A polêmica em torno da argüição de descumprimento de preceito fundamental incidental: existência, localização e eficácia

AutorMônia Clarissa Hennig Leal; Leandro Konzen Stein
CargoPós-Doutora em Direito pela Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, Alemanha; Mestrando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC
Páginas148-170

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Introdução

O paradigmático instituto da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) veio a complementar o já complexo sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, instaurado/renovado na Constituição Federal de 1988.12 Esse novel sistema dá notada ênfase ao controle concentrado (europeu continental), sem, todavia, olvidar do já clássico modelo difuso (norte-americano) aqui inserido desde a proclamação da República.

A ADPF congrega, na via concentrada, elementos da fiscalização abstrata e também incidental, aproximando-se, pois, da via difusa, daí se denotar a novidade e originalidade dessa ação sui generis. Sua natureza dúplice é apregoada pela doutrina, que classifica a ação em duas modalidades: autônoma e incidental. É esse o foco da presente investigação, mormente tendo em vista os vetos presidenciais à Lei 9.882/99, que tardiamente regulamentou o instituto, bem como a liminar concedida na ADIn 2231 interposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra a íntegra da Lei de Regência. É dizer, intenta-se perquirir sobre a existência, a localização (na Constituição e, principalmente, na Lei Regulamentadora) e eficácia (com notada ênfase para o que decide o STF a esse respeito) da modalidade incidental de argüição de descumprimento.

1 Contextualizações acerca do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade pós-1988

Desde a década de 1970, movimentos da sociedade civil reivindicavam a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, mormente no período em Page 149 que Raimundo Faoro ocupou a presidência da OAB3. Contudo, foi somente com a Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, refletindo os movimentos populares anti-ditadura militar, mas já no período Sarney, que se convocou a Assembléia Constituinte.

Apesar dos problemas4, o processo constituinte legou ao país uma Constituição classificada pelo Presidente da Assembléia Nacional, Ulysses Guimarães, de "Constituição Cidadã", por conter os desejos e necessidades dos mais diversos setores da sociedade brasileira e afiançar um amplo sistema de direitos e garantias fundamentais, de caráter individual e coletivo:

Não se trata, como poderia parecer à primeira vista, de uma mera reconstrução do Estado de Direito após anos de autoritarismo militar. Mais do que isso, o movimento de retorno ao direito no Brasil também pretende reencantar o mundo. Seja pela adoção do relativismo ético na busca de fundamento da ordem jurídica, seja pela defesa intransigente da efetivação do sistema de direitos constitucionalmente assegurados e do papel ativo do Judiciário, é no âmbito do constitucionalismo brasileiro que se pretende resgatar a força do direito.5

A formulação da Constituição de 1988 teve grande influência do projeto elaborado pela Comissão de Estudos Constitucionais, conhecida como Comissão Afonso Arinos - seu presidente - em que pese o fato de o referido processo ter sido engavetado pelo seu mentor, José Sarney6. Aquela Comissão, por sua vez, tomou como base o anteprojeto de Constituição elaborado por José Afonso da Silva, um dos mais respeitados constitucionalistas brasileiros.

Todavia, o texto constitucional não adotou, devido a pressões do Poder Judiciário, especialmente do STF, a fórmula do Tribunal Constitucional, nos moldes europeus, proposta por José Afonso e já derrubada na Comissão Arinos. Apesar disso, o Supremo passou a tratar apenas das questões constitucionais, retirando-se, de sua alçada, encargos estranhos à vigilância da Lei Maior, os quais foram transferidos ao recém criado Superior Tribunal de Justiça.

O ordenamento constitucional brasileiro, portanto, não converteu, como desejavam os "comunitários", o Supremo Tribunal Federal em Page 150 Corte Constitucional, mas reduziu sua competência à matéria constitucional, afirmando que a ele compete, "precipuamente, a guarda da Constituição" (art. 102, C.F.). Não há dúvidas de que a função de guardião da Constituição remete necessariamente ao caráter político que assume o Supremo Tribunal Federal no novo texto constitucional. Afinal, a função de declarar o sentido e o alcance das regras jurídicas, especialmente na função jurisdicional de tutela da Constituição, traduz uma ação política ou, pelo menos, uma ação de inexorável repercussão política.7

O sistema de controle de constitucionalidade pátrio também sofre profundas alterações com o advento Constituição de 1988, mantendo, contudo, o histórico caráter misto:

A Constituição de 1988 manteve o sistema eclético, híbrido ou misto, combinando o controle por via incidental e difuso (sistema americano), que vinha desde o início da República, com o controle por via principal e concentrado, implantado com a EC n. 16/65 (sistema continental europeu).8

As principais inovações, que atingem tanto a fiscalização concentrada, como difusa, podem ser assim destacadas, conforme orientação de Luis Roberto Barroso9:

  1. a ampliação da legitimação ativa para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103);

  2. a introdução de mecanismos de controle da inconstitucionalidade por omissão, como a ação direta com esse objetivo (art. 103, §2º) e o mandado de injunção (art. 5º, LXXI);

  3. a recriação da ação direta de inconstitucionalidade em âmbito estadual, referida como representação de inconstitucionalidade (art. 125, §2º);

  4. a previsão de um mecanismo de argüição de descumprimento de preceito fundamental;

  5. a limitação do recurso extraordinário às questões constitucionais (art. 102, III). Page 151

    Veja-se que a mudança de rumos foi tão significativa que Binenbojm10chega a dividir a história constitucional brasileira em duas: uma antes da CF de 1988, adjetivada de velha jurisdição constitucional brasileira, e outra posterior: a nova jurisdição constitucional brasileira.

    Nada obstante, o novo paradigma de controle não tardou em se tornar ainda mais complexo. Primeiro, foi a introdução da Ação Declaratória de Constitucionalidade, por meio da qual "a presunção de constitucionalidade da lei, que é relativa (juris tantum), torna-se absoluta (juris et de jure), impedindo a sua inobservância, sob o argumento de inconstitucionalidade, por quem quer que seja, inclusive pelos demais órgãos do Poder Judiciário e pelo Poder Executivo"11:

    O quadro desenhado pelo constituinte originário passou a ser sistematicamente remodelado a partir da criação da ação declaratória de constitucionalidade, resultante da Emenda Constitucional n. 3, de 18 de março de 1993. A nova ação, de competência do Supremo Tribunal Federal e proponível pelos mesmos legitimados da ADIn (por força da Emenda Constitucional n. 45/2004), foi amplamente contestada por parte da doutrina, que questionava sua constitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, por ampla maioria considerou legítima sua acolhida no já complexo sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.12

    Segundo, a chegada das Leis nº. 9.868/99 e nº. 9.882/99 que vieram, respectivamente, disciplinar os aspectos processuais e decisórios da ADIn e ADC, e regulamentar o §1º do art. 102 da Constituição Federal, o qual prevê a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

    Desse modo, percebe-se o largo quadro de ações constitucionais de caráter concentrado e abstrato de competência originária do Supremo Tribunal Federal, atual guardião da Lei Suprema, além da permanência do controle incidental, em regra, difuso13, exercido por todos os juízes e tribunais. Veja-se o rol das ações concentradas de controle de constitucionalidade existentes no sistema de fiscalização introduzido pela Carta Magna de 88:

  6. ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, a, CF/88);

  7. ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º, CF/88); Page 152

  8. ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, a, CF/88);

  9. ação direta interventiva (art. 36, III, CF/88);

  10. argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, §1º da CF/8814).

    Essa extensa lista denota uma tendência de ampliação e alargamento da jurisdição constitucional abstrata e concentrada em nosso país, o que revela a influência continental européia, notadamente espanhola e portuguesa, na Constituição Federal de 1988, mudando-se o paradigma vigorante desde a proclamação da República de controle difuso e incidental de inspiração norte- americana, que era até pouco tempo o referencial principal do constitucionalismo pátrio, apesar das introduções, desde a década de 1930, de mecanismos tendentes a corrigir as deficiências do modelo - como a ação direta interventiva e a remessa ao Senado (1934/1946), além da representação contra inconstitucionalidade (1965) e de aproximá-lo do controle de cariz romano-germânico, introduzido por Kelsen (década de 1920) na Europa e logo espalhado, com significativas variações, por todo o mundo ocidental.

    É nessa tensão dialética de modelos e de mudança de paradigmas e referenciais que se insere o instituto da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF15).

    Essa ação é de fundamental importância para o entendimento da imbricação dos modelos e sistemas constitucionais que influenciaram o direito e a jurisdição constitucional brasileira, pois se trata de instrumento sui generis de controle de constitucionalidade, por congregar, ao menos em tese, os caracteres elementares do modelo concentrado (pois a competência para processar e julgar a ADPF é do STF), subdividindo-se em abstrato (ADPF autônoma) - o que não representaria novidade alguma - e incidental (pois, nessa modalidade, poderia ser...

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