O que significa representatividade adequada? um estudo de direito comparado

AutorAndre Vasconcelos Roque
CargoAdvogado e consultor no Rio de Janeiro. Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro associado do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), da American Bar Association (ABA) e da Association of the Bar of the City of New York.
Páginas154-181

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1. Introdução

Uma ação coletiva, por definição, envolve a tutela de interesses compartilhados por outras pessoas, que não atuam formalmente no processo1. Em qualquer ação dessa natureza, a pretensão deduzida estará vinculada a uma coletividade, categoria, classe ou grupo, bem como a indivíduos, não pertencendo o bem tutelado, com exclusividade, às partes formais do processo. Diferencia-se o instituto em questão do litisconsórcio, na medida em que tal fenômeno seria incapaz de tutelar de forma minimamente eficiente e adequada os interesses de milhares ou até mesmo de milhões de pessoas em um único processo, sem comprometer seu bom andamento e sua razoável duração.

Como se pode constatar, qualquer ação coletiva pressupõe necessariamente que pessoas que não tenham participado formalmente do processo sejam de alguma forma vinculadas ao seu resultado, ainda que não na mesma extensão que seria verificada em um processo individual eventualmente ajuizado.

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No direito brasileiro, por exemplo, a extensão dos efeitos da coisa julgada às esferas jurídicas individuais ocorre in utilibus, somente para favorecer a coletividade, nos termos do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor, ressalvado apenas o caso de intervenção na ação coletiva em defesa de direitos individuais homogêneos, na forma prevista no art. 94 do aludido código. Isso não significa, porém, que não haja prejuízo ao grupo em caso de improcedência porque, pelo menos quanto aos direitos e interesses difusos e coletivos stricto sensu, a repropositura de uma demanda coletiva somente seria possível na hipótese de improcedência anterior por insuficiência probatória, exigindo-se ainda a apresentação de nova prova para sua admissão.

Como se sabe, o devido processo legal em sua concepção tradicional exige, entre outras condições, que os litigantes tenham a oportunidade de tomar ciência dos atos processuais e que possam apresentar suas razões para influenciar o convencimento do juiz. Em outras palavras, para que alguém esteja vinculado a um julgamento, é preciso que tenha participado como parte formal do processo e que haja sido comunicado de sua existência, normalmente pela citação. Em uma ação coletiva, no entanto, não se pode conceber o devido processo legal em sua acepção clássica, dada a inviabilidade prática de que todos os membros do grupo atuem formalmente no processo.

O Direito Processual Coletivo ou o microssistema das ações coletivas – enfim, qualquer que seja a denominação utilizada – possui seus próprios princípios e institutos jurídicos. Ele se encontra submetido aos princípios e garantias de origem constitucional que, contudo, devem ser adaptados à realidade do processo coletivo. Nesse sentido, não se deve interpretar o devido processo legal como um obstáculo para as ações coletivas. Ao contrário do que ocorre no processo individual, o devido processo legal coletivo2 não impõe a citação ou mesmo a participação formal de todos os interessados, mas sim que seus interesses sejam representados de forma adequada.

É nesse contexto que o instituto da representatividade adequada ganha destaque no ordenamento jurídico brasileiro.

2. Um panorama da representatividade adequada no direito brasileiro

O direito brasileiro, como se sabe, não consagrou expressamente o controle da adequação do representante pelo juiz. Na época em que se discutia a disciplina legal das ações coletivas no país, foi elaborado o Projeto de Lei Flávio Bierrenbach, a partir dos trabalhos realizados por uma comissão formada pelos eminentes juristas Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, Kazuo Watanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Jr., que optaram pelo controle judicial da representatividade adequada, mas somente no que se referia às associações.

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Entretanto, um projeto substitutivo resultante dos trabalhos dos promotores de justiça Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson Nery Junior foi assumido pelo Ministério Público de São Paulo e pela Confederação Nacional do Ministério Público, sendo então encaminhado ao Ministério da Justiça. A proposta do Ministério Público teve tramitação legislativa mais célere e acabou sendo transformada, com algumas modificações e vetos, na atual Lei de Ação Civil Pública3. O substitutivo do Ministério Público preferiu adotar a fórmula da legitimação ope legis, sem referência expressa ao controle judicial da representatividade adequada.

