Silva Sánchez e Jakobs: a saga da racionalização do irracional

AutorEduardo Luiz Santos Cabette
CargoMestre em Direito Social; Pós-Graduado com Especialização em Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal; Delegado de Polícia
Páginas64-74

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“(...) el mundo cambia y sigue siendo como antes”. “También el hilo que divide la inteligencia de la estupidez es mui fino, ya te darás cuenta. Cuando se rompe, ambas cosas se funden (...)”.

Oriana Fallaci – Carta a un niño que nunca nació, p. 61 e 82.

Introdução

Em sua obra “O Estrangeiro” Albert Camus retrata o personagem Mersault levando uma vida banal, marcada pela indiferença. Ele comete um homicídio, é preso, julgado, mas tudo se processa de forma inexplicada, sem sentido, apresentando-se somente um homem arrastado pela corrente da vida e da história. Um homem sem uma base sólida em que sustentar-se, desprovido de fé, religião, valores morais, emPage 65 suma, um homem desamparado e, absurdamente, por isso mesmo, livre. E é essa liberdade, essa falta de parâmetros que concomitantemente o liberta e angustia.

Encaminhando-se para a execução da pena capital, Mersault revela seus pensamentos pela escrita de Camus: “Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio”.1

Efetivamente o homem pós – moderno encontra-se abandonado à própria liberdade, mergulhado na desorientação de um relativismo conglobante a conformar um individualismo exacerbado.2

Nesse contexto o Direito ganha destaque como instrumento funcional de redução de complexidades e contingências e “estabilização de expectativas”, intentando um mínimo de segurança e orientação no convívio social.3 Mas, o Direito não pode garantir infalivelmente a plena satisfação, em todos os casos, das “expectativas normativas”, de modo que o “desapontamento” em relação a estas é previsível e inevitável. Então o que o Direito pode fazer é “domesticar” e institucionalizar o “primado da força física no processamento de transgressões ao Direito” de forma a perseverar na manutenção das expectativas lesadas pela conduta desviante.4

Em uma sociedade complexa as possibilidades de transgressão tendem a acentuarse e as soluções para que o Direito, especialmente o Direito Penal, venha a enfrentar de forma satisfatória tal situação podem passar a ganhar contornos extremamente autoritários.

Neste trabalho analisar-se-á as propostas de Jesús-María Silva Sánchez (“Direito Penal de Terceira Velocidade”) e de Günther Jakobs (“Direito Penal do Inimigo”), apresentadas como eventuais opções frente ao fenômeno da criminalidade pósmoderna. Intentar-se-á demonstrar que ambas propostas são incompatíveis com um Estado de Direito Democrático e falham totalmente em seus anelos de refrear ou limitar as tendências autoritárias que permeiam o discurso jurídico-penal da atualidade.

1. As propostas de Silva-Sánchez e Jakobs

Silva Sánchez constata que o Direito Penal na atualidade não opera de forma homogênea. O autor expõe com perspicácia um processo de diferenciação dos ritmos do Direito Penal no que tange à agilidade, desformalização e redução de garantias. Aponta um núcleo duro do Direito Penal, representado pelas infrações para as quais se impõem penas privativas de liberdade. Nesse núcleo sobrelevam os procedimentos mais formais e garantistas. Por outro lado, surge um seguimento de infrações penais para as quais não se cogita, via de regra, de penas privativas de liberdade. É nesse espaço eu se desenvolve aquilo que Silva Sánchez denomina dePage 66 “Direito Penal de Segunda Velocidade”, o qual comportaria uma certa desformalização e redução de garantias.5 Em seguida o autor acena com uma suposta “terceira velocidade” do Direito Penal. Neste caso, tratar-se-iam de infrações penais graves, com previsão de penas privativas de liberdade rigorosas, mas, para as quais, mesmo assim, seria admitida uma desformalização e sensível redução de garantias penais e processuais.6

