Sujeito de direito e interpelacao ideologica: consideracoes sobre a ideologia juridica a partir de Pachukanis e Althusser/Legal Subject and Ideological Interpellation: considerations on legal ideology based on Pashukanis and Althusser.

AutorKashiura, Celso Naoto

Introducao

Os individuos constituidos (ou, noutras palavras, interpelados) como sujeitos pela ideologia "andam por si mesmos", afirma Louis Althusser no texto de 1969 sobre os "aparelhos ideologicos de Estado". Andam por si mesmos, prossegue, porque "o individuo e interpelado como sujeito (livre) para que se submeta livremente as ordens do Sujeito, isto e, para que aceite (livremente) o seu assujeitamento, isto e, para que 'realize por si mesmo' os gestos e os atos de seu assujeitamento". (1)

Esse movimento que implica simultaneamente subjetivacao e assujeitamento, o movimento da interpelacao, conceito central da teoria da ideologia de Althusser, guarda intima conexao com a forma essencialmente burguesa do sujeito de direito: (2) o individuo e, na sociedade burguesa, constituido como sujeito de direito precisamente para que, "por si mesmo", no pleno uso de sua autonomia da vontade, realize o seu assujeitamento. A "ilusao" de sua liberdade, que ao mesmo tempo marca a sua condicao de sujeito e permite a sua submissao ao capital, e, antes de tudo, uma "ilusao" juridica.

As linhas que seguem tem por escopo lancar alguma luz sobre essa "ilusao juridica", mais especificamente com vistas a investigar, ainda que de modo parcial, o papel desempenhado pela forma sujeito de direito no movimento da interpelacao ideologica. Trata-se, noutras palavras, de mostrar algumas importantes conexoes entre a subjetividade que se constitui pela interpelacao e a subjetividade juridica.

Para tanto, faz-se necessario enfrentar, em primeiro lugar, a propria subjetividade juridica e suas determinacoes, especialmente a questao da sua especificidade historica. A referencia essencial para uma tal investigacao e o pensamento de Evgeni Pachukanis, sobretudo aquele desenvolvido em "A teoria geral do direito e o marxismo" (1924), bem como os desenvolvimentos posteriores da critica do direito no interior da teoria marxista. Sera assim possivel, a seguir, voltar a atencao, em especifico, para a teoria da ideologia de Althusser e buscar nela o lugar, ainda que implicito, a ser ocupado pelo sujeito de direito.

  1. Sujeito de direito e capitalismo

    Na contramao do pensamento juridico tradicional, que concebe o sujeito de direito como condicao "natural" do homem (por exemplo, no jusnaturalismo) ou como produto de uma determinacao "puramente" normativa (por exemplo, num positivismo juridico radical como aquele de Hans Kelsen), Pachukanis encontra a raiz do sujeito de direito no interior da estrutura social correspondente ao modo de producao capitalista. Longe, portanto, de uma suposta "naturalidade" alheia a historia ou do carater "secundario" de categoria decorrente de uma normatividade "primaria", o sujeito de direito e concebido como forma historica, intimamente vinculada ao advento de uma forma historica de sociedade, e, mais ainda, como a forma fundamental do fenomeno juridico como um todo, com relacao a qual a norma juridica mesma nao e senao um momento derivado. (3)

    Pachukanis propoe, com solido fundamento em Marx, uma aproximacao entre as categorias do direito e o processo de troca. O sujeito de direito se desvela, assim, como o "outro lado da mercadoria": se a circulacao mercantil exige, por um lado, que os objetos da troca nela figurem sob a forma social identica de mercadoria, pura materializacao de trabalho abstrato, suporte abstrato do valor, exige tambem, por outro lado, que os agentes da trocauma vez que as mercadorias nao podem realizar a troca por si proprias, como lembra Marx (4)--nela se reconhecam reciprocamente sob a forma social identica de guardioes de mercadorias, proprietarios abstratos, sujeitos de direito.

    A relacao de troca se realiza, portanto, entre coisas sob a qualidade identica de mercadorias, imediatamente mensuraveis umas em relacao as outras em termos de valor, e entre pessoas que se reconhecem como igualmente portadoras de mercadorias (ou seja, de valores), sob a qualidade identica de sujeitos de direito. Noutras palavras, a relacao de equivalencia (valor) entre mercadorias se realiza por intermedio da relacao juridica entre sujeitos de direito--relacao que aparece aqui como contratual, na qual os sujeitos de direito se reconhecem reciprocamente como iguais e livres, portadores de vontade autonoma que "habita" as mercadorias e que as poe em movimento na troca.

