, bem como do Estado constituído pela linguagem jurídica, que propomos articular o que Foucault identifica como ponto estratégico entre os dois polos do biopoder na modernidade: o sexo. De fato, o sexo é apontado por Foucault como um ponto estratégico que "se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida" (FOUCAULT, 2014, p. 157).

    Partindo desse aporte, realizaremos o processo de inversão proposto por Foucault no pensamento do Direito e do Estado, para pensar as formas através das quais o Estado brasileiro (com e através de aparatos jurídicos tidos em sentido amplo) tomou o sexo como problema central da saúde pública. Serão analisados dois momentos da relação do Estado brasileiro com o sexo (3), selecionados como estratégicos para as intenções desse trabalho: o combate à sífilis no final do séc. XIX e início do séc. XX, e as políticas de combate ao HIV/Aids no final do mesmo século XX.

    Em ambos os momentos, como se demonstrará, o combate a essas doenças se deu ao redor de uma série de técnicas que articulam os dois polos do biopoder (anátomopolítica e biopolítica), que colocam em xeque as tradicionais formas de pensar o poder a partir da soberania, e que desvelam os efeitos de dominação no uso desses aparatos. Os casos escolhidos não pretendem ser trabalhados via exposição empírica detalhada dos modos como o as decisões jurídicas e estatais responderam ao problema da saúde. Diferente disso, o que se quer analisar é como o poder estatal, diante dos fenômenos da Sífilis e da AIDS, se articula com o saber médico, as medições estatísticas e a marcação de tipos subjetivos cujas condutas são consideradas perigosas do ponto de vista sanitário, justificando-se um tratamento jurídico direcionado, inclusive com suspensão de direitos reconhecidos a outras parcelas da população.

    É nessa articulação, que viabiliza decisões jurídicas e estatais no tratamento da saúde, que vemos a atuação do dispositivo da sexualidade. Em outras palavras, o sexo, a sexualidade ou a conduta sexual, são desenhados como o centro nevrálgico de implicação e explicação dos problemas da Sífilis e AIDS, o que justifica a disciplina dos corpos e a regulação da população. Aquilo que ganha relevo é menos a condição pontual das doenças e mais o contexto dos...

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