Novas tecnologias reprodutivas e direito: mulheres brasileiras entre benefícios e vulnerabilidades

AutorTaysa Schiocchet/Paula Pinhal de Carlos
CargoMestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e doutoranda pela Universidade Federal do Paraná/Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Páginas250-260

Taysa Schiocchet1

Paula Pinhal de Carlos2

Page 250

1 Introdução

A discussão sobre as novas tecnologias reprodutivas3 tem tomado grande proporção no Brasil na área acadêmica, além de estar na pauta de discussão sobre políticas públicas, na mídia e no âmbito dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Por outro lado, a participação feminista na reflexão bioética ainda é incipiente, mas tenta introduzir a perspectiva de gênero4 no enfrentamento dessas questões. A entrada da mulher no mercado de trabalho, a difusão dos métodos contraceptivos, a urbanização, o estresse, dentre outros fatores, tem adiado a realização do projeto parental de muitas mulheres e muitos homens. O fenômeno do envelhecimento da população já atinge países em desenvolvimento, como o Brasil, sendo uma das conseqüências da redução das taxas de fertilidade.

Tais fatores têm levado muitas mulheres e casais a, diante de seus problemas de fertilidade, buscarem os serviços de clínicas de reprodução assistida. No Brasil, esse serviço é explorado sobretudo pela iniciativa privada (são poucos os hospitais públicos que atendem esses casos pelo Sistema Único de Saúde). A falta de legislação sobre as novas tecnologias reprodutivas, bem como a não fiscalização das clínicas, acabam por gerar vários malefícios para as mulheres e sua saúde. Diante dessas questões, pretendemos analisar em que medida as mulheres são efetivamente beneficiadas pelo advento das novas tecnologias reprodutivas. Procuraremos, a partir de uma aproximação ética e jurídica, verificar em que condição a utilização dessas técnicas constitui de fato uma conquista para as mulheres. Para tanto, primeiramente proporemos uma crítica à racionalidade científica e ao paradigma desenvolvimentista, buscando perceber como as novas tecnologias reprodutivas podem ser utilizadas de forma prejudicial às mulheres, num exercício de biopoder. No segundo momento, enfrentaremos a questão da vulnerabilidade da mulher diante das novas tecnologias reprodutivas, a partir da perspectiva da bioética feminista, com especial atenção ao consentimento informado. Por fim, verificaremos se a utilização das novas tecnologias reprodutivas pode ser vista como exercício dos direitos reprodutivos, no que se refere ao acesso universal às técnicas e à confidencialidade dos doadores a partir da Constituição Federal brasileira.

2 Desenvolvimento tecno-científico em torno das novas tecnologias reprodutivas e do biopoder desde uma perspectiva dos direitos das mulheres

A ciência, desenvolvida segundo modelos matemáticos e uma correspondente técnica construída sob modelos mecanicistas, sustentou a ideologia do progresso contínuo. O paradigma positivista da produção e do desenvolvimento econômico estimula a lógica de mercado capitalista e, portanto, o desenvolvimento dessas novas tecnologias reprodutivas, na medida em que elas são lucrativas. A preocupação com a promoção, proteção e prevenção da saúde reprodutiva, em contrapartida, é ínfima, tanto na esfera médica, científica ou mesmo jurídica. A ciência, no seu processo de institucionalização, adquire um status de neutralidade e deixa de ser vista como produto da própria sociedade. Isso permite um esquecimento da influência cultural e das relações de poder nos encaminhamentos das atividades científicas e, mais especificamente, conforme Cardoso e Castiel, naquilo que se define como questão científica, no que se convenciona como objeto de estudo, como são feitas as pesquisas, como se fixam os critérios que determinam a pretendida verdade de um fato e, por fim, como se dá a difusão científica e a comunicação pública dos achados (2003).

O processo de institucionalização do saber e daqueles que detêm o "poder" ou "habilidade" de conhecer dá-se a partir das próprias características presentes em determinada sociedade e em determinado momento histórico. Assim, numa sociedade normalizadora, patriarcal, hierarquizada,Page 251 sexista, homofóbica e fundamentalista, serão essas as bases que concederão legitimidade ao conhecimento em questão e poder àqueles que detêm esse conhecimento. Oliveira refere que as instituições promotoras das ciências ainda são dominadas por homens. Os veios de pesquisa não são neutros quanto ao recorte de classe, de gênero e de raça/etnia, e a definição do que pesquisar está atrelada às necessidades de quem financia aquele conhecimento (2002, p. 98).

Apesar da consciência ocidental da ambivalência dos processos modernos, Morin e Kern afirmam que a crítica da modernidade, longe de poder ultrapassá-la, dá à luz um pobre pós-modernismo que consagra a incapacidade de conceber um futuro (2003). Para esses mesmos autores, "desenvolvimento" representa um mito global de bem-estar, redução das desigualdades e felicidade próprios das sociedades industrializadas. Por outro lado, representa uma concepção redutora, que tem o crescimento econômico como referência necessária e suficiente para todos os desenvolvimentos sociais, psíquicos e morais, que ignora a cultura, a solidariedade, a comunidade e a identidade humanas. "A noção de desenvolvimento encontra-se gravemente subdesenvolvida. A noção de subdesenvolvimento é um produto pobre e abstrato da noção pobre e abstrata de desenvolvimento" (p. 78). A natureza, segundo Jungues, foi sendo manipulada segundo interesses humanos e tratada como um objeto (2001, p. 10). Essa dominação é estabelecida de maneiras variadas e bastante sutis. Aquilo que, num primeiro momento, é visto como uma conquista das mulheres pode significar, numa análise mais cuidadosa, a manutenção ou mesmo o fortalecimento da vulnerabilidade/instrumentalização do feminino. Isso fica mais nítido quando percebemos que as relações entre dominador versus dominado e ciência versus natureza, mantém num dos pólos a figura feminina, enquanto que o masculino permanece no outro pólo com poder e legitimidade para dizer e agir, com certa imunidade, sobre os corpos femininos.

A partir do momento em que percebemos que as classes médica e científica tornaram-se um locus de poder e de dominação privilegiados, e que tais são formados majoritariamente por homens, a leitura que fazemos da utilização que vem sendo dada às novas tecnologias reprodutivas traz algumas denúncias. Dentre elas, a configuração de relações (re)produtivas que instrumentalizam a mulher e seu corpo em nome da produção de um novo ser. Como conseqüência, inúmeros direitos e garantias fundamentais das mulheres são desrespeitados. A biotecnologia e, especificamente, as novas tecnologias reprodutivas, representam a manipulação da vida, em muitos casos, voltada exclusivamente à captação de lucros. Ocorre que essas inovações tecnológicas não se restringem mais à apropriação e à manipulação de corpos. Elas ultrapassam esses limites, para exercer um biopoder em nível celular.

Tais técnicas reprodutivas acabam reforçando a manutenção da obrigação reprodutiva feminina ao vender a cura para a infertilidade. Mediante a ampla divulgação da eficiência e possibilidade dessas técnicas, inúmeras mulheres ingressam, sem saber, num processo penoso e invasivo, na busca pela realização do desejo de gerar o bebê sonhado. Entendemos, com Oliveira, que a análise desse processo de medicalização do desejo de ter filhos deve levar em consideração a possibilidade de materialização de desejos sexistas, racistas e eugênicos, sustentados na exploração de classe (econômica) (2001). Num horizonte de valores e num mecanismo de economia o poder é representado pela figura monetária, afirmam Hardt e Negri. "Não existe nada, nenhuma 'vida nua e crua', nenhum panorama exterior, que possa ser proposto fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada escapa do dinheiro. A produção e a reprodução são vestidos de trajes monetários" (2003, p. 51).

O biopoder, segundo Foucault, é uma força produtiva que focaliza as experiências biológicas de uma população. Se nas sociedades pré-modernas esse poder sobre a vida assentava-se na autoridade do rei e no direito de matar, nas sociedades modernas ele se encontra difuso e se faz exercer sobre a própria vida. As autoridades, ao invés de impedir ou destruir a vida, têm como tarefa sustentá-la e submetê-la a controles e regulações precisas para otimizarem suas capacidades (1988). Hardt e Negri destacam, a partir dos conceitos foucaultianos de sociedade disciplinar e sociedade de controle, a forma de produção de um biopoder na sociedade de controle (atual). Na sociedade disciplinar recorre-se, sobretudo, a normas jurídicas para o exercício de poder, enquanto que na sociedade de controle isso se dá por meio de um conjunto de técnicas de controle. Tais técnicas são constitutivas da própria subjetividade e normalizadoras da vida social. Uma delas é a biopolítica e refere-se à tecnologia do poder estatal voltada ao desenvolvimento da economia de mercado. OPage 252 poder passa a ser exercido diretamente sobre o cérebro e os corpos, com o objetivo de estabelecer um estado de alienação. O biopoder, nesse sentido, refere-se à produção e à reprodução da própria vida (2003, p. 42-44).

Com o enfraquecimento das soberanias nacionais, Gediel afirma que a natureza biopolítica do poder que estrutura o biopoder ajusta-se, perfeitamente, às atuais necessidades do mercado e, sobretudo, ao setor que produz e regula o acesso às novas tecnologias da saúde, estimulando o consumo de novas necessidades vitais (2002, p.338). Paralelamente, ganha espaço o aspecto ideológico incorporado pela sociedade em suas práticas sociais a partir das descobertas biotecnológicas. Trata-se do reducionismo biológico ou...

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