Sintaxe da decadência e prescrição

AutorCássio Vieira Pereira dos Santos
CargoBacharel em Direito graduado pela USP. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP. Auditor- Fiscal de Tributos Municipais de São Paulo
Páginas127-142

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1. Objetivo

Este trabalho visa propiciar ao leitor reflexões sobre os conceitos de prescrição e decadência, observados sob seus limites sintáticos, elaboradas a partir do estudo de elementos básicos da Teoria Geral do Direito utilizando-se de métodos analíticos.

2. Linguagem e normas

Paulo de Barros Carvalho classifica a linguagem segundo a sua finalidade em: (a) descritiva, (b) expressiva de situações objetivas, (c) prescritiva de condutas, (d) interrogativa ou de pedidos, (e) operativa ou performativa, (f) fática, (g) persuasiva, (h) afásica, (i) fabuladora e (j) metalin-güística.1

A finalidade da linguagem do direito qualifica-se como da terceira espécie (finalidade prescritiva de condutas): o objeto do direito são as condutas humanas; o direito prescreve-as através de estruturas de linguagem, em função da ocorrência, ou não, de certas hipóteses de incidências normativas, objetivando certo fim social.

Para qualificar as condutas humanas, o direito positivo, utiliza-se, assim, de estruturas lingüísticas normativas.

As normas em geral submetem-se a uma estrutura do tipo: "SE antecedente, ENTÃO conseqüente".

Desta forma, como estrutura de linguagem, a norma possui um caráter lógi-co-sintático implicacional (Se... Então...). No caso das normas prescritivas de comportamento, o antecedente (condição de conduta) é uma hipótese (para normas abs-tratas) ou um fato (para normas concretas);

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e o conseqüente (conduta) um dever ser, deôntico individual ou geral. Para além da estrutura normativa e do plano sintático, caracterizando-se as normas de conduta como objetos culturais, nelas existem ainda valores,2 núcleos teleológicos que se referem aos planos pragmático e semântico de sua linguagem.

As normas de comportamento são também chamadas de normas de dever ser deôntico. Entenda-se como dever ser deôntico um comando de conduta que "deve ser", ainda que, efetivamente, possa não vir a ocorrer.

Neste sentido, podemos admitir a existência de um dever de comportar-se de certa forma, mesmo que a conduta prescrita não venha a realizar-se.

Percebemos que, não obstante a linguagem normativa tenha uma finalidade preponderantemente prescritiva, conforme salientado por Paulo de Barros Carvalho,3 existe na norma, no seu antecedente, uma descrição de uma condição; e no seu conseqüente, uma descrição de conduta submetida a uma qualificação deôntica (obrigatória, proibida ou permitida).

Esta dupla característica de forma da linguagem normativa (descritiva e prescritiva) já foi verificada por Henrik von Wrigth4 e sintetizada por Tércio Sampaio Ferraz.5

Se há uma condição no antecedente e uma conduta no conseqüente, com formas descritivas, poderíamos, equivocadamen-te, concluir que a norma jurídica tratar-se-ia de uma formulação meramente descritiva, submetida à lógica alética. Ledo engano, pois a existência de um operador deôntico (obrigatório, proibido, permitido) no conseqüente desqualifica tal proposta, reforçando a função prescritiva da norma deôntica.

A lógica alética é a lógica das proposições cujos valores são verdadeiros ou falsos, qualificações que não se aplicam aos comandos de conduta: uma norma jurídica não pode ser verdadeira ou falsa, mas apenas válida ou inválida. Aliás, o termo "proposição", na forma definida por Copi,6 é adotado por vários autores quando referem-se exclusivamente às "proposições" utilizadas no campo das ciências e da lógica.

Kelsen utiliza o mesmo conceito de proposição adotada por Copi, distinguindo as normas jurídicas pertencentes ao direito positivo (ordens, que não podem ser verdadeiras ou falsas, mas apenas válidas ou inválidas) das proposições jurídicas decorrentes da Ciência do Direito, que descrevem o direito positivo e que são, por sua vez, verdadeiras ou falsas.

Neste sentido, Kelsen criticou a definição de norma de Ulrich Klug, salientando que quando Klug propõe que a norma seja considerada uma proposição, estaria admitindo a possibilidade da norma caracterizar-se como uma linguagem meramente descritiva.7

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Não há que se confundir, assim, a proposição descritiva da Ciência do Direito com a linguagem de finalidade prescri-tiva de conduta (juízo imperativo) contida na norma deôntica, ainda que esta possa compor-se de elementos de linguagem de forma descritiva.

