A Promoção da Dignidade Humana e a Perspectiva de Desenvolvimento Socioambiental: Um Ensaio à Luz da Proibição do Retrocesso

AutorPriscila Ferraresi
CargoAdvogada. Especialista em Direito Público pela Esmafe/Unibrasil
Páginas17-28

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A agenda contemporânea dos direitos humanos promove uma interseção dos direitos relativos ao meio ambiente, ao desenvolvimento e à sadia qualidade de vida, em que pese o exercício integral das capacidades humanas.

Frustrar ou mitigar o acesso a um desses direitos culmina seja maculado o caráter integral da dignidade. O que se anseia explanar é a cadeia de eventos depreciativos do conteúdo da dignidade. De forma concatenada, a depredação ambiental afeta diametralmente a qualidade de vida. Essa pobreza, então, obsta a possibilidade de um mínimo desenvolvimento, fenômeno este que, viciosamente, propulsiona uma utilização inconsciente e desmedida dos recursos naturais na tentativa de uma insignificante sobrevivência. Por via de consequência, resta tolhida a observância e materialização dos direitos fundamentais.

Há falar, neste diapasão, portanto, na impossibilidade de divorciar sequer um dos componentes da tríade aqui formulada e exposta. Ademais, pela presença deste paralelo entre os direitos suprarrefe-ridos, faz-se necessária uma proteção de maneira global com vistas a proporcionar a tão mencionada dignidade. Origina-se, em decorrência desta conjunção, um desenvolvimento ecologicamente equilibrado e socialmente justo.

Merece realce o fato de que, em uma perspectiva tradicional, o foco dos sistemas de proteção dos direitos humanos contemplou, até o presente momento histórico, apenas os direitos sociais, econômicos e culturais. Entretanto, abre-se uma janela de onde surgem outros direitos tão essenciais aos seres humanos como os já abraçados pela proteção jurídica. Bem ainda, vislumbra-se através desta abertura

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uma nova percepção da vida, que até agora revelava acentuada dificuldade em entender o meio, posto que o visualizava através de lentes com tendência a isolar cada um dos elementos. Admira-se a vida de maneira sistêmica, entendendo os elementos holisticamente.

Imersos neste intenso caldo discursivo, presentes estão os direitos que detêm a capacidade de conduzir o ser humano à sua condição plena de existência, e, perante tal premissa, faz-se necessário otimi-zar a voz dos direitos de terceira dimensão, afastando-se qualquer e minúscula possibilidade de retroceder à condições inferiores de dignidade e bem-estar.

Sem deter a pretensiosa intenção de exaurir a temática, o presente ensaio é elaborado sob a forma de um estudo que descortina fragmentos do ideário da dignidade humana em sua dimensão ecológica, transitando pelas liberdades proporcionadas a reboque mediante a proteção do meio ambiente. Tal concepção merece ser acolhida, tendo em vista o meio ambiente sadio constituir solo promissor ao desenvolvimento pleno das liberdades e essências do ser humano, permitindo-lhe alcançar sua cabal dignidade, sendo esta, por sua vez, desígnio basal de todas as leis do Estado.

À vista do que foi colocado, as concepções dos direitos de terceira dimensão que tecem conexões íntimas entre o homem e o meio ambiente serão, nas linhas que se seguem, sumariamente delineadas, posto que a discussão que ora se denuncia está, ainda, em candente crescimento, sendo que não se verificou, na plenitude, a articulação de uma ruptura paradigmática em substrato prático, material. Sobreleve-se, por oportuno, que apesar da tutela ambiental representar meio para obtenção da completa dignidade e ainda, em que pese a irrefragável proteção ao meio ambiente encontrar guarida em muitas cartas de intenções e constituições de estados, a consecução desta1 tutela não é satisfeita de maneira substancial. O idioma predominante não conjuga a proteção ambiental com o alcance do desenvolvimento e de tantas outras liberdades e direitos que sobrevêm dessa in-ter-relação.

Encravada neste espectro de perspectivas, pois, gravita a proposta de uma progressiva ampliação de direitos fundamentais, cujos contornos elementares aportam na proibição de retrocessos que esvaziem de conteúdo o mínimo existencial (minimum core con-tent) imprescindível à dignidade.

Tema recorrente na tratativa dos direitos sociais, o mínimo existencial será examinado, no presente trabalho, sob as lentes do direito ambiental, concebendo-o como vértice ao alcance do desenvolvimento sustentável. A matriz intangível dos direitos humanos confere às relações jurídicas a possibilidade de ponderar os valores em apreço sem, no entanto, macular o cerne existencial e mínimo dos direitos, contemplando, desta maneira, a garantia da dignidade. Neste dia-pasão, a problemática ambiental versus social encontrará ponto de convergência quando se perceber que o desenvolvimento humano pleno, noutros dizeres, o alcance do exercício de todas as liberdades do indivíduo somente mostra-se possível quando o ambiente é respeitado, protegido e aproveitado de maneira consciente e ponderada. Nesta esteira, consubstanciados estão os direitos ecológicos como bases estruturais do Estado Socioambiental de Direito, uma vez que insculpidos no sistema de direitos fundamentais. Ademais, insta asseverar que a antinomia aparente entre o direito ao desenvolvimento e o direito ao meio ambiente saudável vela-se repudiada posto que ambos deitam suas raízes na realização maior da dignidade humana.

A par deste ideal, a proibição do retrocesso revela-se como a possibilidade de diálogo entre esferas por vezes antagônicas, na medida em que o retorno a níveis inferiores de proteção ambiental bem como de qualidade de vida vem a ferir e macular o próprio meio, impossibilitando ou, ao mínimo, afastando o alcance do desenvolvimento.

1. A dignidade humana como núcleo dos direitos humanos

Enfrentar a temática dos direitos humanos importa perpassar, necessariamente, pelo entendimento e interpretação da dignidade humana1 . O conceito quer significar, sob um viés universal, a dimensão intrínseca do ser humano adquirida pela sua simples existência, conforme professou Imma-nuel Kant. Constitui, em essência, uma simbologia de valores que ostenta a feição de verdadeira matriz gravitacional de todos os direitos reconhecidos como inerentes ao ser humano: estes, direitos fundamentais.

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A concepção oferecida representa, assim, a fundamentalidade de valores capazes de proporcionar e realizar as condições essenciais à existência da vida humana2

Promover a dignidade humana comporta realizar uma garantia integral do elenco de direitos humanos, observando-se o diálogo e a interpenetração entre estes valores. Merecem registro, no particular, as lições de Luís Roberto Barroso:

"O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. (...). A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência.3

E prossegue o autor, a respeito do núcleo essencial dos princípios, asseverando que, relativamente ao princípio da dignidade da pessoa humana, este núcleo corresponde ao chamado mínimo existencial.

A moldura conceitual da dignidade humana importa a proteção de uma esfera ampliada de direitos fundamentais, consoante discorrido nas linhas passadas. Neste aspecto, um dos primados da ciência jurídica a esse respeito traduz -se na existência de uma paridade hierárquica entre tais direitos. Não obstante tal assertiva, em que pese a realidade fática não constituir um invólucro hermético de relações, há, inevitavelmente, em diversas situações, um estranhamento recíproco entre direitos. Perfaz assente o discurso cuja retórica advoga pela rejeição à superposição desses direitos, em virtude de sua universalidade e indivisibilidade4.

2. Os direitos de terceira dimensão

A dignidade da pessoa humana, alçada como princípio de primeira grandeza, deve ser reconhecida numa dimensão cujos pilares de estabilidade necessitam ser cons-tantemente aprimorados, uma vez que as transformações sociais provocam alterações nos parâmetros de bem-estar.

Consoante identifica e sustenta Celso Lafer5, associados ao discurso atual dos direitos humanos, consagram-se imbricados, inter alia, o direito ao desenvolvimento e o direito ao meio ambiente arguido no debate ecológico.

A nova topografia dos direitos fundamentais reflete a expansão das necessidades dos seres humanos. Necessário realçar que para a efetiva pavimentação deste cenário foi considerado o fato de que todo o processo evolutivo da sociedade humana flutua sobre a capacidade de ingerência do homem na natureza, relação caracterizada pela imperativa complexidade, turbulência e anacronismos agudos.6

Denota-se destas colocações que o vasto catálogo de direitos fundamentais foi sendo concebido ao longo do tempo, por influência da dinâmica social. Dessa feita, por não ser concebido em um reduto engessado, o elenco de direitos humanos e toda malha principioló-gica que os acompanha, configura um construto histórico-social. No que pertine ao caráter histórico dos direitos humanos, assim preceitua Norberto Bobbio:

(...) os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem - que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens - ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder, remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor.

A respeito deste recente construto reflexivo, importa consignar as circunstâncias que direcionaram o reconhecimento desta nova gama de direitos, posto que sistema pro-tetivo...

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