A função social dos contratos e a intervenção do estado nas relações jurídicas privadas.

AutorVitor Borges da Silva
CargoAcadêmico em Direito pela UFES.
Páginas38-53

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“A velha forma esgotou-se e a nova ainda não está pronta, por isso se acredita encontrar no disforme a expressão precisa dessa vida pujante........”

(GEORG SIMMEL)

1 Introdução

A caminhada epistemológica rumo à compreensão da função social do contrato e da intervenção do Estado nas relações jurídicas privadas tem como percurso obrigatório a análise das conseqüências advindas da concepção da autonomia da vontade como princípio absoluto e incontrastável, bem como das novas feições do Estado Democrático de Direito, que adota o ideal social como um valor axiológico a nortear as suas atividades.

A concepção clássica do contrato centrou-se no liberalismo individualista, herança da Revolução Francesa, que pregava a limitação ao máximo da interferência estatal como forma de reagir ao Estado absolutista e limitador, que dominou a Idade Média. 1 Esse liberalismo deu suporte ao Estado Liberal e foi decisivo para que o século XIX abrisse terreno para a cristalização do modelo clássico dos contratos, no qual a autonomia da vontade era praticamente fonte Page 39única de produção de direitos e deveres obrigacionais na esfera contratual. A liberdade contratual, assim, encontrava barreiras apenas na ordem pública e nos bons costumes, sendo que o espectro de atuação destes últimos era bastante ínfimo.

Assim, concedia-se aos contraentes a tutela jurídica para que, isoladamente, pudessem desenvolver sua atividade econômica com plena liberdade, mostrando-se nítida a separação entre Estado e sociedade, sendo, desse modo, deferida aos particulares quase por completo a formação da ordem privada. 2

A declaração de Fouillé sobre justiça e liberdade acordada – “o que foi consentido é justo” 3 - e a crença de que o contrato é justo e eqüitativo por sua própria natureza foi gradativamente recebendo críticas ferrenhas, perdendo força e coerência.

Com o desenvolvimento do sistema capitalista, os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade defendidos pela Revolução francesa mostram-se insuficientes para proteger os indivíduos. O desequilíbrio e as desigualdades sócioeconômicas crescem a um ritmo veloz, desencadeando injustiças e insatisfações. Também na esteira da evolução do capitalismo novas técnicas de contratar ganham espaço. A necessidade de rapidez na celebração dos contratos, exigência de uma economia de consumo, enseja a formação de contratos em massa, caracterizados essencialmente pela padronização das cláusulas contratuais e pela despersonalização dos contraentes. 4

Assim, a submissão de um dos contraentes a cláusulas preestabelecidas unilateralmente pelo contraente mais forte economicamente, suprindo quase porPage 40completo a possibilidade de discussão do conteúdo dos contratos, bem como o interesse no anonimato do contraente hipossuficiente economicamente - só identificado nos casos de inadimplemento-, criam limitações à liberdade de contratar que não provêm do Direito Público, mas sim do próprio exercício desmoderado da autonomia privada.

Os efeitos da exacerbação do espírito capitalista não deixam dúvidas de que a liberdade contratual não é apta a realizar necessariamente a justiça. Segundo Ripert, com espírito capitalista egoístico, a riqueza já não é querida pelos gostos que pode satisfazer ou pelos prazeres que pode proporcionar, já que estes possuem limite; esse espírito egoístico almeja colocar a vontade a serviço da conquista de ganâncias ilimitadas, que excedem as possibilidades a serem desfrutadas pelo seu titular, de modo que a riqueza deixa de ser um meio, para concentrar-se em um fim em si mesma, constituindo, acima de tudo, em uma afirmação de poder. 5

2 Da intervenção estatal nas relações jurídicas privadas ao dirigismo contratual

Os excessos das estruturas liberais fizeram com que o dogma da autonomia da vontade se transformasse em uma ficção, já que a liberdade contratual levada ao extremo estava por ensejar a opressão do outro contraente.

