The court of gender and the problem of effective human rights of women/ O genero da justica e a problematica da efetivacao dos direitos humanos das mulheres.

AutorSeveri, Fabiana Cristina

Introducao

As reflexoes recentes a respeito das dificuldades no funcionamento das estruturas criadas pela Lei Maria da Penha tem evidenciado as resistencias e limites do sistema de justica em garantir uma prestacao jurisdicional adequada nos casos envolvendo violencia de genero. Elas tambem reforcam a necessidade de avancarmos em analises que possam servir para impulsionar mudancas qualitativas profundas no padrao de respostas do sistema de justica para mulheres (PASINATO, 2010; DEBERT; GREGORI, 2008; AUGUSTO, 2015).

Alem dos desafios proprios da atuacao em casos envolvendo um fenomeno tao complexo como a violencia de genero, os agentes do sistema de justica tambem precisam lidar com problemas ligados a aspectos estruturais e simbolico-culturais que constituem suas instituicoes e que dificultam a incorporacao de uma perspectiva de genero (e tambem de raca, etnia e classe social) nos seus processos decisorios e na implementacao dos mecanismos para coibir e prevenir a violencia de genero delineados pela Lei Maria da Penha (ALMEIDA, 2007; BARSTED; PITANGUY, 2011). Por isso, entendemos ser interessante discutir tais problematicas de modo articulado aos debates recentes, formulados por organizacoes de direitos humanos e movimentos sociais, sobre a democratizacao do sistema de justica brasileiro (ESCRIVAO FILHO et al., 2015).

Buscamos, nesse momento, enfatizar a questao da participacao das mulheres no Judiciario brasileiro e discuti-la a partir do campo de estudos de genero e feministas que exploram a analise da persistencia da discriminacao nos contextos de organizacao da carreira da Magistratura e da construcao social das identidades e subjetividades dos sujeitos nela envolvidos.

O termo genero sera utilizado como instrumento analitico para problematizar as relacoes assimetricas e hierarquizadas de poder entre homens e mulheres nas carreiras da Magistratura brasileira, bem como as naturalizacoes das diferencas entre os sexos/generos no contexto das relacoes profissionais da Magistratura. Tambem, seguindo a proposta de Matos (2008), ele sera entendido como um campo cientifico, o campo de genero e feminista, problematizador dos universais abstratos, das hierarquias e das subordinacoes, critico contumaz das opressoes de todas as ordens, comprometido com a construcao de vinculos mais simetricos e saberes emancipatorios e democraticos.

Para Scott (1995), uma das principais utilidades das analises com base na categoria genero e a possibilidade de aprofundar os sentidos construidos sobre o masculino e o feminino, transformando "homens" e "mulheres" em problematicas, e nao em categorias fixas, dadas de antemao. A partir dai, e possivel investigarmos, por exemplo: como o genero organiza as relacoes sociais, significa as coisas e define as identidades pessoais e como os sentidos e significados construidos com base nas diferencas sexuais sao hierarquizados, de modo a inferiorizar alguns dos polos (as mulheres, na maioria dos casos).

Ha um amplo e diversificado conjunto de estudos em genero construido, sobretudo, a partir dos anos 1970, no ambito dos chamados estudos de mulheres e estudos feministas, em que o termo genero assume definicoes e funcoes distintas, fundadas em matrizes teorico-metodologicas bastante variadas tambem. Para Matos (2008), se consideramos os resultados da adocao de genero em articulacoes mais recentes com problematicas fronteiricas ao feminismo e transversalizado por categorias como classe, raca e etnia e, e possivel afirmar que os estudos de genero tem colocado em xeque todo tipo de binarismo e funcionado como um importante eixo aglutinador de intensa discussao critica e reflexiva dedicada a denunciar "as estruturas modernas de muita opressao colonial, economica, geracional, racista e sexista, que operam ha seculos em espacialidades (espaco) e temporalidades (tempo) distintas de realidade e condicao humanas". Por isso, ela propoe pensar genero como um campo cientifico, o campo de genero e feminista, construido a partir de perspectiva critico-reflexiva e com propositos emancipatorios (MATOS, 2008, p. 336).

Os dados empiricos aqui apresentados sao resultados parciais de nossas atividades de pesquisa, iniciadas em 2012, que tem como foco de analise as relacoes entre os tribunais de justica e a sociedade brasileira, com vistas a compreensao critica acerca das dificuldades de acesso a justica e de efetivacao de direitos humanos das mulheres. Eles referem-se as informacoes gerais sobre o perfil institucional e composicao dos tribunais estaduais do pais, especialmente dos tribunais do estado de Sao Paulo (TJSP) e do Para (TJPA), obtidas por meio de analise documental, observacao participante e entrevistas.

  1. O genero da Justica: desigualdades entre mulheres e homens na composicao do Judiciario brasileiro

    0 Poder Judiciario, na maior parte dos paises latino-americanos e caribenhos, ainda se mantem predominantemente composto por homens, apesar da ampliacao da participacao das mulheres nas ultimas decadas (1) em tal esfera de poder. Em 2011, a media geral de mulheres nos tribunais maximos de justica dentre os paises da America Latina e Caribe foi de 22,6%. Mais da metade deles apresentaram percentuais acima dessa media: Chile (25%), Cuba (27%), Republica Dominicana (27%), Nicaragua (29%), El Salvador (33%), Costa Rica (35%), Porto Rico (43%), Venezuela (44%) e Colombia (30%) (2). O Brasil, na epoca com apenas 20%, ficou em 26 lugar dentre os 33 paises da regiao.

