O trabalho e o imigrante em situação irregular: À espera de uma absolvição

AutorMaximiliano Pereira de Carvalho - Fernanda Antunes Marques Junqueira
CargoJuiz do Trabalho em Porto Velho, RO - Universidade Federal de Minas Gerais
Páginas158-190

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O TRABALHO E O IMIGRANTE EM SITUAÇÃO IRREGULAR:

À ESPERA DE UMA ABSOLVIÇÃO

Juiz do Trabalho em Porto Velho, RO

Universidade Federal de Minas Gerais

Nas asas do sonho partem os migrantes,

Aos milhares e milhões põem-se em marcha; Das terras do desemprego e da fome

Rumam em direção às terras do trabalho e do pão; Rompem leis, fronteiras e obstáculos,

Fortes e frágeis na luta pela vida...

(Imigrantes – Nas asas do sonho. Pe. Alfredo J. Gonçalves )

1. INTRODUÇÃO

Limiar do século XXI. Entre luz e sombra descortina a pós-modernidade. O conceito abriga a mistura de estilos, cores e crenças. A era marcada pela velocidade. O efêmero e o volátil parecem sobrepor-se ao permanente e ao essencial. A imagem acima do conteúdo. O objeto sobrepõe-se à pessoa humana. Avulta-se a importância de valores equívocos; excludentes; de flutuação livre nos planos jurídicos, políticos e ideológicos: “o valor maior tem o direito e até mesmo o dever de submeter o valor inferior, e o valor, como tal, tem toda razão de aniquilar o sem-valor como tal”.1

Vive-se a angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um mundo sem verdades seguras. Uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista; pós-kelseniana; pós-freudiana.

1 SCHMITT, Carl. La Tirania de los Valores (Die Tyrannei der Werte). Tradução de Anima Schmitt de Otero. In: Revista de Estúdios Políticos, Madrid, 115, Enero-Frebrero, 1961.

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A paisagem é complexa e fragmentada. No plano internacional, constata-se a decadência do tradicional conceito de soberania. As fronteiras rígidas cederam à formação de grandes blocos políticos e econômicos.

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A globalização, como símbolo e como conceito, é a manchete que anuncia a chegada do novo século. E juntamente com ela, os males da desigualdade social.

Intensifica-se o movimento de mercadorias e, mais recentemente, o fetiche da circulação de capitais.

De igual modo, intensifica-se a circulação de pessoas. Rompem com suas raízes na esperança de desbravar um novo mundo: quem sabe com maiores oportunidades; quem sabe com novos sonhos.

O imigrante não é figura da pós-modernidade, mas que se incrementou com ela.

Na história da civilização humana, os espaços territoriais do globo foram ocupados pela transposição dos homens. As colonizações são reflexos do movimento migratório. O imperialismo foi alimentado pela procura incessante de terras prósperas; providas de frutos e pedras; riquezas e poder.

Mais tarde, transpondo-se milhares de anos de evolução social, a migração foi acentuada pelo trabalho. As revoluções dos séculos XVII e XVIII impulsionaram a transição de pessoas. Primeiramente, do meio rural para os centros urbanos, na perscrutação – utópica, talvez – de melhores condições de vida. Também do meio rural para o meio rural. No século XX, em razão do vertiginoso ciclo da borracha no Estado do Acre, milhares de nordestinos (em sua maioria, cearenses) fugiam da famigerada seca, em busca da riqueza amazônica (água, comida e látex), na utopia de encontrar a nova “Pasárgada”.

Ao invés de sonhos, entretanto, encontram a penumbra das fábricas. A exploração, ao invés da liberdade. A morte, ao invés da vida.

E, desde então, o movimento de pessoas ganhou força. A pós-modernidade é marcada pela circulação dos homens, sempre na busca de algo maior, melhor ou talvez não seja bem assim.

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É dentro dessa perspectiva que o presente artigo se desenvolve, sem pretensão alguma de esgotar os vastos aspectos históricos, sociológicos, filosóficos, econômicos e jurídicos que o tema demanda.

Em verdade, busca oferecer um sopro de juridicização; uma brisa de humanização àquele que vaga na “asa de um sonho”, lubrificado pelo trabalho e para o trabalho. Porque é dele que nasce o imigrante e também, paradoxalmente, é por meio dele, quando desprotegido, que desfalece sua alma e seu corpo.

2. O IMIGRANTE E O TRABALHO: PROPOSIÇÕES TEÓRICAS E JURÍDICAS

Tenho apenas duas mãos

e o sentimento do mundo...

(Sentimento do mundo – Carlos Drummond de Andrade)

A solidão que acompanha o imigrante na sua trajetória pode ser parafraseada por trecho do poema de Carlos Drummond de Andrade. De fato, este trabalhador tem apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Duas mãos que se movimentam para o trabalho e o sentimento de que o novo mundo guarda novas esperanças. Esperanças que se renovam a cada raiar do dia e que, tristemente, se perdem a cada anoitecer.

É estrangeiro do território e de si mesmo. Ali não pertence.

Por isso, afirma-se que a concepção do imigrante e do estrangeiro tem como ponto de partida uma simbologia negativa, de não pertencimento, radicada do critério objetivo da nacionalidade.2

2 Os termos “imigrante” e “estrangeiro” são tomados, neste artigo, na mesma acepção. Alguns autores, contudo, estabelecem uma distinção bem marcada. É o caso, por exemplo, de Abdelmalek Sayad, que afirma um estrangeiro, segundo a definição do termo, é estrangeiro, claro, até as fronteiras; continua sendo estrangeiro enquanto puder

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Em outras palavras, ser estrangeiro em algum país é o mesmo que dizer não ser nacional dele. Singulariza-o o traço distintivo da não identidade que, certamente, acompanhará o imigrante na sua eterna e obstinada peregrinação.

Tal percepção negativa faz com que o imigrante, segundo a doutrina de Ezequiel Texidó e Gladys Baer3, ocupe uma posição de vulnerabilidade na sociedade receptora, a qual adviria de um duplo processo social. O primeiro, de ordem estrutural, deriva da existência de um estratagema de poder que, de forma empírica, denota a centralização de poder em alguns, sobrepondo-se aos demais.

O segundo, de matiz cultural, está imbricado a elementos enraizados em paradigmas estereotipados, de cunho sociológico, como preconceitos, racismo, xenofobia e discriminação institucional, que tendem a acentuar e justificar as diferenças entre o poder reconhecido aos nacionais e aos nãonacionais.

Neste quarto de século, por sua vez, aguça-se essa condição de manifesta vulnerabilidade, especialmente quando confrontada com o mais fundamental meio de inserção do homem no mercado de trocas: o trabalho. Em tempos de angústia e crise do desenvolvimento social humano, em que se projeta a miséria, o desemprego generalizado, além da desigualdade regional e transnacional, relações paliadas pela legislação do trabalho têm sua valia social ainda mais acentuada para a maioria esmagadora dos integrantes do tecido social, o que pode recrudescer a interação entre trabalhadores nacionais e não-nacionais.4

permanecer no país. Um imigrante é estrangeiro, claro, até as fronteiras, mas apenas até as fronteiras. Depois que passou a fronteira deixa de ser um estrangeiro comum para tornar-se um imigrante. Se “estrangeiro” é a definição jurídica de um estatuto, “imigrante” é antes de tudo uma condição social. SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 243. 3 TEXIDÓ, Ezequiel, BAER, Gladys. Inserción sociolaboral de los migrantes. In TEXIDÓ, Ezequiel et al. Migraciones laborales em Sudamérica: el Mercosur ampliado. Genebra: Oficina Internacional do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho, 2003, p. 107 4 NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. A proteção jurídica do trabalhador como exercício da alteridade. In: Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.48, n.78, p.113-121, jul./dez.2008, p. 117.

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O trabalho, aliás, é indissociável do estudo do fenômeno da imigração e da própria identificação do imigrante. A definição proposta por Sayad fixa a medida dessa irmandade:

Afinal, o que é um imigrante? Um imigrante é essencialmente uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio, um trabalhador imigrante (sendo que trabalhador e imigrante são, nesse caso, quase um pleonasmo), mesmo se nasce para a vida (e para a imigração) na imigração, mesmo se é chamado a trabalhar (como imigrante) durante toda a sua vida no país, mesmo se está destinado a morrer (na imigração), como imigrante, continua sendo um trabalhador definido e tratado como provisório, ou seja, revogável a qualquer momento. A estadia autorizada ao imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única razão de ser que lhe é reconhecida [...]. Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o fez existir; é ele, quando termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação ou que o empurra para o não-ser.5

Também o traço da provisoriedade da mão de obra imigrante, sempre fadada ao retorno à origem ou à completa integração (o que, de ambos os modos, significará o fim da condição de imigrante), contribui para a reificação da diferença.

Ainda que, como aponta Sayad6, tal provisoriedade seja meramente utópica – a funcionar tãosomente como via de justificação no imaginário social para a presença dos imigrantes (ao lado de outras duas ilusões: presença exclusivamente pelo trabalho e neutralidade política) -, ela efetivamente contribui para fixar os contornos do não pertencimento do imigrante.

Um outro aspecto importante na acentuação da diferença do estrangeiro diz respeito à situação jurídica em que se deu a imigração. A condição de legalidade, além da força jurídica propriamente dita, tem um significativo poder simbólico, a catalisar a aproximação entre nacionais e estrangeiros. Da mesma forma, a ilegalidade acirra a...

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