Sistema ou CIS-tema de justiça: Quando a ideia de unicidade dos corpos trans dita as regras para o acesso aos direitos fundamentais

AutorMário Soares Caymmi Gomes, Sara Wagner York, Leandro Colling
CargoMário Soares Caymmi Gomes: Juiz de Direito do Poder Judiciário da Bahia. Mestre em Letras pela UFBA. Mestre em Filosofia do Direito pela UFPE. Presidente da Comissão LGBTQIA+ do PJBA. E-mail: marioscgomes@hotmail.com. / Sara Wagner York: Mestra em Educação (GENI/ProPEd/UERJ). Doutoranda em Educação (GESDI/FFP/UERJ). Bolsista CAPES. E-mail:...
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.02, 2022, p.1097-1135
Mário Soares Caymmi Gomes, Sara Wagner York e Leandro Colling
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/66662| ISSN: 2179-8966
Sistema ou CIS-tema de justiça: Quando a ideia de unicidade
dos corpos trans dita as regras para o acesso aos direitos
fundamentais
Justice system or CIS justice system: when the idea of the uniqueness of trans
bodies dictates the rules for access to fundamental rights
Mário Soares Caymmi Gomes¹
¹ Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil. E-mail:
marioscgomes@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6296-9138.
Sara Wagner York ²
² Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
sarawagneryork@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4397-891X.
Leandro Colling³
³ Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil. E-mail:
leandro.colling@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0519-2991.
Artigo recebido em 30/01/2022 e aceito em 21/04/2022.
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.02, 2022, p.1097-1135
Mário Soares Caymmi Gomes, Sara Wagner York e Leandro Colling
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/66662| ISSN: 2179-8966
Resumo
O presente texto discute como o direito de retificar o prenome e gênero nos documentos
oficiais, assegurado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para as pessoas transexuais e
travestis, pode ficar comprometido quando os/as operadores/as do sistema de justiça
exigem tecnologias de gênero que agudizam uma passabilidade pautada em
performatividades de gênero binárias da/na cisgeneridade.
Palavras-chave: Direito; Transexualidade; Performatividade de gênero; Passabilidade e
Direitos Fundamentais
Abstract
The present text discusses how the rights to rectify the first name and gender in official
documents, guaranteed by the Brazilian Federal Supreme Court (STF) for transsexuals and
travetis, can be compromised when the operators of the justice system demand gender
technologies. that heighten a passability based on binary gender performativities of/in
cisgenderness.
Keywords: Law, Transexuality; Gender Performativity; Passing; Fundamental Rights
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.02, 2022, p.1097-1135
Mário Soares Caymmi Gomes, Sara Wagner York e Leandro Colling
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/66662| ISSN: 2179-8966
Não existe uma única forma de ser travesti. Temos diversas travestilidades e
possibilidades de ser travesti. Nenhuma é igual à outra (o experimento da
expressão de gênero pode ou não ser constitutivo); não generalize. (YORK,
OLIVEIRA e BENEVIDES, 2020a)
1 Situando o problema corpos trans precisam de passabilidade para serem
reconhecidos como titulares de direitos humanos?
- Eu preciso ver a pessoa. Eu preciso ver.”
Muito embora seja ponto pacífico que os direitos de pessoas LGBTI+ (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo), conquistados nos últimos 20 anos
(QUINALHA, GREEN; FERNANDES; CAETANO, 2018), sejam oriundos do ativismo político
de centenas de grupos e associações, e de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
(STF), com eficácia erga omnes, nem sempre os pôr em prática é uma tarefa fácil, até
mesmo por aqueles/as que deveriam zelar pela sua observância.
Exemplo disso é a primeira frase desta seção deste artigo, proferida por
Promotora de Justiça da Vara de Registros Públicos de Salvador, quando soube que
transexuais de outros Estados estavam ajuizando ações para a retificação de prenome e
gênero em seus documentos de identificação na capital da Bahia. Ora, dizia a Promotora,
se após a edição do Provimento nº 73/2018, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), essas
pessoas podiam obter administrativamente essa providência, diretamente junto ao
cartório de origem do assentamento, ajuizar uma ação para esse fim era algo que deveria
ser tido como suspeito.
Em razão disso, a Promotora passou a requerer a realização de audiências, em
suas manifestações nos autos, para que pudesse avaliar visualmente, entre outras coisas,
os/as autores/as dessas ações.
Ao acionar a necessidade de fazer uma avaliação visual e presencial do corpo das
pessoas trans que buscam atendimento na referida vara, como condição para obter a
providência registral, essa integrante do Ministério Público demarca a sua posição de
poder-saber, conforme ensina Foucault (2004). Para além de uma inocente avaliação
estética desses corpos, vemos nesse exemplo como o Poder Judiciário, sob esse
argumento, em verdade busca apreciar a performatividade de gênero (BUTLER, 2003) das

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