Sistema de aplicação de medidas socialmente úteis como substitutivo penal para as infrações de menor potencial ofensivo

AutorJosé Laurindo de Souza Netto
CargoJuiz substituto em 2º grau do TJPR
Páginas5-10

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1. Introdução

Cada vez se faz mais necessária uma modificação da configuração sistêmica e organizativa das práticas judiciais, tendo em vista o descompasso existente entre elas e as realidades sociais que hoje o mundo experimenta.

O sistema criminal se mostrou incapaz de realizar a justiça material que a sociedade espera.

O modelo napoleônico de organização burocrática do Estado encontra-se em crise crônica, pois persegue uma finalidade que pouco ou nada tem a que ver com as necessidades dos cidadãos.

O grave déficit de eficiência da justiça põe em primeiro plano a necessidade de se renovar a relação entre jurisdição e cidadania, levando à exigência de se modificar o sistema penal com uma contração do seu âmbito de atuação, principalmente para as infrações de menor potencial ofensivo.

Para que sejam superados os aspectos gerais de disfunção que estão na base da crise de credibilidade da justiça torna-se imperioso um sistema de aplicação de reações penais do Estado que transcenda à realidade do sistema legal existente, exigindo uma busca nas raízes dos mutamentos sociais e uma concepção de direito em que os conceitos jurídicos sejam postos como instrumentos dinâmicos de regulação social.

Se não for afastada da operacionalidade do sistema a mentalidade tradicional e burocrática das estruturas arcaicas, inconcebíveis para a realidade do milênio, com uma mudança radical dos vetustos hábitos mentais, o Direito continuará a ser obstáculo à transformação da sociedade.

Uma das características da sociedade atual é o surgimento de algo novo que obriga a revisão dos referenciais sobre o próprio ordenamento jurídico. A transmodernidade faz com que a justiça criminal se apresente como anacrônica e superada, reacendendo-se os questionamentos sobre a legitimidade do Estado no trato dos conflitos sociais, denunciando o direito penal como instrumento político e não de justiça.

A revisão dos pressupostos ideológicos vem imposta ao pensamento jurídico diante do esgotamento e insuficiência do discurso legitimante do poder instituído. O pensamento crítico como modelo de ciência jurídica apresentase então como um instrumento de transformação do sistema penal conflitivo, pois busca descobrir a origem das funções sociais das normas mais longe do que elas dizem.

Nesse contexto, bastante relevante se apresenta a substituição da justiça da jurisdição conflitiva por aquela coexistencial, estruturada no consenso.

Em muitos aspectos da vida contemporânea, a estruturação de uma vertente contenciosa na solução de certos litígios sociais é desaconselhável.

Diante da defasagem do sistema punitivo conflitivo, a urgência de se buscar a modernização do sistema propicia a aplicação de medidas socialmente úteis, como forma de reação e controle do Estado.

A atuação do poder jurisdicional em decorrência do império do fenômeno da globalização tem assumido relevância nunca antes vista, sendo que as características do tempo que vivemos vêm modificando substancialmente o papel do direito, sobretudo na perspectiva da sua aplicação judiciária.

As responsabilidades do juiz revelam-se cada vez mais acrescidas, desencadeando o fenômeno da jurisdicionalização e a crescente influência da justiça na vida cotidiana.

2. Sistemas de processo penal

O conceito de sistema no direito caracteriza-se pela pluralidade de sentidos, possuindo como denominador comum a idéia de um objeto complexo formado de componentes distintos que se ligam entre si, numa relação para formar um todo unitário.

O direito é um sistema complexo que tem por função regular as relações sociais através das normas jurídicas positivas e dos princípios.

Numa visão sistêmica mais ampla, na ciência processual penal, a referência aos dogmas inquisitório e acusatório, que são universais e atravessam os séculos de modo cíclico, permite estabelecer uma comparação sistêmica entre as ideologias dos Estados e, ainda, mensurar o grau de liberdade individual dentro de um país num certo período. Trata-se, fundamentalmente, de dois modelos que não existem em geral na sua forma pura, embora haja versões mitigadas de ambos os sistemas. Essas tipologias do processo variam de acordo com a concepção da lesão do ilícito criminal, tornandose de extrema relevância como um dos critérios principais de individualização da resposta do Estado.

O sistema de processo penal relacionase com os fins do processo e principalmente está em consonância com os fundamentos políticos inseridos nas normas constitucionais.

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3. A utilização do sistema processo penal como instrumento de poder

Prescindido do evidente conteúdo utopístico, devese reconhecer aos abolicionistas o mérito de colocar em evidência a utilização do sistema penal como instrumento de poder em modo destrutivo e opressivo.

O estudo da teoria foucaultiana sobre a microfísica do poder revela que ele se instaura nas relações de força existentes na sociedade. Os arranjos estratégicos na trama das relações de poder, através de múltiplas coerções, determinam a organização discursiva dos saberes.

Segundo Foucault, "as práticas judiciárias - a maneira pela qual entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira que se impõe a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história - me parece uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas" (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad: J.W.Prado Jr. Rio de Janeiro: Nau. 1996. p. 11).

Indispensável para a implementação do capitalismo industrial, o poder disciplinar não pode prescindir de mecanismos de controle.

Entretanto, como ensina Clèmerson Merlin Clève, "dois são basicamente os tipos de controle reclamados. Primeiro o controle da atividade judicial propriamente dita. O segundo o controle da legitimidade dessa atuação [...] Os valores consagrados na Constituição, inclusive os princípios fundamentais e as normas dedutíveis do Preâmbulo, informam o conceito de justiça que orientará a atuação jurisdicional. Justiça e racionalidade; aqui se encontram os fatores legitimadores da atuação jurisdicional no Estado Democrático de Direito" (CLÊVE, Clèmerson Merlin. Temas de Direito Constitucional e de Teoria de Direito. São Paulo: Acadêmica, 1993. p. 40-41).

4. Sistema da jurisdição consensual

Numa visão sistêmica mais restrita, o artigo 98, I, da Constituição Federal de 1988, regulado pela Lei 9.099/ 95, inaugurou uma jurisdição do tipo consensual para as infrações de menor potencial ofensivo, com diferente filosofia, determinando uma profunda modificação da sistemática reinante, dando ênfase à...

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