    O "segredo" da forma sujeito de direito se encontra, entao, na propria materialidade do processo de troca de mercadorias: (5) o sujeito de direito e constituido em funcao da troca de mercadorias, a atribuicao de uma vontade livre por meio da qual o sujeito de direito se coloca numa relacao de igualdade perante outro sujeito de direito e uma exigencia da troca de mercadorias. A vontade autonoma do sujeito de direito nao determina a relacao de equivalencia entre as mercadorias que o proprio sujeito conduz para a troca, mas e, na realidade, determinada por ela. A vontade autonoma, o reconhecimento reciproco, a igualdade e a liberdade juridicas nao provam, assim, qualquer qualidade "superior" intrinseca ao homem, qualquer disposicao imanente para a "moralidade", qualquer determinacao "espiritual" que situaria a pessoa (como agente da troca, sujeito) acima da coisa (como objeto da troca, mercadoria): a subjetividade juridica e constituida para a troca mercantil, como condicao para que o valor consubstanciado no corpo das mercadorias se realize na esfera da circulacao - em ultima instancia, para que o movimento de valorizacao do valor, determinado desde a producao capitalista, que "aparece e nao aparece na circulacao", tenha lugar.

    "O vinculo social enraizado na producao [pode, entao, concluir Pachukanis] apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas, de um lado, como valor mercantil e, do outro, como capacidade do homem ser sujeito de direito." (6) Essas "duas formas absurdas", cujo espaco privilegiado e, sem duvida, a circulacao mercantil, exprimem, cada uma a seu modo, as exigencias e as determinacoes - e, assim tambem, as contradicoes--historicamente especificas do modo de producao capitalista. O seu carater absurdo e, em ultima analise, reflexo do carater absurdo da producao capitalista mesma.

    A producao capitalista implica, como se sabe a partir de Marx, a relacao de capital, relacao entre classes sociais mediada pelos meios de producao, relacao na qual o trabalho se subsume ao capital, na qual o trabalho e explorado pelo capital. Mas essa relacao de exploracao, cuja realizacao pratica se da no interior do processo de producao ("curtume"), exige antes o encontro entre trabalhador e capitalista na esfera na circulacao ("eden dos direitos do homem"), encontro que se expressa juridicamente como relacao contratual entre sujeitos de direito. (7) Se, nesse sentido, a qualidade de portador de mercadoria e o que torna o homem sujeito de direito, essa relacao contratual surpreende um dos seus sujeitos, o trabalhador, como portador de uma mercadoria muito peculiar: a forca de trabalho.

    A forca de trabalho e a propria capacidade de trabalho do trabalhador, ou seja, o que o trabalhador aliena ao capitalista no contrato de trabalho e a utilizacao de suas forcas vitais, no processo de producao, durante um intervalo de tempo determinado. Trata-se, entao, de uma mercadoria peculiar porque, antes de tudo, a forca de trabalho e, em certo sentido, o proprio trabalhador: ao alienar um tempo determinado de utilizacao da sua forca de trabalho, o trabalhador aliena um tempo determinado de utilizacao de suas proprias forcas corporeas e intelectuais. Trata-se, mais ainda, de uma mercadoria peculiar porque a forca de trabalho contem em si a especificidade de, uma vez consumida, isto e, uma vez posta em movimento no processo de producao propriamente dito, gerar uma quantidade de valor superior aquela dispendida como seu equivalente a titulo de salario: essa diferenca (mais-valor) e apropriada pelo detentor dos meios de producao, o capitalista.

    O trabalhador e, portanto, constituido como sujeito de direito na medida em que figura como guardiao da mercadoria forca de trabalho, o que significa dizer: na medida em que figura como guardiao de si mesmo como mercadoria. O sujeito de direito que aliena a sua forca de trabalho se realiza duplamente nessa relacao: como sujeito de direito (igual e livre perante outros sujeitos de direito) que aliena e, ao mesmo tempo, como objeto de direito (mercadoria equivalente perante outras mercadorias) que e alienado. (8) Pode-se entao afirmar que a elevacao do trabalhador direto, expropriado dos meios de producao, a condicao de sujeito de direito decorre da sua reducao, na sociedade burguesa, a condicao de mercadoria.

    "O escravo [diz Pachukanis] e totalmente subordinado ao seu senhor e e precisamente por esta razao que a relacao de exploracao nao necessita de nenhuma elaboracao juridica particular. O trabalhador assalariado, ao contrario, surge no mercado como livre vendedor de sua forca de trabalho e e por isso que a relacao de exploracao capitalista se mediatiza sob a forma juridica de contrato." (9) Trabalhador assalariado e capitalista celebram um contrato apenas por meio do pleno uso de suas liberdades: ambos sao e se mantem, portanto, sujeitos de direito plenamente livres e iguais. O...

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