Teoria dos jogos aplicada à responsabilidade civil dos administradores de instituições financeiras

AutorThiago Spercel
Páginas219-235

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Introdução

1. A atividade bancária no Brasil e no exterior sofre regulamentação especial por lidar com a moeda e o crédito, e conseqüentemente com o interesse público. Uma crise nos setores bancário e financeiro pode afetar a sociedade como um todo e desestabilizar a economia do País, motivo pelo qual sempre se busca evitar o risco sistêmico por meio da intervenção do órgão regulador.

2. Nesse contexto, a responsabilidade civil dos administradores de instituições financeiras é tema que tem gerado muita controvérsia no direito brasileiro, em parte pela pouca clareza da redação dos dispositivos legais que regem o assunto, e em parte pela necessidade de uma compreensão econômica da atividade bancária para a correta apuração do real sentido da norma.

3. Ao analisar o tema, a doutrina o faz por vários ângulos, de modo que consagrados juristas tomam partidos opostos, com base numa variedade enorme de argumentos. Embora a jurisprudência tenha se posicionado majori tari amenté a favor da responsabilidade objetiva dos administradores, ambas as teorias - subjetiva e objeti- va - têm defensores respeitáveis e argumentos convincentes, tornando difícil ao usuário e ao aplicador da lei identificar qual posição adotar, e principalmente, qual a regra do jogo.

4. O propósito desse trabalho é expor em linhas gerais as principais correntes doutrinárias sobre a responsabilidade civil dos administradores de instituições financeiras para, em seguida, aplicar os princípios metodológicos da teoria dos jogos visando demonstrar os efeitos econômicos de cada uma das opções existentes, levando-se sempre em consideração a finalidade última da lei, a proteção do sistema bancário brasileiro e o bem-estar social.

5. Embora tentador, não se pretende discutir os argumentos jurídicos das correntes teóricas existentes, apenas contextuali-zá-las em linhas gerais para permitir a compreensão econômica de cada uma delas.

Responsabilidade civil - Noções básicas

(a) Código Civil brasileiro

6. O ordenamento jurídico atual prevê um sistema dualista de responsabilida-

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de civil, coexistindo o sistema subjetivo (baseado na conduta culposa ou dolosa do agente) com o sistema objetivo (baseado no risco da atividade e independente da conduta do agente). A regra geral é a responsabilidade subjetiva que depende de omissão, negligência ou imprudência dos agentes, como se compreende dos arts. 186 e 927 do Código Civil em vigor (com nossa ênfase):

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a ou-trem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

7. Não obstante, existem inúmeras exceções que se apoiam na responsabilidade objetiva, como são os casos da responsabilidade do fornecedor na relação de consumo, dos crimes ambientais (Lei 9.605/ 1998, art. 4-), dos débitos da seguridade social (Lei 860/1993, art. 13) e dos atos do Estado.

8. Em especial, vale destacar que o sistema de responsabilidade objetiva foi recentemente estendido pelo novo Código Civil para englobar as atividades que cos-tumeiramente geram risco para terceiros. Nessa linha, o parágrafo único do art. 927 do Código Civil estabelece que:

Art. 927, parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

9. O jurista italiano Pietro Trimarchi1 explica que, na atividade empresarial, a indenização de danos regularmente causados no exercício de uma atividade de risco, principalmente industrial, é um custo que deve entrar no cálculo financeiro de um empreendimento, assim como matéria-prima, salários, energia e outros. Em razão disso, esse custo também deve entrar no cálculo do preço do produto ou do serviço. Nessa linha, o professor italiano entende que, em adotando a responsabilidade objetiva para atividades de risco, os empresários seriam estimulados a reduzir, controlar ou terceirizar o risco de suas atividades, uma vez que a diminuição desse custo significaria um aumento do lucro auferido.

10. Nesse caso, conforme prevê Gustavo Tepedino,2 a justiça distributiva é realizada diretamente pela empresa (ou pela seguradora) e indiretamente pela sociedade, pois o custo desse ressarcimento estará embutido no preço do produto.

(b) Administradores de sociedades anônimas em geral

11. No Brasil, as instituições financeiras privadas3 só podem se constituir sob a forma de sociedade anônima (Lei 4.595/ 1964, art. 25). Nesse tipo societário, os administradores4 não são pessoalmente responsáveis pelas obrigações que, em virtude de ato regular de gestão, em nome da sociedade contraem. Como meros órgãos encarregados de representá-la nos atos de administração, nada contraem pessoalmente.

