The victims' participation in the Inter-American Human Rights System: the grounds and the meaning of the right to participate/ A participacao das vitimas no sistema interamericano: fundamento e significado do direito de participar.

AutorOsmo, Carla
CargoTexto en portugues - Ensayo
  1. Introducao

    Uma das dimensoes mais importantes do desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos, com o reconhecimento dos individuos como sujeitos de direito em face dos Estados (TRINDADE, 2008), foi a criacao de instrumentos processuais para que eles possam fazer valer esses direitos. De fato, os direitos humanos, para terem realizacao pratica, dependem de mecanismos processuais ao alcance dos individuos. Dai a defesa de que, junto com os direitos materiais, seja reconhecido um direito de acesso a justica, no qual esteja incluida a possibilidade de os individuos participarem diretamente nos procedimentos destinados a tornar os seus direitos efetivos, tanto no plano nacional quanto no internacional. Nesse sentido, frente a casos de graves violacoes de direitos humanos, o sistema interamericano de protecao dos direitos humanos (SIDH) comecou a delinear os contornos de um direito de participar, com incidencia nesses dois planos: participar nos processos movidos internamente nos Estados contra os supostos perpetradores das violacoes sofridas, e participar nos processos movidos no plano internacional contra os Estados.

    Este estudo tem o objetivo de investigar a origem e o significado desses dois direitos de participar, de titularidade das vitimas de graves violacoes de direitos humanos e de seus familiares. A partir de analise da jurisprudencia da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) e de suas regras de funcionamento, bem como de bibliografia pertinente, e analisada a forma como se deu a construcao desses direitos, fazendo-se um balanco das reformas institucionais que eles demandam e dos riscos que em nome deles podem ser gerados. A nossa hipotese e a de que, nao obstante as disparidades entre o processo interno, que visa a responsabilizacao individual, e o processo internacional, que busca a responsabilizacao estatal, existe uma articulacao entre os dois direitos de participar, que estao inseridos em um movimento mais amplo de empoderamento das vitimas. E, em ambos os casos, o sucesso da implementacao deles depende do conhecimento e do enfrentamento dos riscos envolvidos e das reformas institucionais necessarias.

    A primeira parte deste estudo apresenta como se deu a construcao do direito das vitimas de participar dos processos movidos nos Estados para a responsabilizacao pessoal dos perpetradores das violacoes (secao 2). Examinase como a jurisprudencia da CorteIDH concebeu esse direito, tanto a partir do direito das vitimas de acesso a justica previsto na Convencao Americana sobre Direitos Humanos (CADH), quanto do direito delas a reparacao (secao 2.1), e discute-se os riscos que a criacao de um direito dessa natureza envolve, ao se colocar a vitima no centro do processo penal (secao 2.2). A segunda parte do estudo trata da construcao do direito das vitimas de participar em processos interamericanos movidos contra os Estados por violacoes de direitos humanos (secao 3). Atravessa-se a gradual transformacao pela qual passaram as normas procedimentais da Comissao Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da CorteIDH, de maneira a ampliar os poderes das vitimas no sistema interamericano, ao mesmo tempo em que revisavam o papel da CIDH perante a CorteIDH (secao 3.1). Considerando-se as peculiaridades desse sistema, reflete-se criticamente sobre o caminho que deve ser percorrido para que essa abertura seja efetiva (secao 3.2). Na conclusao, os processos de consolidacao dos dois direitos de participacao sao colocados em relacao, com uma reflexao critica sobre o seu significado e um alerta sobre os riscos envolvidos e precaucoes necessarias (secao 4).

  2. A construcao do direito de participar em processos internos contra os perpetradores de crimes

    A criacao do processo penal apoiou-se na afirmacao da acao do Estado, com o afastamento das vitimas, sob a percepcao de que estas atuariam animadas pelo desejo de vinganca (VERDIER, 2004). Porem, podemos observar um questionamento progressivo do papel da vitima no processo penal e uma preocupacao crescente com a sua participacao.

    Quando, no direito internacional dos direitos humanos, se comecou a falar em um direito, de titularidade das vitimas de violacoes graves, de participar nos processos movidos contra os perpetradores desses crimes, os ordenamentos juridicos de muitos Estados com sistemas juridicos de tradicao romano-germanica ja previam algum tipo de atuacao das pessoas ofendidas na justica criminal. Nesses sistemas, embora o Estado seja o titular da acao penal, e esta se estruture com foco no acusado, comumente se permite a presenca das vitimas, em especial na investigacao e estabelecimento dos fatos do caso (FUNK, 2010). (1) Sao duas as formas de participacao, que variam nos regimes nacionais: 1) a titulo de parte civil assessoria ou interventora em acusacao previa movida pela promotoria; ou 2) a titulo de parte acusadora principal, que pode se substituir a promotoria na hipotese de inercia desta em abrir a investigacao (BRACQ, 2013, p. 2 (2)).

    E possivel identificar na literatura justificativas de diferentes naturezas para que, no plano internacional, se haja pleiteado como direito a abertura dos processos penais as vitimas de graves violacoes de direitos humanos e, especialmente, de crimes contra a humanidade. Em primeito lugar, isso seria algo que se deve as vitimas, frente as especificidades dos crimes que sofreram: caracteristicamente crimes praticados por agentes de Estado, ou com o patrocinio ou a conivencia destes, e oficialmente negados ou justificados pelo discurso do Estado. Em segundo lugar, isso contribuiria para a profundidade das investigacoes, a transparencia e a eficiencia do sistema de justica. (3) Em terceiro lugar, a presenca das vitimas e o acolhimento de suas narrativas daria condicoes para que os processos se tornassem eventos relevantes na construcao de uma memoria coletiva sobre os crimes (BILSKY, 2004; OSIEL, 1997; OSMO, 2014). Nesse ultimo sentido, segundo documento do governo da Argentina sobre os processos por crimes contra a humanidade conduzidos naquele pais, que comentaremos mais adiante (secao 2.1.2), "[c]ada proceso construye no solo el relato juridico sino tambien la narracion historica en que se basan las sentencias. Y de ese relato, las victimas son los protagonistas principales" (ALEN, 2011, p. 8). Os sobreviventes e familiares sao construtores das narrativas dos processos, seja como atores destes, como testemunhas, ou como agentes que acompanham e controlam o seu desenvolvimento. (4)

    Tambem nos processos penais internacionais que--diferentemente dos processos perante as cortes regionais de protecao dos direitos humanos, abordados adiante--buscam a responsabilizacao penal internacional individual, houve uma progressiva ampliacao do papel das vitimas. Sem uma presenca relevante nos tribunais de Nuremberg e Toquio, as vitimas foram introduzidas como testemunhas a partir dos anos 1990 perante os tribunais penais internacionais para a ex-Yugoslavia e Ruanda, mas apenas na medida em que pudessem ser uteis para o estabelecimento dos fatos constitutivos da infracao (MARTIN-CHENUT, 2012b, p. 847-863). Elas nao tinham locus standi ou legitimidade para pleitear reparacoes, eram tidas como testemunhas a servico da justica (MASSIDDA, 2010).

    Ja no Estatuto de Roma de 1998, que cria o Tribunal Penal Internacional, as vitimas foram erigidas a atores do processo e, mesmo nao possuindo direitos iguais aos do procurador e do acusado, adquiriram uma serie de prerrogativas: aquelas que tenham seus interesses pessoais afetados podem participar ativamente do processo, representadas por advogados, e podem se beneficiar de uma reparacao efetiva quando da sua conclusao. Pela primeira vez foram outorgados as vitimas direitos que lhes permitem se fazerem ouvir em todas as fazes do processo penal internacional (BRACQ, 2013, p. 5). A outorga desses poderes, contudo, se deu em termos vagos (art. 68 (3) (5)), que nao permitem que esteja previamente definido o espaco que as vitimas ocuparao em cada processo (BRACQ, 2013, p. 4). Cabe a jurisprudencia estabelecer os contornos desta participacao. Em 2006, por exemplo, foi reconhecido o direito das vitimas a uma participacao na fase preliminar do processo, desde a investigacao (TPI, 31 mar. 2006). Apesar do importante avanco representado pelo Estatuto de Roma, criou-se entretanto com este dispositivo (art. 68 (3)) uma abertura para decisoes discricionarias dos juizes sobre quando e como as vitimas podem participar, nas quais podem interferir, entre outros fatores, preocupacoes com a preservacao dos direitos do acusado, com a autonomia das decisoes estrategicas da acusacao, e com a habilidade da Corte de gerir os procedimentos (FUNK, 2010). Alguns autores advertem que essa incerteza sobre a possibilidade de participacao e a que titulo pode gerar consequencias graves, inclusive desigualdade de tratamento entre as vitimas (BRACQ, 2013, p. 4).

    Reflexoes em torno do significado dessa inovacao do Estatuto de Roma apontam que as vitimas deixaram de ser consideradas meros portadores de informacoes relevantes para a formacao da conviccao dos juizes--em outras palavras, deixaram de ser tomadas como meros meios de prova--, reconhecendo-se que seus direitos devem ir alem daqueles que as testemunhas tradicionalmente possuem nos processos penais. Entre as demandas delas, as quais se espera que a justica penal faca frente, estao: receber informacoes sobre os seus casos (MASSIDDA, 2010); ter um foro legitimo e imparcial em que possam falar e ser ouvidas; ver o crime reconhecido; obter a producao de um registro historico do ocorrido e das repercussoes dos crimes nas vidas das pessoas afetadas; evitar futura revitimizacao; obter compensacao financeira; e assegurar que a pratica criminosa seja punida, participando desse processo (FUNK, 2010).

    2.1. A afirmacao do direito de participar em processos internos na jurisprudencia da CorteIDH

    A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH)...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT