Na sombra do caso Hamdan versus Rumsfeld: o direito dos prisioneiros da Baía de Guantánamo ao habeas corpus

AutorFiona de Londras
CargoProfessora da Faculdade de Direito, da Universidade College Cork, Irlanda
Páginas241-258

Traduzido por: Orlindo Francisco Borges*, Giovanna Maria Sgaria Morais**

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Introdução

Salid Ahmed Hamdan1 é um cidadão iemenita capturado em 2001 no Afeganistão. O governo dos Estados Unidos alega que ele admitiu ser motorista particular e guardacostas de Osama bin Laden e, depois de três anos detido, acusaram-no pelo crime de conspiração para a prática de atos de terrorismo. As acusações eram para teremPage 242 sido ouvidas por uma comissão militar estabelecida por um ato do Poder Executivo2 (e não do Poder Legislativo). Logo depois de a Suprema Corte dos Estados Unidos ter concedido o certiorari nas ações de habeas corpus e mandamus de Hamdan, no que se refere à legalidade das comissões militares constituídas antes que ele fosse julgado e à possibilidade de aplicação das Convenções de Genebra ao seu caso: o Congresso aprovou a s. 1005 da Lei de Tratamento ao Detento (Detainee Treatment Act), na qual o Governo alegou ter removido da jurisdição da Suprema Corte a competência para se pronunciar sobre esse pedido de habeas corpus.

A Suprema Corte valeu-se da interpretação da lei infraconstitucional para concluir que possui a jurisdição para julgar o habeas corpus de Hamdan, mesmo havendo argumentos contrários plausíveis. A Corte ainda afirmou que o Presidente Bush não possui autoridade para estabelecer comissões militares e que Hamdan teria o direito à proteção dada pelo artigo 3º da Convenção de Genebra (incorporado pelo direito norte-americano3). Nesse sentido, o caso Hamdan v Rumsfeld é reconhecido como uma reprimenda significativa para a administração Bush, no que tange a política de expansão dos poderes do Executivo em tempos de emergência, bem como uma reafirmação da Suprema Corte sobre os bem-estabelecidos limites ao Executivo frente à Constituição dos Estados Unidos4; porém, poucos foram os comentaristas que se concentraram no que Hamdan pôde dizer sobre a atitude da Suprema Corte em favor dos direitos individuais durante a “Guerra contra o Terror”.

Este artigo está focado nesta questão e identifica o caso Hamdan como uma “rigths-enforcing” decision (isto é: uma decisão em que o Tribunal tenta garantir os direitos individuais), em oposição à “democracy-enforcing” decision (isto é: uma decisão em que o Tribunal requer que todas as leis – inclusive as draconianas – sejam legitimadas por meio da imposição proveniente da promulgação de acordo com as regras do sistema constitucional). Entretanto, parece que a Administração encarou o caso Hamdan apenas enquanto uma democracy-enforcing decision. Assim, a reação do Congresso e do Executivo sobre o caso demonstrou que a decisão é interpretada como uma maneira de forçar o Presidente a requerer um tipo de autorização que o permita criar comissões militares e que permita a completa exclusão das Cortes Federais acerca das prisões na Baía de Guantánamo como uma maneira eficiente de demonstrar sua desnecessidade. O habeas corpus de Hamdan neste artigo, no entanto, é entendido como um caso em que a Suprema Corte se envolveu com a proteção dos direitos dos indivíduos, em oposição à potencial violação permitida pelo Congresso. Isto porque, como o Executivo e o Legislativo falharam na proteção dos direitos dos presos da Baía de Guantánamo à luz do caso Hamdan e de outros casos da “Guerra do Terror”, parece que, agora, a única forma da Suprema Corte proteger efetivamente os direitos dos presos da Baía de Guantánamo é reconhecendo-os como tutelados pelo direito constitucional.

1. O status quo ante

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O habeas corpus no direito americano é multifacetado e complexo, e possui um lugar sagrado na tradição constitucional norte-americana. Logo quando a Constituição foi promulgada o habeas corpus era o único direito protegido por ela, mas somente em seus termos negativos. Isso permaneceu assim até a adoção da Bill of Rights (efetivada em 1791), em que outros direitos individuais foram incorporados pela Constituição Americana, mas que (como alguns argumentam hoje5) não estavam disponíveis para todos6. A posição especial do habeas corpus continuou inalterada com o desenvolvimento do sistema jurídico americano, mesmo tendo sofrido pressões particulares em momentos de emergência – por exemplo: a famosa suspensão deste direito frente à violação da Constituição, efetuada por Lincoln7, bem como quando os nipo-americanos foram presos em massa em centros de detenção e tal direito lhes fora negado durante a Segunda Guerra Mundial8. Para se entender como o habeas corpus pode se tornar vulnerável em tempos de tensão nacional devem ser traçados seus vários níveis de proteção.

