STF, povos ind

Autorde Godoy, Miguel Gualano
  1. Introdução

    A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (1) (ADPF) 709, com pedido de medida liminar, objetivou a adoção de providências voltadas à evitação e reparação de graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição Federal, relacionadas às falhas e omissões no combate à pandemia do novo coronavírus entre os povos indígenas brasileiros. Por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), fora instalada, em julho de 2020, no âmbito da ADPF 709, uma instância denominada Sala de Situação.

    É sobre essa instância específica da ação que o presente artigo vai tratar. Segundo o ministro relator, Luís Roberto Barroso, a Sala de Situação deveria servir para que o Estado brasileiro, representado pelo governo de Jair Messias Bolsonaro, e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) estabelecessem um "diálogo intercultural" (BRASIL, 2020, p. 15) a respeito das demandas mais delicadas da ação, ou seja, aquelas voltadas aos povos indígenas isolados e de recente contato (2).

    A instância de diálogo entre as partes estabelecida no âmbito de um processo judicial em trâmite no Supremo Tribunal Federal é algo extremamente inédito para os povos indígenas. Aliás, não é demais lembrar que até 1988 os indígenas nem sequer possuíam capacidade postulatória, o que só se concretizou com o advento do artigo 232 da Constituição Federal. Assim, de início, é de se destacar não apenas o ineditismo da instância para eles, o que, consequentemente, gerou desafios significativos ao diálogo conforme se verá adiante; como, também, o caráter histórico da decisão ao reconhecer a APIB como legitimada ativa para a propositura de ADPF.

    Há um rol restrito de pessoas e entidades que estão legitimadas a mobilizar o Supremo Tribunal Federal para o controle de constitucionalidade concentrado, sendo elas definidas pelo Artigo 103, da Constituição Federal. Os seis partidos políticos que subscreveram por adesão a ADPF 709 em conjunto com a APIB (3) estão legitimados pelo inciso VIII, do referido artigo, por disporem todos de representação parlamentar no Congresso Nacional.

    A APIB, por sua vez, marca a história constitucional brasileira ao ser reconhecida como uma entidade representativa de classe de âmbito nacional. (4) O ministro relator reconheceu a legitimidade da APIB em uma decisão monocrática, a qual foi referendada pelo Plenário do STF por unanimidade. Conforme afirmou Luiz Eloy Amado Terena (2020) "(...) passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição, esta é a primeira vez que os povos indígenas vão ao Supremo, em nome próprio, defendendo direito próprio e por meio de advogados próprios, propondo uma ação de jurisdição constitucional".

    O ministro apontou a necessidade de respeitar as formas próprias de organizações tradicionais indígenas e garantir-lhes a possibilidade de mobilizar o sistema de justiça em defesa de seus direitos, conforme os artigos 231 e 232 da Constituição. Isso significa não apenas uma reconhecida vitória para os povos indígenas, mas também um avanço para o constitucionalismo brasileiro e, sobretudo, para o relator que, até 2014, manifestava-se de modo diametralmente oposto. No Inquérito 3.862/DF, de queixa-crime subsidiária de denúncia feita pelo Conselho Aty Guasu Guarani Kaiowá e pelo Conselho do Povo Terena em face dos Deputados Federais Luis Carlos Heinze e Alceu Moreira (5), imputando-lhes a prática do crime de racismo, decidiu o ministro Barroso por rejeitar a queixa-crime e determinou o arquivamento do procedimento, por ilegitimidade ativa, pois "(...) ainda que se cogite de legitimidade extraordinária em razão de lesão transindividual à honra da comunidade indígena, seria competente a FUNAI para propor a ação (art. 1o, parágrafo único, da Lei no 5.371/67)" (BRASIL, 2014, p. 4).

    A estratégia da APIB em acionar o Poder Judiciário com o objetivo de mobilizar o governo federal para que cumprisse com suas obrigações constitucionais e legais de proteger a saúde dos povos indígenas durante a pior crise humanitária do século XXI levou, em virtude da magnitude da ação, a desdobramentos de alta complexidade. A seguir, pretendemos mergulhar em uma parte específica desses desdobramentos, qual seja, a Sala de Situação, para compreender os desafios e as possibilidades do que o ministro relator chamou como "diálogo intercultural".

    A partir de uma abordagem de pesquisa qualitativa, realizamos uma leitura de inspiração etnográfica acerca da administração deste conflito judicializado. Para tanto, foram analisados os documentos produzidos no caso, assim como comparadas as percepções dos principais atores envolvidos no processo. Trata-se de um caso singular para a compreensão sobre como um processo judicial estruturante é mobilizado na jurisdição constitucional, em um contexto excepcionalíssimo imposto pela pandemia de Covid-19.

