Soberania, Estado, Globalização e Crise

AutorPaulo Marcio Cruz
CargoMestre em Instituições Jurídico-Políticas e Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Páginas8-22

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1. A Soberania como característica do Estado Moderno

O conceito de Soberania, historicamente, esteve vinculado à racionalização jurídica do Poder, no sentido de transformação da capacidade de coerção em Poder legítimo. Ou seja, na transformação do Poder de Fato em Poder de Direito.

Bobbio1 indica que o conceito de Soberania pode ser concebido de maneira ampla ou de maneira estrita. Em sentido lato, indica o Poder de mando de última instância, numa Sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais organizações humanas, nas quais não se encontra este Poder supremo. Este conceito está, assim, intimamente ligado ao Poder político. Já em sentido estrito, na sua significação moderna, o termo Soberania aparece, no final do Século XVI, junto com o Estado Absoluto, para caracterizar, de forma plena, o Pode estatal, sujeito único e exclusivo da política.

Com a superação do Estado Absoluto e o conseqüente surgimento do Estado Moderno, a Soberania foi transferida da pessoa do soberano para a Nação, seguindo a concepção racional e liberal defendida por pensadores como Emanuel Joseph Sieyès, expressada em sua obra A Constituinte Burguesa e sistematizada através da sua teoria do Poder Constituinte.

Sieyès estabeleceu a doutrina da Soberania da Nação, dizendo que "em toda Nação livre - e toda Nação deve ser livre - só há uma forma de acabar com as diferenças que se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria Nação"2 Foi com essa posição que Sieyès concebeu, racionalmente, o princípio da Soberania da Nação como instrumento de legitimação para a instituição do Estado Moderno.

Assim, a proclamação da Soberania como independência ante qualquer poder externo tornou-se uma manifestação característica e essencial do Estado Moderno desde seu início. A consolidação do princípio democrático supôs a reafirmação da soberania com relação ao exterior, passando a ser proibida qualquer interferência nasPage 9 decisões internas da comunidade, adotadas livremente por esta. Em muitos casos, como nos movimentos pela independência colonial, estavam unidas aspirações pelo estabelecimento do sistema democrático e a consecução da independência nacional.

A Soberania Nacional, nos tempos atuais, debate-se para conciliar-se com um fato inegável: que as comunidades políticas - os Estadosfazem parte de uma sociedade internacional, que é regida por normas próprias. O Estado Soberano encontra-se, forçosamente, vinculado a obrigações externas junto com os demais Estados, obrigações estas que podem ter origens muito diversas. Podem ser resultado de tratados bilaterais, de convenções multilaterais ou podem ser resultado da existência, reconhecida e consolidada, de uma prática costumeira no âmbito internacional.3

Hodiernamente, o descumprimento de obrigações internacionais pode acarretar sanções bastantes intensas por parte dos outros Estados, normalmente representados por um organismo específico. Progressivamente, o ordenamento internacional passa a dispor de mais armas, jurídicas e econômicas, destinadas a assegurar o cumprimento destas sanções.

A existência de uma Sociedade internacional e, conseqüentemente, de obrigações vinculantes para o Estado, não é incompatível, em princípio, com a Soberania deste. Tal compatibilidade é resultado do princípio de que os compromissos internacionais do Estado derivam do consentimento deste mesmo Estado.

Hans KELSEN, referindo-se à vinculação do Estado por meio de tratados, escreveu que "em regra geral, pode-se dizer que o tratado não prejudica a soberania, já que, definitivamente, esta limitação se baseia na própria vontade do Estado limitado; mais ainda: em virtude desta limitação, fica assegurada a soberania estatal".4 Conforme esta construção histórica, o Estado assume voluntariamente suas obrigações internacionais, ficando, desta forma, submetido ao Direito Internacional por sua própria vontade soberana.

Como reflexo desta concepção, são as Constituições que prevêem que o Estado "soberano" poderá assumir voluntariamente obrigações internacionais. Desta forma, fica ressalvada a doutrina da soberania.

