Da noção de soberania dos estados à noção de ingerência ecológica

AutorSilvana Colombo
CargoMestre em Direito Ambiental e Biodireito - Advogada - Professora do curso de Direito e Coordenadora do Curso de Direito da Unoesc do Campus Aproximado de Pinhalzinho.
1. Introdução

Os Tratados de Paz de Westfália documentaram a existência de um novo tipo de Estado – o Estado Moderno – cuja nota característica essencial é a soberania. No final da Idade Média, os príncipes soberanos ou monarcas já eram detentores de um poder centralizado, não sujeito a qualquer tipo de restrição.

O conceito de soberania e, portanto, da qualificação de soberano dada ao Estado desempenha um papel decisivo na solidificação do Princípio da Territorialidade, assim como o da centralização do poder. A partir do uso da força sobre um determinado território e população e do monopólio do direito, estrutura-se uma forma de organização do poder centrada numa autoridade legal suprema, detentora do poder originário, livre de intervenção interna ou externa.

Deste ponto de vista, a soberania é utilizada para definir e distinguir o poder Estado no plano interno do poder de outras autoridades e para identificá-lo como único cento de comando.Deu também condições, no plano externo, de o Estado assegurar sua independência absoluta em relação às potências estrangeiras, já que é detentor de um ordenamento próprio.

A dificuldade de tratar questões como a interdependência econômica, social e política e ambiental partir da soberania é latente na sociedade internacional. Isto ocorre em razão da ambigüidade, imprecisão do conceito de soberania e também pela impossibilidade de o Estado apresentar-se como único centro de poder. Por isso, a importância de estudar a soberania num primeiro momento enquanto poder relativo e histórico na ordem internacional.

2. A Soberania como poder relativo e histórico na ordem internacional

A construção sistemática do conceito de soberania e principalmente a idéia de absolutização e perpetuidade desta é atribuída a Jean Bodin. A teoria da soberania do jurista francês teve sua formulação inicial na obra Método para Fácil Compreensão da História (1566), sendo claramente esboçada em Seis Livros da República (1576).

O significado teórico da obra de Bodin para o direito político moderno não é outro senão de atribuir um caráter sistemático na discussão sobre Estado, o que se concretiza pela recuperação do processo de desenvolvimento, dos fundamentos teóricos e dos princípios que deram sustentação para a existência da soberania como elemento indispensável à organização da sociedade política.

A soberania atribuída ao Estado apresenta dupla significação na teoria bodiana. Uma noção normativa, no sentido de que este poder soberano inclui o monopólio da força, o direito de legislar e aplicar a lei, ou seja, ele designa as aspirações do poder do Estado. É também um conceito descritivo, usado como elemento caracterizador do poder estatal.

Tudo isto esclarece que a soberania está ligada a uma concepção de poder, a “um poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência.”2 A soberania como expressão da unidade de uma ordem ou como uma qualidade essencial do Estado adquire contornos definidos na teoria de Bodin,ou seja,a soberania é um poder superior, incondicionado e ilimitado.

A afirmação da soberania enquanto poder absoluto e perpétuo é um dos fundamentos do Estado Moderno. Enquanto poder perpétuo o exercício da soberania não está submetido a um tempo determinado, ou seja, não sofre restrição de ordem cronológica. Deste modo, estabelecido que o caráter perpétuo da soberania significa a continuidade do poder no tempo, pode-se inferir que tal adjetivo está intrinsecamente ligado ao poder público, independentemente de quem o assume.

Quanto ao adjetivo absoluto, significa um poder ilimitado no tempo, que não sofre restrições nem pelo cargo e nem por outro poder. Assim, conceito de soberania, enquanto poder absoluto, indica que ao poder soberano são atribuídas as seguintes notas características: superior, independente, ilimitado e incondicionado.

Desta forma, a nota caracteristica do Estado Moderno é a soberania que apresenta na ordem interna e externa significados diferentes. Na ordem interna, a soberania do Estado designa subordinação, ou seja, a sujeição a um poder soberano. No plano externo, ela significa independência, já que cada unidade política, enquanto ordem jurídica soberana e independente, apenas se submete às suas próprias leis e vontades.

A soberania no plano internacional significa independência, pois os Estados são unidades políticas soberanas, iguais e politicamente independentes. Acrescenta-se, ainda, que o sistema internacional não se subordina a um sistema legal ou a um imperativo ético absoluto, razão pela qual o adjetivo absoluto ligado à soberania na ordem internacional é precário e temeroso.

Importante destacar que o conceito de soberania na ordem intra-estatal é, nas palavras de Aron, inútil pelo fato dela representar apenas a validade de um sistema de normas num espaço determinado.Entretanto, na ordem interestatal, ela é nociva porque “os imperativos jurídicos retiram sua força obrigatória da vontade dos poderes do Estado”.3

Feitas algumas considerações sobre a caracterização da soberania como base teórica de formação e sustentação do Estado Moderno, é preciso dizer que a fórmula de autoridade absoluta e indivisível traz alguns embaraços que atingem de forma crucial o Direito Internacional.

Raymond Aron com muita propriedade questiona se a fórmula da autoridade absoluta e indivisível é verdadeira quando aplicada aos atores presentes no cenário internacional. E responde afirmando que se dentro das unidades políticas prevalece um único sistema de normas, aplicada por um órgão jurisdicional único, nas relações entre os Estados, a soberania significa independência.4

Não se pretende eliminar de forma completa o conceito de soberania na ordem internacional, mas distorcer alguns dos seus equívocos e contradições. Se os Estados são soberanos, será preciso que não se submetam às obrigações do Direito Internacional? Tal indagação corrobora com a idéia de que a soberania é conceito jurídico, histórico e também relativo, ao menos no plano externo, em que coexistem unidades políticas igualmente independentes e soberanas.

Por isso, aporia que nos interessa é o da soberania como afirmação do Direito Internacional positivo, especialmente o significado da expressão igualdade soberana expressa na Carta das Nações Unidas. E como atributo da ordem jurídica, a soberania faz do Estado o titular de competências exclusivas que se projetam sobre o território (seu suporte físico), ou seja, ela “tem ainda hoje a paradoxal virtude de revestir cada Estado do poder de determinar por si mesmo, se lhe parecem ou não soberanos os demais entes que, a seu redor, se arrogam à qualidade estatal.”5

De fato, a teoria da soberania se constitui num elemento teórico importante para formação do Estado Moderno e também para a construção da sociedade internacional.Contudo, apesar da soberania ter sido o fundamento do Direito Internacional nos seus primórdios (para permitir a coexistência pacífica entre os Estados), é certo que a soberania jamais foi absoluta, conforme concebida teoricamente.

Neste sentido, a soberania pode ser tomada como um conceito histórico e relativo. Histórico, pois apesar de não se fazer presente na Antigüidade, aparece com o processo de centralização política e com o nascimento do Estado Moderno. É um conceito relativo também, porque se a priori fora considerado elemento fundamental do Estado Moderno, atualmente do ponto de vista externo, a soberania é uma adjetivação do poder, considerada um elemento relativo não essencial.

Em outras palavras, o...

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