  2. Providências tomadas pelos indígenas

    A pandemia da Covid-19 afetou dramaticamente a vida de toda a população brasileira, com centenas de milhares de mortos e milhões de pessoas contaminadas. Considerando a tônica do discurso do atual presidente da República (desde seus mandatos como deputado federal, passando por sua campanha eleitoral para a presidência e, inclusive, após eleito) a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) diagnosticou, já nos primeiros meses da pandemia do novo coronavírus, que a população indígena seria fortemente impactada pelo descompromisso já anunciado pelo líder da atual gestão.

    Desde o anúncio da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (6), a APIB vinha anunciando em suas redes sociais o receio de que os danos e riscos para os povos indígenas fossem ainda maiores do que para o restante da população. No dia 22 de abril de 2020, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Saúde, também sobreavisava o Governo brasileiro: "o crescimento exponencial de casos confirmados de COVID-19 na população brasileira e a clara interiorização da circulação viral, com destaque para os estados do Amazonas e Amapá, nos alertam para os impactos dessa pandemia nos povos indígenas". (7) A ONU (Organização das Nações Unidas) por sua vez, apontou em um comunicado divulgado em 02 de junho de 2020, que a pandemia de COVID-19 poderia ter um "impacto devastador" sobre minorias étnicas em países como Brasil, França, Reino Unido e EUA. (8)

    A possibilidade de extermínio de etnias inteiras, sobretudo de grupos isolados ou de recente contato deveria ser considerada uma realidade diante da pandemia de Covid-19. Não se trata de hipóteses sem base empírica, mas sim de experiência acumulada. Populações indígenas, em comparação com as populações não indígenas, enfrentaram mais surtos epidêmicos e já desenvolveram estratégias diante de omissões do Estado, inclusive porque muitos desses surtos foram provocados por agentes do próprio Estado (9).

    Não é de hoje que nossa existência é uma ameaça virulenta à vida dos indígenas. Os anciãos de todos os povos, mesmo daqueles que já possuem histórias de contato com a nossa sociedade, narram episódios a respeito das inúmeras doenças letais levadas pelos colonizadores ao seio de seu convívio. O potencial de destruição que agora experimentamos com a Covid-19 (medo, ansiedade, pessoas doentes, isolamento, mortes, atividades produtivas abaladas, famílias separadas, etc.) é um antigo conhecido dos povos indígenas. As histórias de nossa chegada às suas aldeias, em um passado recente, foi, via de regra, responsável por deflagrar processos epidêmicos com elevada mortalidade, levando ao extermínio de inúmeras etnias no Brasil (10). Os sobreviventes estão aí para testemunhar nossa letalidade que, diga-se, não é apenas viral (SANTANA, 2020).

    Apesar dos avisos, lamentavelmente, esse cenário se concretizou. Na data em que este artigo foi escrito, os dados oficiais registram um total de 456.674 mortos e 16.342.162 de casos confirmados (11). Dentre os milhões de casos confirmados estiveram pessoas que entraram em contato com povos indígenas, inclusive dentro de seus territórios protegidos, como demonstram os alarmantes dados de aumento de desmatamento ilegal em terras indígenas durante o ano de 2020 e início de 2021 (OVIEDO; BATISTA; LIMA, 2021). Segundo levantamento independente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, até o momento, são 58244 casos confirmados entre os indígenas, 1179 mortos e 163 povos atingidos. (12)

    O diagnóstico feito pela APIB a levou a tomar importantes providências, como fazer seu próprio levantamento independente de dados (13) e propor a ADPF 709 motivada pela iminência de uma tragédia. No momento em que se decidiu construir a arguição, o Brasil registrava o já assustador número de 55 mil mortos por Covid-19 e pouco mais de um milhão de contaminados, números que aumentavam aceleradamente a cada dia (BRASIL, 2020).

    2.1 A ADPF 709: delimitando a análise

    A petição inicial (14) da ADPF 709 aborda a proteção dos povos indígenas em três grandes escopos: i) povos indígenas em geral; ii) povos indígenas isolados e de recente contato e iii) retirada de invasores de terras indígenas. Essa divisão é importante para entender o caminho que o processo seguiu para administrar esse conflito. Foram demandados atos distintos por parte do governo federal para esses grandes grupos de povos indígenas, em razão de suas especificidades. Este artigo aborda a forma como o processo foi conduzido em relação aos povos indígenas isolados e de recente contato. Em relação a eles, foram feitos pedidos de tomada de dois atos imediatos que seriam a base de sua proteção: a criação de barreiras sanitárias nas terras que habitam e a instalação da Sala de Situação.

    O modo como a APIB traçou a sua estratégia judicial e a forma como ela foi analisada pelo ministro relator, permite-nos dividir a arguição em blocos, conforme demonstraremos a seguir.

    Bloco 1 - povos isolados e de recente contato (PIIRC):

    (a) Determinar à União Federal que tome todas as medidas necessárias para que sejam instaladas e mantidas...

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