Tipicidade material, aborto e anencefalia

AutorPaulo César Busato
Páginas578 - 606

Page 578

Palavras-Chave

Aborto; Anencefalia; Direito Penal; Causas de justificação; Tipicidade material.

Abstract

This work deals with the legal issue of abortion of anencephalous fetus. It gives a summary of the problem, submitted for appreciation by the Supreme Court of Brazil. It draws comparisons between the causes of justification of abortion, seeking to demonstrate its relevance in cases of anencephaly. Next, it discusses the medical issue of anencephaly, drawing a parallel with the issue of organ transplants. It goes on to deal with the criminal legal concept of life and its protection by the regulations, from a perspective of material typicity. Finally, it attacks the issue of atypicity of interruption of pregnancy of the anencephalous fetus based on the material content of the criminal type of abortion.

Key Words

Abortion; Anencephaly; criminal Law; Causes of justification; material typicity.

1. Introdução

Em recente decisão sob forma cautelar, o Ministro Marco Aurélio de Melo admitiu a realização de interrupção de gestação de anencéfalo1 , o que gerou intensa polêmica em todo o país, movimentando distintos setores da sociedade, trazendo à baila, muito além de toda a questão jurídica, implicações morais, sociológicas e de diversas outras ordens.

O panorama de intenso debate e os pontos de vista conflitivos, amplamente cobertos pela mídia, tornaram a questão penal apenas um detalhe, submersa em meio a um emaranhado de argumentos de outras ordens, perturbando uma apreciação técnica e adequada da matéria.

Page 579

É claro que o nível de comoção que provoca a realidade da interrupção de uma gestação põe em cheque a capacidade de ordenarmos o raciocínio. É nesse sentido, de ordem de pensamento, que se pensa contribuir com estas linhas. A pretensão é de fazer um recorte do tema e situar adequadamente a matéria penal dentro do âmbito que lhe compete, que não é mais do que a representação da ultima ratio de controle social. Quer dizer, é necessário ressaltar, antes de tudo, que o Direito penal só se ocupa dos ataques mais graves aos bens jurídicos mais importantes para o desenvolvimento social do indivíduo (princípio de intervenção mínima). É partindo dessa premissa que pretendemos analisar a situação posta. Convém notar, pois, que não se propõe o abandono completo da intervenção jurídica, muito menos da intervenção do Estado por meios extrajurídicos na questão do aborto. O que se quer aqui é, simplesmente, interromper estes caminhos de discussão e seguir apenas a vertente penal, de modo a vislumbrar até que ponto ela ocupa, ou deve ocupar, algum lugar nessa discussão.

Assim, no âmbito penal convém demarcar duas premissas básicas que, a priori parecem estar orientadas ao problema. A primeira referese à aflição psicológica a que a gestante que constata que gera um anencéfalo é acometida, a qual parece ser permanente e crescente na medida em que se aproxima o traumático final de gestação. Isso implica em uma aflição de ordem moral comparável ou até superior a outras causas de justificação albergadas pela legislação brasileira. Insta que se trate então, da possibilidade de reconhecimento de uma causa de justificação, ainda que supralegal. A segunda referese à adoção, própria de um regime democrático, de um Direito penal mínimo, que obriga a pensar na proteção seletiva de bens jurídicos. É necessário cogitar se a vedação da interrupção da gestação de um anencéfalo efetivamente constitui uma ofensa grave a um bem jurídico importante para o desenvolvimento de um indivíduo na sociedade e, por via de conseqüência, se existe, neste caso, tipicidade material.

2. O Problema

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde protocolou junto ao Supremo Tribunal Federal a ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 54, pondo em tela de juízo a interrupção da gestação de feto anencéfalo. Pretendia, a referida ação, que o Tribunal Constitucional do país reconhecesse expressamente o direito da mulher de interromper a gestação emPage 580situações desta natureza, que se estendesse às hipóteses de anencefalia do produto da concepção, as causas de justificação para o aborto especificadas no Código penal2. O Ministro Marco Aurélio Melo concedeu liminar no dia 1o de julho de 2004, entendendo que “a permanência do feto mostrase potencialmente perigosa, podendo ocasionar danos à saúde e à vida da gestante”3. O Ministro reconheceu “a lógica irrefutável da conclusão sobre a dor, a angústia e a frustração experimentadas pela mulher grávida ao verse compelida a carregar no ventre, durante nove meses, um feto que sabe, com plenitude de certeza, que não sobreviverá”4. No dia 20 de outubro próximo passado, o Plenário do STF reuniuse e cassou a liminar, por maioria. É que estava em suspenso o julgamento do mérito (em virtude de vista dos autos ao Min. Carlos Ayres Britto) para a discussão da adequação do meio escolhido ADPF para o objetivo buscado. Entendeu-se então, que não era o caso de manterse a liminar com efeitos ex nunc se ainda estava pendente discussão sobre a própria legitimidade do veículo processual escolhido para a demanda.

Por trás da discussão técnica processual, late uma questão muito mais importante: os aspectos morais e jurídicos implicados na causa e que, certamente, ainda que não enfrentados neste momento pelo STF, já despertaram a atenção de diversos segmentos de nossa sociedade.

Ocorre que nosso Estado, ainda que laico, abriga uma vasta gama da população vinculada aos dogmas religiosos, em especial os do catolicismo. A interrupção da gestação é tratada pela religião católica de forma bastante rígida. A expressão legislativa relacionada ao aborto é evidente fruto desta influência. Por esta razão, veio à tona, a reboque da discussão proposta ao STF, toda a questão relacionada ao aborto.

Porém, esta avalanche de conceitos e perspectivas relacionadas com o tema parece ter feito com que se perdesse o referencial central da questão, ou seja, se o Direito penal deve ou não regular a matéria relacionada com a interrupção da gestação de um anencéfalo. Uma correta visão da matéria deve retornar ao marco teórico apropriado para a discussão, pois, conforme comenta Silva Franco, “num Estado Democrático de Direito, de caráter laico, com compromissos assumidos com a dignidade da pessoa humana e com o pluralismo moral e cultural, não há razão justificadora para confundir questões jurídicas com questões morais”5.

Page 581

O que se propõe neste breve ensaio é filtrar um pouco as questões tangenciais relacionadas com o tema, de modo a deixar livre o caminho para a avaliação penal.

3. A punibilidade do aborto como produto de uma orientação social

O primeiro ponto a tratar é a busca das fontes da punibilidade do aborto. Sabese que a prática abortiva era comum entre os povos antigos. Noticia Nélson Hungria6 que inclusive “entre os hebreus, não foi senão muito depois da lei mosaica que se considerou ilícita, em si mesma, a interrupção da gravidez. Até então só era punido o aborto ocasionado, ainda que involuntariamente, mediante violência”.

Os Gregos tampouco puniam esta prática. Enquanto “Licurgo e Sólon a proibiram, e Hipócrates, no seu famoso juramento declarava: «a nenhuma mulher darei substância abortiva» [...] Aristóteles e Platão foram predecessores de Malthus: o primeiro aconselhava o aborto (desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma) para manter o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência, e o segundo preconizava o aborto em relação a toda mulher que concebesse depois dos quarentas anos”7.

Nem mesmo o Direito Romano8, de início, estabelecia qualquer punição para o aborto. Só posteriormente “a abactio partus foi considerada uma lesão ao direito do marido à prole”9. Finalmente, com o advento do cristianismo é que o império romano dobrouse, por força da influência religiosa, a punir a prática de aborto10.

No período do direito canônico a matéria mereceu intenso debate, ressuscitando a discussão sobre a sua punibilidade estar associada à aquisição da “alma” por parte do recémnato11.

Já nas primeiras codificações como a Carolina, se “cominava a morte pela espada a quem fizesse abortar alguma mulher e ordenava a morte por afogamento da mulher que em si mesma provocasse aborto”12.

Notase, pois, claramente a influência da religião católica na formulação da punibilidade do aborto. É possível contraargumentar referindo que se trata de um comentário sobre as origens da sociedade ocidental, época em que a consciência aPage 582respeito da preservação da vida em formação carecia muito do conhecimento científico.

Porém, tampouco parece que as primeiras formulações jurídicas do Direito penal brasileiro, já em uma época muito mais próxima da nossa realidade, tenham determinado o perfil incriminador que hoje temos reservado para esta conduta.

Segundo refere Bitencourt, nosso Código penal do Império (1830) previa a criminalização apenas do aborto praticado por terceiro e não do auto-aborto13. É bem verdade que o aborto praticado por terceiro com o consentimento da gestante era punido, mas não a prática pela própria gestante, o que dá um indicativo de uma propensão à proteção do bem jurídico vida, sem desprezo completo da proposição de defesa dos interesses da própria gestante. A punição do auto-aborto aparece por primeira vez no Código Penal de 189014. O Código Penal de 1940 - cuja parte especial vige até hoje - estabelece, como causas de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT