Translucido claro e distinto ou kafka diante da lei: verdade, metafora, direito/Clear and distinct translucent or kafka before the law: truth, metaphor, law.

AutorBraga, Luiz Carlos Montans

"Nao foi por acaso que ele [Kafka] (...) escolheu, para a representacao da realidade e de seus pensamentos filosoficos, a forma da ficcao." Gunther Anders (Kafka: pro e contra)" 1. Mapa

Este artigo tem dois movimentos argumentativos que se ligam. O primeiro trata da questao da verdade como portadora de varias facetas. Tais facetas ficam ainda mais distintas caso a comparacao entre elas se de ao longo da historia das ideias e dos agrupamentos humanos. O segundo movimento argumentativo procura defender a tese de que Kafka, por meio de sua ficcao, desloca para fixar. Isto e, procura, pela arte, explicitar a verdade de um tema por meio de um deslocamento que faz ver o que nao se veria pela mera descricao. Nesse sentido, aponta para uma verdade acerca do real, mas por outros meios que nao aqueles da mera descricao adequada ou da obediencia a principios logicos. Esta hipotese e uma interpretacao possivel da obra de Kafka - por meio da analise do conto Diante da lei -, e nao tem a pretensao de esgotar ou dar a palavra final em uma fortuna critica densa e ampla. O objetivo e antes o de ancorar o conceito de verdade em outras paragens, levantando a hipotese de que o terreno ficcional e atravessado pela filosofia - caso se de a filosofia uma definicao que implica o fazer enxergar. Do mesmo modo, como outro lado da moeda, em alguns momentos do texto ficara claro que tambem a filosofia e atravessada pela literatura, sobretudo quando faz uso de metaforas. O que levanta a questao nao apenas do terreno borrado que separa os dois discursos, mas da presenca, sutil ou explicita, de um no outro.

Neste segundo momento argumentativo, quando da analise do conto Diante da lei, o proposito tambem e o de levantar argumentos a favor da tese segundo a qual Kafka tem uma densa reflexao sobre o direito e o faz por meio da literatura. Pode-se ver, neste conto de Kafka, uma especie de filosofia do direito com as roupagens da prosa literaria, o que aponta, no mesmo sentido do afirmado acima, para a ideia segundo a qual literatura e filosofia do direito tambem podem se apresentar uma no campo discursivo da outra. Isto e, no caso do conto analisado, pode-se dizer que ha boa filosofia do direito sob a forma literaria.

  1. Facetas de aletheia [[phrase omitted]]

    Marcel Detienne inicia o livro Os Mestres da Verdade na Grecia Arcaica lancando a tese do traco eminentemente historico do conceito de verdade. Historico, isto e, ligado as categorias mentais e a vida material e social de dado grupo humano. Ja no primeiro capitulo, intitulado Verdade e Sociedade, afirma que em "uma civilizacao cientifica, a ideia de Verdade introduz imediatamente as de objetividade, comunicabilidade e unidade" (DETIENNE, 1988, p. 13). E desdobra tal afirmacao constatando que nas sociedades ocidentais contemporaneas, a verdade se definiria em dois niveis. Por um lado, obediencia a alguns principios logicos. Por outro, conformidade com o real. Assim, esta ideia de verdade se mostra estruturalmente ligada aos conceitos de demonstracao, verificacao e experimentacao. O autor indaga, entao, se a ideia de verdade - como categoria mental - nao seria solidaria de um sistema de pensamento, da vida material e da vida social (DETIENNE, 1988, p. 13).

    De fato, a palavra grega para designar verdade e aletheia [[phrase omitted]]. Mas seu sentido nao pode ser entendido simplesmente por adequatio entre proposicoes e realidade sem uma deformacao completa de seus varios sentidos na historia das sociedades e das ideias. Parece ser este um ponto fundamental para o qual o texto de Detienne procura chamar a atencao. A traducao da palavra passa a ser, assim, uma questao da historia das ideias e, simultaneamente, uma questao da filosofia. Como indica o autor, "a pre-historia da Aletheia filosofica conduz-nos a um sistema de pensamento do adivinho, do poeta e do rei de justica" (DETIENNE, 1988, p. 14). Esta constatacao leva a varias indagacoes, sendo que uma delas, para este artigo, tem grande relevancia. Apos a indicacao de uma "pre-historia" de aletheia, Detienne pergunta: que transformacoes mentais e sociais levaram a palavra eficaz a um tipo de palavra que traz outros problemas, como o da "relacao entre a palavra e a realidade" e "entre a palavra e o outro" (DETIENNE, 1988, p. 14)? Isto porque na pre-historia de aletheia nao ha qualquer sentido em afirmar a verdade como jogo de espelhos entre as palavras e as coisas. Em vez disso, na Grecia arcaica aletheia e oficio do poeta, o qual, ao invocar as musas, nao deixa esquecer [lethe ([phrase omitted]), sendo a-letheia o mesmo que nao-esquecimentoj: "Aletheia nao tem uma funcao diferente da funcao da Memoria" (DETIENNE, 1988, p. 21). E tambem, lembra o autor, funcao do adivinho e do rei de justica, os quais detem a palavra eficaz, a que gera efeitos, persuade (DETIENNE, 1988, p. 24-25).

    Eis um problema filosofico ainda candente - o dos diversos sentidos de aletheia. Se aletheia veio a ser, nas sociedades cientificas, jogo de espelho entre as palavras e as coisas, de um lado, e resultado do uso correto de principios logicos - deducao -, por outro, haveria lugar de verdade para a ficcao? Se houver, numa virada que se aproxima do paradoxo, qual o sentido desse genero de verdade?

    E certo que na ficcao, sobretudo na contemporanea, como e o caso da kafkiana, nao ha terreno para "um sistema de pensamento do adivinho, do poeta e do rei de justica" (DETIENNE, 1988, p. 14). Parece ser outro o locus da verdade nesse genero de discurso. Isto leva a fazer uma passagem pela questao do discurso ficcional como fundador de outro conceito de verdade, no sentido de que tal discurso tem potencia, a sua maneira, para esclarecer a realidade. Em certo sentido, esta potencia de aclarar pode ser maior do que a mera descricao, na medida em que adianta a compreensao do que ainda nao e visivel pelas lentes da descricao, ou qualquer outra lente (CARONE, 2008, p. 197). Este ponto sera desenvolvido em outro momento do artigo. Quer-se, assim, suspeitar - por uma via um pouco diversa da aberta por Detienne - da tese da predominancia do discurso verdadeiro como aquele que se funda no jogo da deducao e da correspondencia das proposicoes ao real. Em outros termos, trata-se de defender a tese de que o discurso ficcional pode ser aquele que funda outro tipo de verdade - frequentemente nao visivel pelo discurso da correspondencia entre as palavras e as coisas - e aponta para o real por outros meios. Esta argumentacao, no momento da analise de uma narrativa de Franz Kafka, se baseara em Gunther Anders (ANDERS, 2007) e, parcialmente, em Modesto Carone (2003, 2007, 2008). Apenas tangencialmente em Walter Benjamin (BENJAMIN, 1996) e Deleuze e Guattari (DELEUZE & GUATTARI, 1975). A analise de um conto de Kafka sera o momento de exemplificar a tese deste encontro entre ficcao, verdade e realidade, numa tensao de conceitos que flerta com o paradoxo, embora tenha forte poder explicativo.

    Antes da analise dos argumentos dos autores citados sobre Kafka, interessa lembrar que a diferenca da filosofia para a ficcao nao se sustenta, sem maiores problemas, na simples diferenca entre o conceitual (filosofia) e o imagetico (ficcao). A filosofia nao parte simplesmente da abstracao, do nao-sensorio, para chegar ao conceito. Em outros termos, nao e do conceito puro que se caminha ao conceito puro. O sensorio esta em grande parte das elaboracoes filosoficas. Esta em larga medida em Platao, por exemplo. E nao se pode esquecer que, mesmo em Descartes, exemplo por excelencia do seculo do "grande racionalismo" (MERLEU-PONTY, 1960, p. 170-240), as ideias, para o adequado encadeamento do saber, devem ser "claras e distintas". Esta expressao ja aponta para a metafora do claro, a qual remete ao conceito, mas nao sem a ponte do sensorio. O conceito, para ser inteligivel, filosofico, e nominado claro. Nao se filosofa sem recorrer, muitas vezes, a um vocabulario, por assim dizer, terreno.

    De volta a Platao, para localizar o uso das imagens ou, mais amplamente, do nao-conceitual como necessario ao territorio da filosofia. Para ficar num momento bem evidente deste ponto no corpus platonico, basta lembrar o livro VII de A Republica (514 a - 541b, sobretudo ate 517c) (1). As imagens estao em toda parte da alegoria da caverna, bem como em outros momentos do dialogo, sendo o suporte para o que ha de filosofico (2). Mas a linha que delimita um campo e outro (conceitual e imagetico) e antes um borrao que uma linha. E os discursos filosofico e literario estao, a todo tempo, invadindo o terreno...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT