O STF no Egito: Greve e Historia do Direito no Recurso Extraordinario no. 693.456/RJ/The Brazilian Supreme Court in Egypt: Strike and Legal History in the Special Appeal no. 693.456/RJ.

AutorSiqueira, Gustavo S.

Introducao (1)

Essa e a mistura do Brasil com o Egito Tem que ter charme pra dancar bonito Beto Jamaica / Dito / Paulinho Levi / W. Rangel No dia 27 de outubro de 2016, o ministro Dias Toffoli, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta Corte judiciaria do pais, proferiu o voto como relator no recurso extraordinario no. 693.456, proveniente do Rio de Janeiro. (2) O voto do ministro foi o vencedor, e o STF definiu novas diretivas sobre o direito de greve no Brasil.

O processo que levou ao recurso extraordinario teve inicio na cidade do Rio de Janeiro, quando professores da rede publica estadual ingressaram com mandado de seguranca para impedir o desconto salarial referente aos dias em que estavam de greve. Os professores, que eram funcionarios publicos da Fundacao de Apoio a Escola Tecnica (FAETEC), declararam greve, solicitando melhorias nas condicoes de trabalho. Esta foi a segunda greve dos professores da FAETEC em 2016, sendo que, na primeira, o tema central de reivindicacao eram os atrasos nos pagamentos de salarios. A decisao de primeiro grau negou o pedido dos servidores, que entao apelaram ao Tribunal de Justica do Estado do Rio de Janeiro, cuja decisao reconheceu o direito. O Procurador-Geral do Estado do Rio de Janeiro apresentou recurso a decisao reformada, enderecando o recurso extraordinario ao STF, o que demandou a tomada de decisao dirigida pelo ministro Dias Toffoli.

Tendo esse contexto em vista, o objetivo do presente artigo e analisar o uso da Historia do Direito no voto do ministro, a fim de analisar como esta e citada e construida na decisao. Indiretamente, pretendo compreender, a partir de um caso importante, quais sao as referencias dos votos do Judiciario brasileiro quando se constroi a historia de um direito. Sendo assim, nao entrarei em detalhes a respeito das discussoes processuais. Abordarei fundamentalmente os argumentos usados pelo ministro Dias Toffoli para fazer uma historia do direito de greve. Dessa forma, nao discutirei diversas decisoes que usam ou nao a Historia do Direito, mas tomarei como base uma decisao da principal Corte do pais para, em alguma medida, fazer um raciocinio indutivo sobre as sentencas brasileiras e a Historia do Direito.

Como disciplina "jovem" nas Faculdades de Direito do Brasil, (3) a Historia do Direito ainda e confundida com a Filosofia do Direito ou com uma erudicao sobre fatos historicos que pouco contribui para as discussoes juridicas no Brasil. (4) Discutir a importancia e os usos da Historia do Direito coloca em questao a indispensavel relacao entre teoria e pratica e mostra como a Historia do Direito pode contribuir, alem da formacao de profissionais, para a pratica cotidiana do direito.

Para tanto, o trabalho foi dividido em topicos, os quais seguem o raciocinio argumentativo do voto do ministro Dias Toffoli. Ademais, aprofundei a densidade dos periodos tratados no voto de acordo com a argumentacao trazida nele, isto e, quando o voto citava fontes, investiguei tais fontes; quando apenas reproduzia a lei, tratei de descreve-la, alem de trazer seus contextos e suas aplicacoes. Da mesma forma, utilizei metodologias da Historia, como a Historia dos Conceitos e os ensinamentos da Escola dos Annales, para pesquisar os temas e os fundamentos utilizados.

1 O voto e seus argumentos

1.1 Do Egito a Franca

A greve, talvez um dos assuntos juridicos mais controversos desde o final do seculo XIX, (5) viveu a tensao entre direito e crime (6) em muitos momentos da historia brasileira.

O ministro Dias Toffoli, no seu voto, apos o relatorio, reconheceu a relevancia do tema com as seguintes palavras: "Passo a um breve resgate historico, em face da importancia do objeto da demanda. A greve e uma das manifestacoes coletivas mais antigas e complexas produzidas pela sociedade." (7) Continua o ministro:

Sua primeira referencia historica, como se extrai dos livros, remonta ao Egito, no reinado de Ramses III, no seculo XII a.C., no episodio conhecido como "pernas cruzadas", quando os trabalhadores, por nao terem recebido o que fora prometido pelo farao, a isso se opuseram cruzando as pernas. (8) Entender a existencia da greve milhares de anos antes da existencia do proprio conceito de greve pode parecer anacronismo. A impressao e de que o passado e olhado como um simples reflexo do presente, sem que se compreendam suas peculiaridades e suas logicas. Nesse sentido, analisando o trecho historico retomado pelo ministro, diversas perguntas podem ser levantadas. A greve surgiu antes da Revolucao Industrial? Antes dos sindicatos ou associacoes de trabalhadores? Antes mesmo das nocoes de Constituicao, Estado, empregado, empregador? A palavra "greve" ja existia no Egito?

O recurso de citar o Egito como o berco da greve exigiria da mais alta Corte do pais, no minimo, uma pesquisa complexa para justificar uma citacao do periodo, que abrangesse livros especializados, trabalhos de egiptologos, linguistas, historiadores, entre outros pesquisadores.

A referencia da decisao e, no entanto, o trabalho de Luciana Fabel (9)--uma dissertacao de mestrado profissional em Administracao de Empresas defendida em 2009 na Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (FEAD). Em parte da dissertacao, a autora discute a administracao publica brasileira, os principios constitucionais, o mandado de injuncao e a greve. Toda a "evolucao" do direito de greve no Brasil e tratada em quatro paginas. Nesse sentido, Fabel sinaliza: "A primeira referencia historica acerca do tema ocorreu no Egito, no reinado [...] Naquela epoca, os trabalhadores se recusaram a trabalhar 'cruzando as pernas', porque nao receberam o que fora prometido pelo Farao." (10)

Primeiramente, e importante destacar que o regime de trabalho era baseado em uma sociedade escravocrata; chama-los de trabalhadores talvez seja um pequeno anacronismo, uma vez que o conceito de trabalhador, como existe hoje, e uma construcao de seculos posteriores. Outro ponto que deve ser sinalizado sobre as formulacoes de Luciana Fabel e que as informacoes sobre a greve no Egito nao sao originarias de uma pesquisa aprofundada sobre o tema. A autora cita como fonte o trabalho de Mila Guimaraes Carmo e Daniel Marcelo Alves Casella (11)--publicado no site http://www.webartigos.com--, que fazem uma historia do direito de greve a partir do Egito, no reino de Ramses III. Nessa publicacao, observei que as informacoes citadas foram retiradas de Amauri Mascaro Nascimento, (12) em seu livro Curso de Direito do Trabalho.

Amauri Mascaro Nascimento me parece ser a fonte original, ou seja, a "primeira referencia" sobre a greve no Egito. Em sua obra, dirigida aos alunos de graduacao em Direito--ou aqueles que iniciam o debate de algum tema, como todo manual--, quando escreve sobre os antecedentes historicos da greve, apesar de confundir greve com revoltas e reinvindicacoes, o autor cita a greve no reino de Ramses III e outras greves em Roma e na Idade Media. Entretanto, Nascimento nao apresenta nenhuma referencia bibliografica, nao cita documentos, estudos, livros, pesquisas, nada. Ele simplesmente faz afirmacoes e interpretacoes sobre fatos historicos sem evidente fundamentacao bibliografica ou empirica.

E preciso sublinhar, evidentemente, que os manuais tem funcao didatica e, muitas vezes, nao reunem os cuidados academicos e profissionais que uma dissertacao ou uma sentenca devem ter. Contudo, e motivo de preocupacao que uma decisao da maior Corte do pais cite fontes nao especializadas, que, por sua vez, tem como referencia um manual para alunos do primeiro ano de Direito do Trabalho nas Faculdades de Direito. Nascimento escreve, Carmo e Casella citam, Fabel cita e um ministro do STF repete a citacao. Percebo, entao, que a informacao citada pelo ministro do STF nao e nem sequer de fonte secundaria; e um autor que cita outro, que cita outro, e assim por diante--e, aparentemente, sem o rigor de que o tema necessita.

Diante disso, outra questao se impoe: qual e a qualidade da doutrina utilizada pelo STF? Para uma questao tao importante quanto a greve, que merece ate um historico na visao do ministro, nao seria mais adequada uma pesquisa um pouco mais complexa? Qual e o motivo de citar o Egito? Nao seria melhor discutir exemplos mais proximos e "conectados" com o debate brasileiro?

1.2 Da Franca ao Brasil

No paragrafo seguinte, o voto faz um salto historico de 3 mil anos, do seculo XII a.C. para o seculo XVIII d.C. Aqui se repete um problema muito comum em alguns trabalhos juridicos: como justificar tamanho salto historico? Em 3 mil anos de civilizacao, quantas experiencias juridicas podem ter acontecido e terem sido simplesmente ignoradas?

Para compreender melhor esse segundo passo argumentativo, cito o trecho do voto:

Ja o surgimento da greve, nos moldes em que se apresenta atualmente, decorre o regime de trabalho assalariado, fruto da Revolucao Industrial e da consolidacao do modelo capitalista. Seu marco se deu em Paris, no seculo XVIII, com a reuniao de trabalhadores na "Place de Grevre" [...] A expressao "greve" inicialmente representava o ato de permanencia de desempregados no local, a procura de trabalho, mas, com o tempo, passou a significar a uniao dos operarios que se insurgiam contra as condicoes de trabalho impostas pelos empregadores. (13) A citacao do voto nesse trecho e retirada do livro Greve: fatos e significados, de Pedro Castro, publicado em 1986 na Colecao Principios, da Editora Atica. A afirmacao confirma um fato ja consagrado por varios historiadores: o surgimento da palavra "greve" em Paris. Mas o que e preciso esclarecer, na esteira da teoria de Koselleck, (14) e que uma mesma palavra, um mesmo vocabulo pode ter, em diversos tempos e em diversos lugares, conceitos diferentes. Ou seja, o fato de a palavra "greve" existir na Franca no seculo XVIII nao implica que a palavra "greve" significa a mesma coisa no Brasil do seculo XXI. Assim, cabe aos pesquisadores e aos juristas entender as mudancas e as manutencoes de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT