A soberania frente à globalização

AutorLiziane Paixão Silva Oliveira
Páginas202-225

Page 203

Introdução

O estudo do conceito de soberania ganha importância perante a globalização, visto que, para alguns estudiosos, como Matteucci, aquela já está em via de extinção. A fundamentação está na mudança do paradigma de Estado adotado pelo constitucionalismo, pois as fontes de produção normativa, cujo controle sempre foi visto como primordial para a existência de uma nação soberana, não mais pertencem ao Estado, mas a organismos internacionais. O Estado, sob esse ângulo, perde sua autonomia e sua independência. Todavia, alguns teóricos, como Hirst e Thompson, acreditam que a organização política dos Estados é favorecida pela existência de um sistema mundial de direitos, ou seja, a globalização amplia e aperfeiçoa a cooperação entre os Estados soberanos sem inviabilizar a independência das nações.

Antes de afirmar se a globalização extingue ou não a soberania, é imperioso verificar se esse processo é realmente vislumbrado. A palavra “globalização” tornou-se comum no vocabulário dos cientistas sociais, uma máxima central nas prescrições dos economistas, um slogan para jornalistas e políticos. Costuma-se dizer que se vive em uma era em que a maior parte da vida social é determinada por processos globais, em que culturas, economias e fronteiras nacionais estão-se dissolvendo. É possível, nos contextos social, econômico, tecnológico, e político contemporâneos, verificar a isonomia tão falada pelos defensores da era global? Vive-se realmente um momento de uniformização? Seria esta a melhor palavra para expressar o significado a que se pretende remontar?

Paulo Nogueira Batista Jr., no prefácio da edição brasileira do livro Globalização em questão, declara que, segundo as versões mais exaltadas, os países em desenvolvimento estariam indefesos diante de movimentos irreversíveis, só restando a submissão e a aceitação passiva das imposições feitas. Não obstante estas idéias vigorarem em algumas esferas das relações intergovernamentais, essa premissa é refutada. Não será necessariamente a globalização, como fenômeno integralizador, que mitigará a soberania nacional, mas a forma como os governantes se colocam diante dela?

Nas considerações finais, faz-se um apanhado dos conhecimentos pesquisados acerca de tão vasto e complexo tema, uma vez que, das leituras realizadas, surgiramPage 204 questionamentos teóricos que, longe de levarem a pensamentos exatos, conduzem à “crise”, no sentido etimológico de risco e oportunidade.

1. Soberania do estado: escolhendo um conceito

Ao refletir sobre a relação entre soberania e globalização, pretende-se esclarecer aspectos importantes acerca do instituto da soberania, em sua acepção político-jurídica ante o processo de globalização, sem, contudo, ater-se a análises profundas de suas implicações no campo econômico, social, cultural, ou qualquer outro. No decorrer da reflexão, pretende-se responder a uma questão necessária ao desenvolvimento deste trabalho, qual seja: como o processo de globalização afeta o conceito de soberania?

1. 1 Elementos formadores do Estado moderno

Existe divergência quanto aos pressupostos essenciais para a formação do Estado. Os doutrinadores de Direito Internacional1 entendem, em concorde unanimidade, que os elementos essenciais para a existência do Estado são: o território como elemento físico, a população como elemento humano e o Governo soberano.

Em conformidade com essa corrente, reza a Convenção Panamericana de Montevidéo de 1933 sobre Direitos e Deveres dos Estados, promulgada pelo Brasil (Decreto n. 1.570 de 13.04.1937), que “O Estado, como pessoa de Direito Internacional, deve reunir os seguintes requisitos: a) população permanente; b) território determinado; c) Governo; e d) a capacidade de entrar em relação com os demais Estados”.

De modo diverso, estudiosos da teoria geral do Estado entendem que não é a população, mas o povo que constitui o elemento humano do Estado. Alguns estabelecem a soberania como poder peculiar do Estados, pois existem sociedades formadas por território, povo e governo, mas não se constituem em Estados por faltar a soberania.Page 205 Além disso, uma corrente minoritária inclui o quarto elemento, a finalidade, pois, para ela, o Estado tem o fim específico e essencial de regulamentar as relações sociais.

Neste momento, é indispensável estabelecer a divergência entre população e povo. O primeiro significa um conjunto de pessoas instaladas de modo permanente em um território, sejam elas nacionais ou estrangeiras residentes no Estado. Para Pellet, “população é entendida, sobretudo, como a massa dos indivíduos ligados de maneira estável ao Estado por um vínculo jurídico, o vínculo da nacionalidade”.2

O conceito de povo é jurídico, mais restrito que o de população. Para Marcelo Caetano:

“o termo população tem um significado econômico, que corresponde ao sentido vulgar, e que abrange o conjunto de pessoas residentes num território, quer se trate de nacionais ou estrangeiros. Ora, o elemento humano do Estado é constituído unicamente pelos que a ele estão ligados pelo vínculo jurídico que hoje chamamos de nacionalidade”.3

Seguindo o mesmo ponto de vista, encontram-se Kelsen4, Borja e Borja5, Sanguinetti6, Del Vecchio, Groppali7, entre outros. Em resumo, o termo população é mais abrangente que povo; este é um conceito jurídico, enquanto aquele é demográfico.

O território é consagrado por todos os doutrinadores como elemento físico fundamental de um Estado, local no qual tem validade a ordem jurídica. É formado por solo, subsolo, ilhas marítimas, fluviais e lacustres, plataforma continental8, mar territorial9, mares inferiores, espaço aéreo, representações diplomáticas10 e embarcações e aeronaves militares em qualquer lugar.

O Estado é uma pessoa jurídica e, como tal, necessita do governo para representálo. O Direito Internacional considera o Executivo, o Legislativo e o Judiciário como partes constituintes do governo, que deve ser independente e autônomo, ou seja, soberanoPage 206 para que o Estado se constitua. A soberania é um elemento essencial para a existência do Estado e, com base em conceito jurídico-tradicional, é o poder exercido por uma entidade estatal que tem como característica a conjugação de autonomia e independência.

1. 2 Origem e desenvolvimento do conceito

O conceito de soberania apareceu em um momento histórico específico, apresentando características que, com o passar dos séculos, incorporaram novos elementos. A análise conceitual da soberania deve estar atrelada às condições históricas em que surge o conceito.

O termo soberania era utilizado, na Idade Média, distintamente da forma como vai ser interpretado no século XVI. A noção de soberano que qualificava a pessoa do rei passa, na Idade Moderna, a caracterizar o Estado Moderno, apresentando novo significado.

No que diz respeito à origem epistemológica da palavra “soberania”, os teóricos contrapõem-se. Segundo Paupério, Sahid Maluf, Oliveira e Ribeiro Júnior, o termo provém do latim medieval superamus, que significa “aquele que supera”. Para Menezes, vem do latim clássico super omnia11. Mas, configurou-se pelo vocábulo francês souveraineté, que, no conceito de Bodin, expressa “o poder absoluto e perpétuo de uma República”12.

Uma inquietação marcou a escolha de iniciar o estudo da teoria da soberania pelo conceito estabelecido por Bodin, que é reconhecidamente um dos formuladores do conceito moderno de soberania e, embora seja sempre citado, quase nunca se faz uma análise profunda de sua obra. Jean Bodin escreveu livros sobre variados temas e, como bem explica Barros, “não reivindicava a originalidade, no sentido de ser inédito, de apresentar algo totalmente novo. Pretende apenas introduzir sua marca na tradição que remonta aos antigos”13. Ele consagrou-se ao publicar, em 1576, Les Six Livres de laPage 207 République”, além de ter sido o primeiro a afirmar que a soberania era uma característica do Estado14.

No primeiro livro da obra Os seis livros da República, Bodin define a República15, terce detalhes sobre os seus elementos e diferencia-a da família. Segundo o autor, “República é um correto governo de várias famílias, e do que lhes é comum, com poder soberano”16. Ela surge a partir da lenta multiplicação das famílias e estabelece-se mediante a violência dos mais fortes e o consentimento dos demais.17

O primeiro elemento da República a ser explicitado foi o justo governo que serve para diferenciá-la de um bando de ladrões e piratas com os quais não se podem estabelecer relações de comércio nem fazer alianças, atividades respeitadas nas Repúblicas organizadas.18 No entendimento de Bodin, ela deve buscar território suficiente para abrigar os seus habitantes, uma terra fértil, animais para alimentar e vestir os súditos, céu e temperatura agradáveis, boa água e material para construção das casas. Posteriormente, seriam satisfeitas as comodidades menos urgentes.19

A família foi o segundo elemento a ser considerado para conceituar a República, pois ela é a sua fonte, seu principal elemento, sem o qual ela não existiria. Para Bodin, as sociedades políticas formam-se pela reunião natural de várias famílias, seja mediante o medo ou a violência. “Os antigos chamam república uma sociedade de homens reunidos para viver bem e felizmente. Dita definição, sem embargo, contém mais ou menos o necessário. Faltam, nela, três elementos principais, é dizer, a família, a soberania e o que é comum em uma república”20.

Em suma, a diferença entre a família e a República reside no fato de a...

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