De outra banda, Günther Jakobs também aponta para um Direito Penal menos formalista e garantista com relação a certos infratores, dando forma ao que chama de um “Direito Penal do Inimigo” em contraposição a um “Direito penal do Cidadão”. Na visão de Jakobs o Direito Penal cumpre a função de garantir a “identidade normativa” e a “constituição da sociedade”, de modo que a repressão empregada contra o transgressor reafirma a vigência e a validade das normas.7 Nessa medida “a sanção contradiz o projeto de mundo do infrator da norma: este afirma a não – vigência da norma para o caso em questão, mas a sanção confirma que essa afirmação é irrelevante”.8 Por isso, quando a conduta e a subjetividade do agente neguem de forma muito intensa as normas sociais, isso poderia retirá-lo da proteção legal, tornando-o uma “não – pessoa”. Para Jakobs o conceito de pessoa está diretamente ligado à atuação e à postura do agente perante a sociedade e as normas que a regem. Não uma qualidade inerente qualquer do indivíduo lhe conferiria o “status” de pessoa (v.g. racionalidade, pertencimento ao gênero humano etc.), mas sim sua atitude perante a sociedade e as normas. Assim sendo, “todo aquele que negue a racionalidade de modo demasiado evidente ou estabeleça sua própria identidade de forma excessivamente independente das condições de uma comunidade jurídica já não pode ser tratado razoavelmente como pessoa em Direito, pelo menos não neste momento”.9

Perdida a qualidade de “pessoa” em Direito, sabemos as limitações quanto às formalidades legais e garantias que podem a partir desse ponto serem impostas ao infrator.

2. Boas intenções e conseqüências funestas

Nada poderia ser mais injusto e equivocado do que acusar Silva Sánchez e Jakobs de pretensões ao autoritarismo e à formulação de uma teorização justificadora do arbítrio e da crueldade penais. Ambos deixam muito claro em suas exposições que apenas constatam uma tendência do Direito Penal atual e procuram justamente evitar que esta possa contaminar todo o ordenamento indistintamente. Os autores sob comento assumem que o Direito Penal vai sendo permeado insidiosamente pela redução das garantias e formalidades e que esse processo não permite uma reação que o detenha. A única saída que vislumbram é a contenção parcial dessa tendência, de modo que procuram delimitar situações extremas em que esse novo Direito Penal minimalista quanto às garantias poderia ser aplicado. O intento de ambos os autores é blindar uma significativa parcela do Direito Penal contra aPage 67 contaminação autoritária, isolando-a a determinados setores, uma vez que as demandas atuais da própria sociedade perante o Direito Penal a tornariam inevitável.

Silva Sánchez é bem explícito quando indica o fato de que as chamadas “legislações de emergência” vão dominando o Direito Penal, conformando aquilo que Moccia denominou de “perene emergência”. Nesse contexto, um “Direito Penal de Terceira Velocidade” não deixaria de ser encarado como um “mal” (como, aliás, todo o Direito Penal), mas se apresentaria como um “mal menor” ante a possibilidade de um domínio absoluto de um Direito Penal não-garantista.10

Diverso não é o pensamento de Jakobs ao asseverar que “um Direito Penal do inimigo, claramente delimitado, é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado de Direito, que entrelaçar todo o Direito Penal com fragmentos de regulações próprias do Direito Penal do inimigo”.11

Realmente as intenções dos penalistas em estudo são louváveis. Visam criar uma represa contra a inundação do autoritarismo, da despersonalização do homem, procurando ao menos controlá-las, já que não seria possível evitá-las. No entanto, como ensina desde antanho a sabedoria popular, “de boas intenções o inferno está cheio”.

Em seguida intentar-se-á demonstrar como em seu esforço de racionalizar o irracional, os referidos autores acabam abrindo as portas para um Direito Penal autoritário e anti-garantista que, aí sim, passará a ser incontrolável e se alastrará como uma praga por todo o ordenamento jurídico-penal.

3. A gênese de um “não-direito” penal

Em um mundo dominado pelo “fazer” o “pensar” vai perdendo terreno e até mesmo tornando-se um empecilho à agilidade das decisões e atuações. O tempo no mundo globalizado da atualidade impõe um ritmo veloz que não condiz com a maturação das idéias necessária para a intelectualidade. Constata-se, por assim dizer, o fenômeno do “silêncio dos intelectuais”, que vão sendo calados, suplantados e relegados a peças de museu pelos políticos, administradores e técnicos. Até mesmo nas universidades que deveriam...

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