Como dito anteriormente, o habeas corpus tem proteção na Constituição americana em seu artigo I(9) (2) (Cláusula de suspensão) que alega: “o privilegio do Habeas Corpus não deve ser suspenso, a não ser em Casos de Rebelião ou Invasão em que a Segurança Pública deve requerer tal medida.”

Tal previsão claramente retrata quando o direito ao habeas corpus pode ser suspenso. É pacifico que a suspensão deve ser limitada tanto geograficamente quanto temporalmente, devendo, ainda, ser feita expressamente9. O que é mais controverso é o fato de a proteção contra a suspensão arbitrária e procrastinatória do habeas corpus indicar uma forma de direito constitucional em circunstâncias ordinárias. O Tribunal de Marshall no caso Ex parte Bollman interpretou o artigo I (9) (2) como origem de uma obrigação que provesse meios eficientes pelos quais o habeas corpus pudesse ser concedido10, mas o significado preciso desta declaração tem sido alvo de controvérsias. Isso significa que é necessário um sistema em que cada um possa pleitear pelo Habeas Corpus enquanto este direito estiver disponível ou significa que todos os indivíduos são titulares para pleitear pelo Habeas Corpus em quaisquer circunstâncias, e, como resultado, este se torna um direito que pode ser exercido?

Esta pergunta foi feita no caso INS v Cyr11 em que o ministro Scalia, em voto divergente, concordou em seguir Bollman em sua conclusão de que a cláusula de suspensão “não é garantia a qualquer conteúdo (ou mesmo a existência) do habeas corpus12”. A maioria dos votos no caso St Cyr não compartilhou dessa opinião e sustentou que a Cláusula de Suspensão cria na verdade o direito positivo à revisãoPage 244 do Habeas Corpus. A essência contida na Cláusula de suspensão surgiu antes da Suprema Corte apreciar novamente o caso Hamdan versus Rumsfeld, quando o ministro Scalia sustentou que “o direito ao habeas corpus estava preservado na Constituição13”. Aparentemente o que a Constituição fornece é um meio eficaz de contestar a legalidade das prisões. Portanto, isto agora se encontra firmado como uma alternativa adequada para o habeas corpus ser suficiente para satisfazer a Cláusula de suspensão14.

Este direito Constitucional não se estende para todos que estão sob a custódia dos Estados Unidos ao redor do mundo. No caso Johnson versus Eisentranger a Suprema Corte sustentou que os estrangeiros presos fora dos Estados Unidos não possuem direitos constitucionais, inclusive o direito ao habeas corpus. Isso foi baseado primariamente nas implicações práticas de tal constatação, mas a Corte também traçou vários fatores que forneceram bases legais para a decisão: os peticionários são inimigos estrangeiros, que nunca residiram nos Estados Unidos, que foram capturados no estrangeiro e que foram julgados e condenados por comissões militares fora dos Estados Unidos por crimes de guerra cometidos fora de seu território, bem como foram aprisionados todas as vezes fora dos Estados Unidos15. Assim, se um estrangeiro é preso fora do território norte-americano o status quo sugere que ele não possui o direito constitucional ao habeas corpus, contudo, isto não significa que ele não tenha direito ao acesso à justiça americana; o habeas corpus está disponível para eles de acordo com a legislação que o instituiu.

Com o intuito de dar uma efetividade ao direito ao habeas corpus, o Congresso Americano promulgou dispositivos legais em relação ao habeas corpus os quais estão substantivamente insertos em 28 USC § 2241. Isso dá aos Tribunais distritais federais americanos a capacidade, “dentro de sua respectiva jurisdição16”, de analisar petições de habeas corpus provenientes daqueles que se encontrem “sob a suposta autoridade dos Estados Unidos17” e daqueles que alegam “violações dos direitos ou das leis e tratados dos Estados Unidos18”. Enquanto a legislação claramente se estende para todos dentro do território americano, o status para àqueles que se encontram fora do território é incerto. No caso Johnson versus Eisentrager a Suprema Corte decidiu que os prisioneiros não possuem direito ao habeas corpus e é interessante pensar que este é um importante precedente já que foi decisivo para o emprego da Base Naval da Baía de Guantánamo, em Cuba, para servir de prisão na chamada “Guerra contra Terror19”. Esta medida baseia-sePage 245 substantivamente na localização da prisão, e é pacifico que estrangeiros presos dentro dos Estados Unidos possuem tanto a Constituição americana como a legislação acerca do habeas corpus como garantias20. Ocorre que no começo da “Guerra contra o Terror” acreditava-se que os estrangeiros presos fora do território Americano não possuíam nenhum dos dois direitos.

Se, como o governo norte americano afirma, a Baía de Guantánamo estiver atualmente fora do território dos Estados Unidos, parece que os presos estrangeiros se encontram entregues a um “buraco negro jurídico21”, segundo o qual nenhuma Corte ou Tribunal possui jurisdição para avaliar a legalidade de sua prisão na ausência de expressa descrição legal que pode, como qualquer legislação, ser repelida pelo Congresso. Em seu voto contrário em Einsentrager, o ministro Black foi expressamente avisado sobre...

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