Sem perder de vista a distinção fundamental existente entre direito positivo e Ciência do Direito, utilizaremos o vocábulo "proposição" de forma ampla, possibilitando o seu uso para designar também as próprias ordens (a que chamaremos de "proposições normativas"), tal como Paulo de Barros Carvalho e Lourival Vilanova,8 que admitem seu uso para denominar qualquer espécie de juízo, inclusive imperativo.

As normas jurídicas, como espécie das normas de comportamento desejável (normas morais, em sentido amplo), são estruturas de linguagem que têm como finalidade a prescrição de condutas humanas. Caracterizam-se, assim, também como proposições normativas.

Característica peculiar e relevante, contudo, da norma prescritiva de comportamento humano do tipo jurídica é a previsão da possibilidade de submeter o infrator a sanções coercitivas estatais.

Disto resulta que podemos qualificar o direito positivo como um sistema de proposições normativas (as normas jurídicas).

3. Direito como sistema de normas

Entende-se sistema como um conjunto de elementos e suas relações. Podemos aqui referenciar Canaris,9 para quem o conceito de sistema liga-se a dois requisitos:

(a) a adequação racional, que é a característica de ordem de um sistema, ou seja, a possibilidade de "exprimir um estado de coisas intrínseco racionalmente apreen-sível, isto é, fundado na realidade"; e

(b) a unidade, que é a característica que impede a desconexão dos elementos do sistema, através de princípios fundamentais, ou nas palavras de Kant: "a unidade, sob uma idéia, de conhecimentos variados", ou "um conjunto de conhecimentos ordenado segundo princípios", ou como ainda diria Paulo de Barros Carvalho: "a conjunção de elementos governados por uma idéia comum".10

A unidade e a adequação racional, requisitos de qualquer sistema, estão, no sistema do direito do direito positivo, não em uma ausência absoluta de contradições ou lacunas nos comandos normativos, mas sim na unidade da estrutura formal de suas normas e na racionalidade de seu discurso voltado para a prescrição das condutas humanas.11 Contudo, quando se revelar a existência de normas conflitantes, deve o intérprete buscar harmonizá-las, através dos métodos admitidos no próprio sistema para superar estas antinomias; pois tais conflitos, embora possíveis, são indeseja-dos sob o prisma teleológico do direito.

4. A unidade estrutural das normas jurídicas

No que se refere à unidade de estrutura formal das normas jurídicas, podemos,

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como Paulo de Barros Carvalho,12 nos referenciar a uma homogeneidade sintática ou formal.

A controvérsia entre Kelsen e Klug,13 sobre a possibilidade do direito ter um modelo lógico tinha como principal questão o argumento de que a lógica pode representar apenas uma linguagem descritiva, podendo ser utilizada para deduzir se certas proposições seriam "verdadeiras" ou "falsas", mas que era inadequada para representar uma linguagem imperativa como a do direito, que, como visto, não se sujeitaria à qualificação binária do tipo "verdadeiro/falso" de suas proposições, pois as normas não são "verdadeiras" ou "falsas", mas apenas "válidas" ou inválidas".

Em sua obra póstuma, Kelsen sintetiza suas objeções ao uso da "Lógica biva-lente (verdadeiro-falso)"14 no direito positivo. Ressaltando que: (a) as normas não são enunciados, mas ordens imperativas,15 (b) haveria conflitos reais de normas que se caracterizariam por contradições lógicas:16

Rupert Schreiber, utilizando-se da lógica simbólica e influenciado pela obra de Klug,17 propôs um modelo lógico-formal para o direito. Schreiber inicia sua proposta a partir das normas concretas e observa que na construção da descrição do evento submetido à incidência da norma, os órgãos competentes emanam dois enunciados: o primeiro trata-se de linguagem de forma descritiva ou indicativa (a descrição do evento, ou subsunção); a segunda trata-se de linguagem de forma imperativa (a ordem decorrente da subsunção).18

Schreiber defende um isomorfismo entre as prescrições jurídicas e as proposições indicativas, não obstante as proposições indicativas serem qualificadas pela lógica apofântica como verdadeiras ou falsas e as decisões judiciais como devidas ou indevidas.

Neste sentido, tanto Schreiber como Paulo de Barros Carvalho defendem a existência de estruturas sintáticas uniformes de normas jurídicas.

5. Lógica alética

Se a norma jurídica, enquanto espécie de proposição (proposição prescritiva) é, como defende Schreiber, passível de ser representada por uma formulação sintática isofórmica à norma que contém proposições descritivas, então poderemos fazer uso de certos instrumentos da lógica para estudá-la sintaticamente.

Desta maneira, podemos apresentar o cálculo proposicional como forte instrumento de análise normativa formal. A partir do século XIX, principalmente com o desenvolvimento da "álgebra booleana", sistema lógico-simbólico desenvolvido por George Boole (1815-1864), a lógica começou a se afastar do silogismo categórico aristotélico...

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