12. Todavia, o direito brasileiro cuidou de estabelecer limites e princípios norteadores da conduta dos administradores, fixando seus deveres e responsabilidades. Nos termos dos arts. 153 e 154 da Lei de Sociedades por Ações, o administrador da companhia deve empregar, no exercício

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de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios, sempre atuando no interesse da companhia. A lei cuidou de especificar seus principais deveres e responsabilidades, como o dever de lealdade (art. 155), de conflito de interesses (art. 156) e de uso de informações (art. 157).

13. A Lei de Sociedades por Ações determina que o administrador responderá civilmente perante a sociedade pelos prejuízos que causar, somente quando proceder: (i) dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; ou (ii) com violação da lei ou do estatuto. Além disso, o administrador não é responsável por atos ilícitos de outros administradores, salvo se com eles for conivente, se negligenciar em descobri-los ou se, deles tendo conhecimento, deixar de agir para impedir a sua prática.

14. Nota-se, portanto, que a Lei de Sociedades por Ações consagrou a mesma responsabilidade subjetiva prevista como regra geral no Código Civil brasileiro, baseada na conduta culposa ou dolosa de cada um dos administradores, considerada isoladamente.

(c) Administradores

de instituições financeiras

15. No passado, a Lei 1.808/1953 claramente atribuía responsabilidade subjetiva aos administradores dos bancos e casas bancárias, dependente de prova da ocorrência de culpa ou dolo na conduta do agente, em linha com a regra geral do Código Civil. Confira-se o art. da referida lei, com nossa ênfase:

Art. 2º Respondem solidariamente pelas obrigações assumidas pelos bancos e casa bancárias durante a sua gestão e até que eles se cumpram, os diretores e gerentes que procederem com culpa ou dolo, ainda que se trate de sociedade por ações ou de sociedade por cotas de responsabilidade limitada.

16. A reforma bancária de 1964 introduzida pela Lei 4.595/1964 alterou a redação do art. 2ºda Lei 1.808/1953, para lhe retirar a expressão "que procederem com culpa ou dolo". Essa supressão, para a doutrina que defende a corrente objeti vista, representou o abandono da responsabilidade subjetiva no. que tange aos administradores de instituições financeiras.

17. Mais tarde, em 1974, a Lei 6.024/ 1974 tratou de consolidar e revogar os diversos diplomas que regravam a o processo de intervenção e liquidação extrajudicial de instituições financeiras. Essa lei dedicou grande espaço à problemática da responsabilização dos administradores, estabelecendo, entre outros, a indisponibilidade automática de todos os bens dos administradores de instituições financeiras em intervenção ou liquidação até a apuração e liquidação final de suas responsabilidades,5 a se processar em inquérito do Banco Central e ação própria movida pelo Ministério Público ou qualquer credor.

18. A natureza da responsabilidade a ser apurada na forma exposta acima vem delimitada nos arts. 39 e 40 da Lei 6.024/ 1976:

Art. 39. Os administradores e membros do Conselho Fiscal de instituições financeiras responderão, qualquer tempo salvo prescrição extintiva, pelos atos que tiverem praticado ou omissões em que houverem incorrido.

Art. 40. Os administradores de instituições financeiras respondem solidariamente pelas obrigações por elas assumidas durante sua gestão até que se cumpram.

Parágrafo único. A responsabilidade solidária se circunscreverá ao montante e dos prejuízos causados.

(c-1) A responsabilidade subjetiva

19. Antes da retirada da expressão "que procederem com culpa ou dolo" por

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meio da Lei 1.808/1953, a doutrina majoritária defendia a responsabilidade subjetiva dos administradores de instituições financeiras, sem solidariedade entre os diretores, conforme segue:

(i) Trajano de Miranda Valverde entendia que a responsabilidade civil dos administradores era individual e dependia de prova da culpa de cada diretor para o surgimento daquela responsabilidade, sendo que aqueles que não tinham participado dos atos e omissões culposas não poderiam responder solidariamente;6

(ii) Vicente Ráo entendia que os diretores de bancos ou casa bancárias somente respondiam solidariamente, na vigência do art. 2º da Lei 1.808/1953, pelos atos dolosos ou culposos que houvessem praticado, o que dependia da conclusão do competente inquérito;7

(iii) San Tiago Dantas era da opinião de não haver responsabilidade civil sem nexo de causalidade entre o dano e determinado ato imputável a alguém, concluindo pela existência de solidariedade apenas entre os diretores culpados, na medida em que cada um deve responder somente pela própria culpa;8 e

(iv) João Mangabeira afirmava que 11 não é preciso saber direito, mas apenas saber ler" para concluir que não existe solidariedade entre diretores culpados e não culpados, havendo a...

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