A Proteção Trabalhista-Constitucional

AutorLuiz Marcelo Figueiras de Góis
CargoAdvogado/RJ. Mestre em Direito do Trabalho (PUC/ SP). Especialista em Direito Civil-Constitucional (UERJ). Professor de Direito do Trabalho da Fundação Getúlio Vargas
Páginas28-39

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Alguns pensamentos me angustiam relativamente à forma como os princípios de direito do trabalho vêm sendo estudados, em especial o chamado "princípio da proteção".

A proposta de releitura desse princípio - e, mais abrangentemente, do paradigma tutelar - ocorre em bom momento, pois se decanta aos quatro ventos a crise que perpassa o direito do trabalho.

A crise em muito se deve ao fato de os "atores da relação de emprego"1 não encontrarem no direito trabalhista atual resposta satisfatória para os problemas que a modernidade traz para as relações de trabalho. Com efeito, o direito positivado vem se mostrando pouco eficiente na tarefa de solucionar os impasses surgidos a partir das últimas décadas do século passado como corolário da chamada Revolução Tecnológica, especialmente no que diz respeito às chamadas "novas formas de trabalho".

É que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) - diploma central no estudo da disciplina trabalhista - reúne normas voltadas à tutela de uma espécie de relação de trabalho que, com o passar do tempo, se fez passado. Buscar, por exemplo, no simples conceito de empregado presente no seu art. 3o a resposta para situações como o teletrabalho, o home office, o trabalho por conta própria e a administração de empresas (para citar o mínimo) faz com que o estudioso encontre mais dúvidas do que respostas para solucioná-las.

É nesse cenário de incertezas que os princípios passam a ter um papel nuclear. A maleabilidade que lhes é peculiar permite que eles se apliquem a diversas situações, em diferentes contextos históricos, sociais e econômicos, sem que percam o traço de centralidade para a disciplina laboral.

Tendo em mente que o direito do trabalho, segundo Plá Rodrigues, é um direito voltado a proteger o trabalhador2, o estudo do paradigma de proteção, antes de útil, é necessário para a compreensão da dimensão desse ramo do direito nos dias de hoje.

Analisaremos, em primeiro lugar, o paradigma protecionista surgido com o nascimento do direito do trabalho para em seguida avaliá-lo diante da crise atravessada atualmente por este ramo do direito.

Após uma breve crítica àflexibilização como medida capaz de tirar o direito do trabalho dacrise, revisita-remos sua função, para, finalmente, redefinirmos o que entendemos ser possível extrair de um princípio de proteção nos dias atuais.

1. O paradigma da proteção

O direito do trabalho foi concebido como um direito de resistência. Ele representava um freio ao avanço do capital sobre o trabalho, uma forma de proteger o ser humano contra a exploração. Uma maneira, enfim, de conferir um mínimo de dignidade aos indivíduos que alienavam seu tempo, sua saúde e sua força em favor de um empreendimento empresarial.

Era preciso, inegavelmente, conferir um tratamento jurídico favorável ao empregado, de modo a suprir a profunda desigualdade existente entre ele e seu patrão.

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Restringia-se, assim, a autonomia contratual para se preservar um bem jurídico superior de dignidade do trabalhador.

Esse primado da tutela do hipos-suficiente aperfeiçoou-se doutrina-riamente ao longo dos anos e deu origem a toda a gama de proteção do trabalhador subordinado. Nesse contexto, foram editados inúmeros diplomas legais que, intervindo na autonomia contratual das partes da relação de emprego, estabeleceram direitos e condições de trabalho de observância obrigatória aos contratantes3.

É neste ponto que se encontra hoje a experiência brasileira: temos um belo conjunto normativo para a tutelado empregadohipossuficiente, que lhe resguarda um riquíssimo acervo de direitos. Ele tem garantidas as férias anuais, o 13° salário, o adicional de horas extras e a higidez do ambiente de trabalho. Ele tem direito a receber adicionais quando trabalha em condições nocivas à sua saúde, à noite ou quando é transferido o local de seu trabalho. Ele deve receber equipamentos de proteção individual. Deve repousar pelo menos uma vez por semana e nos feriados oficiais. Tem, ainda, o direito de estar inserido em uma seguridade social custeadaportodos os membros da sociedade.

Mais do que estarem assegurados por força de lei, estes benefícios não podem ser renunciados, tran-sacionados ou transferidos pelo trabalhador. Sua remuneração é intangível e irredutível. Para além disso, benefícios concedidos habitualmente incorporam-se ao seu patrimônio jurídico e passam a não mais dele poder ser retirados por vontade das partes envolvidas na relação de emprego, surgindo em favor do empregado uma regra de não retrocesso trabalhista4.

Além desse sistema normativo privilegiado para o empregado, a doutrina desenvolveu ao seu redor uma segunda couraça jurídica, para mantê-lo a salvo de investidas capitalistas tendente s a diminuir sua gama de direitos e garantias laborais.

Essa dupla couraça - legislação tutelar complementada por um acervo principiológico conferidor de um s tatus jurídico privilegiado ao trabalhador - é o que se convenciona chamar "paradigma da proteção".

Entre os princípios que classicamente são considerados formadores da segunda camada desse conjunto protecionista tem maior relevo o chamado princípio protetivo (também denominado princípio protetor, de proteção5, pro operario ou tutelar), cujo obj etivo, nas palavras de Plá Rodriguez, é justamente "estabelecer um amparo preferencial"6 ao trabalhador.

Ao sistematizar o princípio protetivo, o autor uruguaio - que é amplamente citado na doutrina majoritária brasileira - dividiu-o em três grandes vertentes de aplicação: uma interpretativa e duas integrativas.

A primeira vertente em que se desdobra o princípio protetivo seria a chamada regra do in dubio, pro operario. Trata-se de uma regra interpretativa segundo a qual a norma trabalhista deve ser lida sempre no sentido que mais favorecer o trabalhador. Caso a mesma norma dê ensejo amais de uma interpretação, deve-se optar por aquela que mais beneficie a parte obreira7.

A segunda vertente, voltada para a integração de diplomas legais, é consubstanciada na regra da "norma mais favorável". De acordo com esta regra, sempre que houver mais de uma norma aplicável à relação jurídicade direito do trabalho, deve-se optar por aquela que seja mais favorável ao empregado8.

Finalmente, a terceira vertente concentra-se na superveniência de uma norma a uma relação de emprego pré-existente. Quando uma determinada regra é inserida no ordenamento jurídico, deve-se utilizar o critério da "condição mais benéfica" para determinar se ela irá ou não se aplicar à relação de emprego existente. Caso as normas anteriores sejam mais benéficas ao trabalhador, elas devem continuar a ser praticadas, em detrimento da aderência ao contrato individual de trabalho das regras editadas a posteriori9.

Prega-se, assim, que normas duvidosas sejam interpretadas em favor do empregado e, em caso de conflitos entre dois diplomas normativos, deva sempre prevalecer aquele que mais beneficiar aparte hipossuficiente da relação de trabalho.

Em linhas gerais, este é o paradigma da proteção que o nosso direito do trabalho clássico abraça.

É neste contexto que o professor Cesarino Junior identifica o seu "Direito Social" como o "complexo de normas tendentes à proteção dos economicamente débeis", deixando claro que estas normas "visam estabelecer o equilíbrio social, pela proteção aos economicamente fracos"10.

Mas cremos que a concepção de simples proteção ao trabalhador outrora realmente existente - vinculada à ideia de freio aos avanços do capital, diminuição de diferenças econômicas, reequilíbrio de forças e conquista de direitos sociais -

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modificou-se junto com o contexto histórico no qual foi concebida11. Atingiu sua maturidade ao longo do século XX e mudou de formato a partir dos anos 1970.

2. Crise do paradigma tradicional de proteção

Durante a sua construção, não se questionou a respeito da susten-tabilidade do modelo protecionista à luz da realidade econômica, posto que no momento histórico de seu desenvolvimento as crises econômicas não passavam de profecias malthusianas. Pouco importava, assim, que o empresariado fosse obrigado a arcar com mais custos em virtude da criação de uma casca de proteção em torno do empregado. Se o emprego custava-lhe mais caro, estes custos eram em grande medida repassados para o mercado, embutidos nos preços dos produtos ou serviços comercializados12.

Mas não tardou para a humanidade descobrir que o sistema capitalista traz inerentes a si crises em ciclos semelhantes às ondas do mar: uma calmaria sempre precede atormenta, depois daqual umanova calmaria chega. E a frequência das crises vem se acentuando em virtude do fenômeno da globalização, que aumenta a pressão por resultados e por maior competitividade sobre a estrutura produtiva.

Junto com esta constatação veio outra: a de que o direito do trabalho é talvez o ramo do direito mais conectado com a economia. O que acontece na infraestrutura econômica repercute necessariamente na supraestrutura laboral13. A partir do momento em que a pujança financeira do capitalismo fraqueja, as relações de trabalho sofrem imediatamente os efeitos da crise. Nesse sentido, inúmeros autores lembram que o direito do trabalho tem "notórias implicações econômicas"14 e que deixá-lo alheio à realidade econômico-social traz como consequência a perda de efe-tividade da disciplina15.

Nessa linha, a indissociabilidade entre capital e trabalho foi também uma inafastável constatação na história da humanidade.

Embora tendencialmente antagônicos, um depende do outro para a prosperidade. Sem mão de obra, o capital se estagna; não se produz e não se consome coisa alguma. De outro lado, sem a organização empresarial, não se disponibilizam...

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