A teoria da firma e a sociedade como organização: Fundamentos econômico-jurídicos para um novo conceito

AutorLuís Felipe Spinelli
Páginas165-188

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1. Introdução

A sociedade (empresária ou não, na terminologia do Código Civil), vista como modo de exercício da atividade econômica, é fenômeno que sempre chamou a atenção, sendo fonte de incansáveis debates. Isso porque ela é, e cada vez mais, o verdadeiro motor do desenvolvimento, viabilizando o emprego de vastas quantidades de recursos por meio da diluição do risco, além de ser o centro de inúmeros interesses da comunidade em que inserida está.

Todavia, rotineiramente não se busca analisar nem as bases da existência de de-terminada organização econômica e tampouco seu fundamento jurídico. Quer-se dizer que não se pode tomar o fenômeno societário como uma estrutura econômica já dada, devendo-se analisar as razões para sua existência; da mesma forma, imperioso é refletir, no plano jurídico, sobre a adequação da sociedade ser encarada como um contrato plurilateral e como tal perspectiva responde às novas exigências da realidade. É isso o que objetivamos fazer neste breve ensaio.

Para concretizar nosso escopo, cumpre salientar que partimos do pressuposto de ser simplória a explicação, muito difundida, de que os indivíduos organizam-se em sociedades pela razão de buscarem fins que não conseguiriam sozinhos atingir. Com certeza existe um motivo que vai além disso, e este motivo é econômico. Destarte, primeiramente, analisaremos o funcionamento do mercado e a partir daí, seguindo a linha da Economia dos Custos de Transação, tentaremos, dentro da Teoria

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da Firma,1 alcançar as razões que levam ao aparecimento da firma2 aqui entendida, na acepção econômica da palavra, como organização produtiva (abandonando a antiga concepção neoclássica do estudo econômico com as firmas, realizando, ainda que brevemente, uma análise econômica da firma, de acordo com as correntes mais recentes).3

Posteriormente, faremos a análise jurídica do conceito de sociedade. Neste sentido, estudaremos a noção do contrato plu-rilateral, com certeza a forma mais comum de se constituírem sociedades, não esquecendo de realizar a ligação com a primeira parte do trabalho, mostrando como sua estrutura converge com o exposto sobre a Teoria da Firma; entretanto, a teoria do contrato plurilateral, como é cediço, não consegue abranger toda a gama dos fenômenos societários hoje existentes. Logo, tendo em vista o próprio raciocínio econômico (ainda que implícito) que o Direito Comercial apresenta e a necessidade que se faz, para melhor compreender a Ciência Jurídica, em abarcar o estudo de outras disciplinas,4 proporemos, por fim, como a Teoria da Firma pode auxiliar em uma mudança de perspectiva no fundamento da sociedade, a qual passa a ser entendida como organização, acolhendo, então, além daquelas originadas do contrato plurilateral, também a sociedade unipessoal e a constituída exclusivamente por lei.

2. O mercado e as razões para a existência das firmas

As organizações produtivas alternativas ao mercado (ou seja, firmas, as quais

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posteriormente serão mais bem conceituadas), sem sombra de dúvidas, apresentam fundamento econômico para a sua existência. Destarte, se quisermos realizar qualquer estudo jurídico sobre a essência das sociedades, invariavelmente, devemos passar por sua análise econômica, que é o que faremos, estudando, primeiramente, o funcionamento do mercado para, a partir daí, analisar as razões que levam à constituição de tais estruturas.

2. 1 O mercado e a existência dos custos de transação

Se possuíssemos toda a informação relevante, se pudéssemos iniciar a partir de um sistema dado de preferências e se tivéssemos conhecimento completo dos meios disponíveis, o problema de construir uma ordem econômica seria puramente lógico. Todavia, os dados a partir dos quais o cálculo econômico se inicia nunca estão, para toda a comunidade, acessíveis de maneira perfeita e completa para uma mente única que possa analisar e imaginar todas as implicações; nestes termos, o ca-ráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional é determinado precisamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias necessárias à nossa análise nunca existe de forma concentrada ou integrada, mas somente de modo disperso.5

Logo, o planejamento econômico não deve (e nem há como) ser feito de modo centralizado, visto que um único grupo de pessoas é incapaz de deter e processar to-das as informações relevantes; destarte, o planejamento deve ser dividido entre todos os indivíduos da comunidade, porque só assim teremos a aplicação máxima do conhecimento colocado à disposição dos particulares (o qual é dependente das circunstâncias de lugar e tempo, sendo privado, empírico e tácito6).7 Em outras pa-

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lavras, tem-se que, como os problemas econômicos surgem em conseqüência de mudanças, fica patente a inviabilidade de um ente centralizar muitas decisões, visto que nunca terá todas as informações necessárias para a tomada de posição, conforme salienta Friedrich Hayek: "If we can agree that the economic problem of society is mainly one of rapid adaptation to changes in the particular circumstances of time and place, it would seem to follow that the ul-timate decisions must be left to the people who are familiar with these circumstances, who know directly of the relevant changes and of the resources immediately available to meetthem".8

Portanto, como já afirmado, é descentralizando que se resolve o problema infor-macional, fazendo com que o conhecimento em suas particulares circunstâncias seja prontamente utilizado. Entretanto, cada indivíduo também não consegue ter todas as informações de que precisa para tomar sua decisão, devendo-se, além disso, considerar que eventos estranhos a ele interferem em seu posicionamento.9 Mas este problema se resolve, como já levemente mencionado, com a competição: a coordenação do conhecimento se dá através do mercado (que é o grupo de compradores e vendedores de um particular bem ou serviço),10 ou seja, através do sistema de preços.11 Aqui, cada indivíduo, em seu campo limitado, preenche os espaços e, valorando individualmente os produtos e agindo, faz com que as informações circulem (pois, por exemplo, o consumidor do outro lado do mundo não precisa ter conhecimento sobre a seca que prejudicou o produtor de arroz, já que tal informação é passada pelo sistema de preços através de uma alta na cotação do referido grão), possibilitando que as necessidades humanas sejam saciadas.12

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Logo, precisamos enxergar o sistema de preços como um mecanismo destinado a comunicar informações: torna-se possível, assim, através da divisão do trabalho, uma utilização coordenada dos recursos baseada num conhecimento repartido.13

Destarte, o mercado é verdadeira instituição, mecanismo de organização social que cria incentivos e facilita operações entre as pessoas, tendendo a aumentar o bem-estar geral da coletividade. Todavia, e apesar de ser o melhor mecanismo até hoje conhecido para a estruturação da comunidade,14 sabe-se que o sistema de pre-ços é incompleto para explicar nossa realidade, visto ser impossível crer que todas as necessidades humanas possam ser satisfeitas diretamente pelo mercado (o que seria desconsiderar as organizações criadas racionalmente pelos indivíduos). E isto ocorre porque existem custos para que se possa nele contratar (ou seja, para que se possa colocar o sistema em operação) e fazer com que as informações circulem de maneira totalmente livre, uniforme e eficiente.15 Estes custos, que passaram a ser estudados pela Economia Institucional, principalmente seguindo as pesquisas pioneiras de Ronald Coase (1937),16 são denominados custos de transação, constituindo atritos, fricções,17 que existem nas relações transacionais.18

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Diante disso, hoje se sabe que tran-sacionar no mercado envolve custos, os quais sempre devem ser levados em consideração.19 Logo, muitas vezes recorrer ao mercado para a contratação pode não constituir a atitude mais eficiente, existindo diversas formas de governança da atividade produtiva, as quais podem desembocar inclusive no surgimento da firma (como organização alternativa ou substitutiva do mercado),20 como será melhor analisado no item seguinte.

2. 2 Os custos de transação e o fundamento econômico das firmas

Segundo Oliver Williamson, a noção de custos de transação repousaria sobre cinco fatores (os quais estão inter-rela-cionados, visto que tal divisão apresenta, basicamente, caráter didático), sendo dois atinentes aos indivíduos (a racionalidade limitada21 e o reconhecimento do risco da prática de condutas oportunistas, tendo em vista a propensão à persecução de fins egoísticos22) e três atributos relacionados às próprias transações (que seriam a freqüência com que elas se dão,23 as incertezas das trocas24 e a especificidade dos

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ativos25).26 E estes fatores sempre estariam presentes (ou seja, tais predicados são i ine-rentes à condição humana e ao mercado), os quais perpassam toda a vida dos contratos firmados (e o que acarreta na natural incompletude dos pactos, mesmo quando se contrata com o maior cuidado possível: "There do not, in general, exist complete contracts - not even the completable ones"27).28

Assim, os custos de transação, que variam de acordo com cada ambiente negocial, abrangem os custos de informação, negociação e imposição do contrato, percorrendo toda a existência do pacto (ou mesmo incidindo após sua extinção). Nestes termos, Ronald...

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