A aprovação do Código de Defesa do Consumidor em 1990 não modificou a situação. O direito brasileiro continua até hoje atrelado ao sistema de legitimação ope legis, em que o próprio legislador estabelece um rol de legitimados para ingressar com as ações coletivas. A adequação dos representantes elencados é presumida pela própria lei. Talvez fosse natural proceder desse modo, pelo menos em um primeiro momento. Ao que tudo indica, houve certa desconfiança da capacidade dos juízes brasileiros em promover um controle vigoroso e constante da representatividade adequada4, tal como já se verificava nos Estados Unidos. Em vez de atribuir ao juiz essa tarefa caso a caso, preferiu-se estabelecer no corpo da lei quais seriam os representantes mais adequados dos interesses metaindividuais de uma forma apriorística.

Na ausência de previsão expressa em lei, a doutrina mais tradicional sustenta que não se admite no Brasil o controle judicial de adequação do representante nas ações coletivas5. Com a devida vênia aos seus defensores, porém, esse entendimento não pode ser acolhido. Caso não se permitisse este controle judicial, quaisquer que fossem as circunstâncias do caso concreto, ainda que se evidenciasse a incompetência, má-fé, mediocridade ou mesmo fraude cometida pelo representante, o juiz estaria obrigado a aceitar passivamente a situação e dar prosseguimento ao processo, como se nada de errado estivesse acontecendo bem diante de seus olhos.

Evidentemente, estes doutrinadores têm seus próprios argumentos para afastar o controle judicial de adequação. Além de a própria lei estabelecer um rol de legitimados que se presumem adequados iuris et de iure, sustenta-se ainda que a coisa julgada nas ações coletivas brasileiras destina-se unicamente a beneficiar o grupo. Por outro lado, o direito brasileiro conta com aPage 157participação do Ministério Público em todas as lides coletivas propostas pelos outros legitimados, na qualidade de "fiscal da lei". Como o promotor estaria, em regra, em melhores condições de avaliar a situação como um todo, não faria sentido permitir o controle judicial de adequação do representante.

No entanto, os argumentos não convencem. Com relação à coisa julgada, deve-se ter em mente que o direito brasileiro não incorporou a sistemática secumdum eventum litis em toda a sua extensão. A coisa julgada coletiva no Brasil opera diferentemente nos planos coletivo e individual. Na esfera coletiva, em princípio, ela vinculará a todos os co-legitimados, independentemente do resultado do processo (pro et contra), impedindo que sejam propostas novas ações coletivas. A única exceção se verifica quando o pedido for julgado improcedente por falta de provas nas demandas em defesa de direitos difusos e coletivos stricto sensu, hipótese em que não haverá formação de coisa julgada material (secundum eventum probationem)6. No plano individual é que a coisa julgada somente será eficaz para beneficiar o grupo, conforme previsto no art. 103, parágrafos 1º e 2º do Código de Defesa Consumidor. Assim, existe o risco de comprometimento dos interesses coletivos pela atuação de um representante inadequado. Caso a ação não seja julgada improcedente por falta de provas, a possibilidade de ajuizamento de uma nova demanda coletiva restará irremediavelmente prejudicada7.

Quanto à participação e à fiscalização pelo Ministério Público, o argumento também não convence. Primeiro, porque não existe incompatibilidade entre o controle judicial da representatividade adequada e a atuação do Ministério Público. Muito pelo contrário: o controle judicial potencializa a fiscalização pelo promotor. É verdade que, em muitos casos, ele estará em melhores condições que o juiz de verificar a adequação do representante, mas de nada adiantaria isso se ele não tivesse o poder de informar tal circunstância ao magistrado e pedir a substituição do representante ou mesmo a extinção da ação coletiva proposta em prejuízo do grupo.

A presença de um promotor como "fiscal da lei" é uma vantagem estratégica do direito brasileiro sobre o processo coletivo norte-americano, que é obrigado a confiar a proteção dos integrantes do grupo única e exclusivamente ao juiz. Esta vantagem não deve ser descartada e muito menos interpretada de maneira a afastar o controle judicial de adequação do representante. Além disso, quando o próprio Ministério Público for o demandante do processo coletivo, hipótese bastante frequente na prática, quem efetuará o controle da adequação do representante?

A prática demonstra que a presunção absoluta de adequação dos representantes arrolados pelo legislador pode não passar de simples ilusão8. Problemas graves têm sido observados pelo manejoPage 158de variadas ações coletivas por associações sem o mínimo de credibilidade, seriedade, conhecimento técnico-científico, capacidade econômica ou até mesmo representatividade, embora sejam capazes de cumprir formalmente o requisito de pré-constituição de um ano (art. 82, IV do CDC e art. 5º, V, alínea "a" da Lei nº 7.347/85)9. Também com relação a outros...

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