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Acrescente-se que estas obrigações dependem, pelo menos as mais importantes, da aprovação dos respectivos parlamentos representantes do povo. Mesmo que seja o Poder Executivo o encarregado de gerir as relações internacionais, normalmente é exigido que os tratados sejam aprovados pelos parlamentos.

Assim, o Estado assume compromissos internacionais porque tanto o Poder Constituinte como o poder constituído assim o decidem. Como exemplo, pode-se citar a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 49, inc. I, que prevê o seguinte:

"Art. 49.

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional". 5

E no art. 84, inc. VIII, da mesma Constituição brasileira de 1988 também se prevê a atuação do chefe do Poder Executivo nas relações internacionais, com o seguinte teor:

"Art. 84.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

... VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional". 6

Até pouco tempo, esta construção teórica bastava para a discussão sobre a inserção do Estado do âmbito internacional, porém sabe-se que a realidade atual não corresponde a esta construção teórica. Com a crescente inter-relação e interdependência entre Estados e a consolidação de princípios norteadores do comportamento entre eles foram provocando, de maneira evidente, a consolidação de uma ordem jurídica internacional, cuja força vinculante é difícil de explicar em virtude da "aceitação" de cada Estado.

A nova ordem internacional, criada após o fim da União Soviética, interpreta que determinados princípios, acolhidos nos estatutos de organizações internacionais são vinculantes, inclusive para aqueles países que estejam fora de dita organização. O Estado, membro ou não das Nações Unidas, que não cumpra as regras estabelecidas no concerto internacional, estará exposto a sanções por parte da comunidade internacional.

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A consciência da existência de uma ordem internacional, com normas situadas acima dos ordenamentos internos dos estados, está traduzida no fato de que muitos estados admitem, de forma expressa e direta, a primazia destas normas. Um bom exemplo é o que consta no art. 25 da Lei Fundamental de Bonn, da República Federal da Alemanha, que trata do Direito Internacional Público como parte integrante do direito federal:

"As regras gerais do direito internacional público fazem parte integrante do direito federal. Prevalecem sobre as leis e produzem diretamente direitos e deveres para os habitantes do território federal".7

Também a Constituição Brasileira de 1988, embora com menos ênfase, trata de afirmar o reconhecimento de uma ordem jurídica internacional com força vinculante. O § 2º do seu art. 5º diz o seguinte:

"Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".8

Os ordenamentos jurídicos estatais, desta forma, passaram a reconhecer, com maior ou menor intensidade, a primazia do Direito Internacional, pelo menos no que diz respeito às suas regras mais universais. É de se destacar também que o princípio da "voluntariedade" da sujeição dos Estados às normas internacionais se vê também consideravelmente marcado pelo da incorporação dos Estados por organizações internacionais que supõem uma limitação da soberania, já que uma vez efetuada é praticamente irreversível. Desta forma, os "Estados Soberanos" assumem obrigações de caráter permanente, às quais ficam sujeitos por tempo indeterminado.

No que se refere, sobretudo, ao âmbito europeu, podem-se assinalar, pelo menos, dois exemplos desta irreversibilidade, ou seja, de entrada dos Estados em organizações que implicam obrigações internacionais com uma vocação de permanência de tal monta que supõem uma renúncia à parte de sua soberania. Um deles dizPage 12 respeito às organizações e tratados para a proteção dos direitos humanos. O outro é relativo a organizações e tratados destinados, expressamente, à criação de uma nova comunidade política supraestatal como é a União Européia.

No atual ambiente internacional globalizado está evidente a criação de uma nova concepção de Soberania, ajustada aos interesses liberais do mercado. Este movimento está ligado, principalmente, a dois fatores:

1 - o fim dos países socialistas do leste europeu e o conseqüente desaparecimento do bloco de oposição à mundialização da economia de mercado e do capitalismo9 ; e

2 - o efetivo desenvolvimento tecnológico e científico dos meios de comunicação e dos ambientes virtuais adotados pelas instituições financeiras e pelos operadores de comércio...

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