Aludindo ao fenômeno de escravização do hipossuficente econômico, Gustav Radbruch aduz:

[...] as limitações legais da liberdade contratual mostraram-se, por isso, necessárias, porque num processo dialético a liberdade contratual se autolimitou, extinguindo-se, muitas vezes [...] a liberdade contratual somente poderia ser liberdade de contrato igual para todos numa sociedade de pequenos proprietários, igualmente poderosos do ponto de vista social. Quando os contraentes se defrontam como proprietários e não proprietários, a liberdade contratual converte-se numa liberdadePage 41de prescrição dos socialmente poderosos, numa servidão imposta aos socialmente impotentes [...]. 6

O cenário de desigualdade econômico-social, impulsionado pelos abusos do liberalismo econômico, enseja o surgimento de correntes socialistas. Marx e Engels denunciando os excessos da liberdade contratual, alegavam que o legado precípuo da Revolução Industrial foi transferir o poder político dos proprietários de terras para os burgueses. A Igreja Católica, por sua vez, pregava a substituição da moral individualista pela ética social. 7

Foi nesse mar de transformações e idéias que o Estado Liberal cede espaço ao Estado Social, para o qual o desenvolvimento econômico deve ocorrer vinculadamente ao desenvolvimento social. Desse modo, o Estado passa a intervir na ordem econômica e na ordem jurídica, sob a justificativa de assegurar o bem comum, assim como a proteção integral dos cidadãos. O Estado assume, assim, a feição de franco intervencionista não pela finalidade única de regular uma política econômica, mas, acima de tudo, pela necessidade de fomentar uma proteção aos economicamente mais frágeis e, conseqüentemente , garantir uma distribuição de riquezas mais justa e solidária.

A rigor, uma característica peculiar do dirigismo estatal é a qualidade das normas que o compõem, já que consistem em normas imperativas de ordem pública, que se impõem aos particulares sem que seja possível desconhecê-las ou violá-las.

O dirigismo estatal no âmbito das relações contratuais manifesta-se eminentemente em dois aspectos: a) por meio de da imposição de dispositivos coercitivos criados pelo legislador, que são impermeáveis às disposições das partes; b) por meio da atividade do magistrado, ao qual é concedida a faculdadePage 42jurídica de revisão do contrato, substituindo a vontade dos contratantes, em casos de lesão, imprevisão ou onerosidade excessiva, por exemplo.

Essa intromissão do Estado na relação jurídica contratual privada, visando balancear os valores liberdade e igualdade, é reflexo de um fenômeno nomeado por Lambert de publicização do contrato. 8 Fenômeno este que representa uma projeção do Direito Público sobre uma esfera antes exclusiva e intocável do Direito Privado, de modo que o Estado, por intermédio do legislador e da jurisdição, dirige o instituto do contrato, de modo que este deixa de ser obra exclusiva das partes, para ser uma obra de cooperação entre as partes e o Estado.

Restabelecendo o equilíbrio entre as partes, o dirigismo contratual contribui para o cumprimento do papel moralizador que todo Estado assume, na medida em que se compromete a distribuir justiça, substituindo a igualdade jurídica formal pela real.

3 A função social do contrato e o seu reflexo na principiologia contratual

Afirma-se que contemporaneamente a teoria dos contratos vive um momento de hipercomplexidade 9 , uma vez que os três novos princípios introduzidos pelo Código Civil– boa-fé objetiva, equilíbrio econômico e função social do contrato – coexistem com os princípios clássicos. Logo, os princípios da autonomia da vontade, da obrigatoriedade do contrato e da relatividade de seus efeitos não desapareceram com o surgimento dos novos princípios, mas sim foram objetos de reformulação.

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Assim, a visão social do contrato impõe uma releitura do princípio da autonomia da vontade, uma vez que a liberdade contratual deve ser operada satisfazendo o interesse social. 10 É importante ressaltar que não há uma verdadeira limitação, já que analisando o contrato no plano do querer (liberdade de querer contratar e escolher com quem contratar) e poder (liberdade de discutir o tipo e o conteúdo do contrato), pode-se afirmar que a funcionalização do contrato conduz à salvaguarda do poder de negociação e, portanto, de um dos aspectos da autonomia da vontade, quando este houver sido obstado pelas partes contratantes.

Nesse sentido, Adriana Mandim aduz “a moderna teoria do contrato não enfraqueceu a autonomia da vontade, apenas deu-lhe um approach tendo em vista o fortalecimento da verdadeira liberdade de contratar entre os personagens socioeconômicos tão desiguais”. 11

Disso resulta que a autonomia é enriquecida, quando contraditada. Não é demasiado associar à autonomia privada uma idéia de auto-responsabilidade, na medida em que o limite precípuo imposto a ela é resultado das autonomias dos outros. 12

Ademais, também o princípio da obrigatoriedade e da intangibilidade dos contratos - que consagram a concepção de que nem o juiz, nem as partes não podem alterar unilateralmente...

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