    De acordo com o Censo do Poder Judiciario brasileiro realizado em 2013 pelo Conselho Nacional de Justica (CNJ), o percentual de mulheres na Magistratura brasileira, nos ultimos vinte anos, passou por um aumento, mas nao de forma linear. Entre o periodo de 1955 e 1981, eram 78,6% de homens e 21,4% de mulheres na carreira. Ja entre 2012 e 2013, o percentual de mulheres e de 35,9% frente a 64,1% de homens. Essa diferenca foi um pouco menor no periodo de 2002 a 2011, onde havia 38,9% de mulheres e 61,1% de homens (CNJ, 2014).

    Quando esses percentuais gerais sao fragmentados por ramos da Justica, percebemos que a participacao das mulheres e um pouco maior do que a media geral apenas na Justica do Trabalho (47%) e na Justica Estadual (34,5%). Ja a Justica Militar Estadual (16,2%), os Conselhos Superiores da Magistratura (26,1%), a Justica Federal (26,2%) e os Tribunais Superiores (27,8%) sao os ramos em que se encontram os menores percentuais de mulheres. Se considerarmos a carreira da Magistratura, percebemos o aumento da desigualdade ao longo dos cargos/funcoes: quanto maior o cargo/funcao na carreira da Magistratura, menor o numero de integrantes do genero feminino (CNJ, 2014).

    Ate o mes de dezembro de 2014 (3), eram 2 mulheres no total de 11 ministros do Supremo Tribunal Federal e 7 ministras no total de 33 que compunham o Superior Tribunal de Justica. Com relacao as diferencas nos Tribunais de Justica estaduais, em 19 deles (70%) a participacao de mulheres e inferior a 21% e em 8 deles (30%) o percentual de mulheres chega a ser menor que 11% (CNJ, 2014).

    Quando as duas variaveis utilizadas pelo CNJ sexo e cor-raca sao agrupadas percebemos a predominancia de homens brancos. Alem disso, o percentual de mulheres negras que compoem a Magistratura brasileira (5,1%) e extremamente reduzido em qualquer um dos ramos da Justica considerados, representando menos da metade do percentual total de juizes negros (10,5%). Ainda, 0% de respondentes declarou-se indigena (CNJ, 2014).

    Dentre os dados relativos aos diversos ramos do Poder Judiciario, entendemos que os percentuais de homens e mulheres na composicao dos Tribunais de Justica estaduais podem nos ajudar a debater, por um lado, o que e nomeado em alguns debates de feminizacao das profissoes juridicas (4): um aumento significativo de mulheres, sobretudo nos escaloes inferiores da profissao e suas consequencias em termos de mudancas no perfil de respostas dos seus orgaos (SADEK et. al, 2006; BARBALHO, 2008). Por outro, esses percentuais exprimem a persistencia de barreiras, muitas delas invisiveis, na carreira da Magistratura para a progressao das mulheres e para que elas ocupem posicoes de prestigio ou poder: os chamados tetos de vidro (5), com contornos especificos para cada um dos ramos do Poder Judiciario (BONELLI, 2010).

    O ingresso na Magistratura se da por concurso publico, composto, em geral, por provas de conhecimento e comprovacao de titulos (6). A Resolucao no. 75/2009 do CNJ trouxe parametros para a realizacao de concursos publicos para ingresso na carreira da Magistratura em todos os ramos do Poder Judiciario nacional. Ela estipulou a obrigatoriedade de cinco etapas de selecao: 1a) prova objetiva seletiva, 2a) prova escrita, 3a) sindicancia da vida pregressa e investigacao social do candidato, exames de sanidade fisica e mental e avaliacao psicologica; 4a) prova oral de conhecimentos; e 5a) avaliacao de titulos. Uma das orientacoes importantes que essa Resolucao trouxe foi a exigencia de que, na 4a etapa, as perguntas a serem realizadas aos candidatos fossem sorteadas dentre um rol ja pre-definido de questoes e que a arguicao seja feita em sessao publica. Isso para evitar que mulheres e outras categorias minoritarias na composicao do Judiciario passem por constrangimentos ou processos discriminatorios, tendentes a sua eliminacao do concurso.

    O cargo inicial na carreira e o de juiz substituto ou juiza substituta e as pessoas aprovadas sao empossadas na entrancia inicial do primeiro grau, composta por municipios de pequeno porte, do interior dos estados. A promocao as entrancias intermediaria e final e realizada seguindo-se os criterios de antiguidade na carreira e merecimento, de acordo com o disposto na Constituicao Federal de 1988 e no artigo 80 da Lei Organica da Magistratura Nacional (7) (Lei Complementar no 35, de 14 de marco de 1979). Esses criterios de antiguidade e merecimento sao utilizados, por exemplo, pelos Tribunais de Justica estaduais em todo o pais para o provimento dos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT