A tridimensionalidade constitucional da propriedade

AutorNelson Rosenvald
Ocupação do AutorPós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (Itália)
Páginas305-323
A TRIDIMENSIONALIDADE
CONSTITUCIONAL DA PROPRIEDADE
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (Itália). Pós-Doutor em Direito
Societário na Universidade de Coimbra (Portugal). Professor Visitante na Universidade
de Oxford (United Kingdom). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Procurador
de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.
“A propriedade é também um problema técnico, mas nunca é somente um problema
técnico: por debaixo, os grandes arranjos das estruturas; por cima, as grandes certezas
antropológicas põem sempre a propriedade no centro de uma sociedade e de uma
civilidade. A propriedade não consistirá jamais em uma regrinha técnica mas em uma
resposta ao eterno problema da relação entre homem e coisas, da fricção entre mundo
dos sujeitos e o mundo dos fenômenos, e aquele que se propõe a reconstruir sua história,
longe de ceder a tentações isolacionistas, deverá, ao contrário, colocá-la sempre no
interior de uma mentalidade e de um sistema fundiário com função eminentemente
interpretativa.” (Paolo Grossi. A História da Propriedade e Outros Ensaios)
Sumário: 1. A desconexão entre as propriedades e o novo mercado; 2. O direito fundamental
de propriedade como garantia; 3. O direito fundamental à propriedade como acesso; 4. A
função social da(s) propriedade(s); 5. A tridimensionalidade das propriedades e as dimensões
de direitos fundamentais; 6. Conclusão; 7. Referências.
1. A DESCONEXÃO ENTRE AS PROPRIEDADES E O NOVO MERCADO
A desintegração da propriedade é um fato inequívoco. Não como um dado exclu-
sivo da pós-modernidade, porém como mais um capítulo em uma odisseia iniciada na
revolução industrial, na qual a titularidade incorpórea auspiciosamente se torna mais
relevante que o domínio físico dos bens de raiz. Em ambientes de instituições demo-
cráticas, af‌loram os incentivos para que patentes, softwares e direitos autorais façam a
roda da fortuna girar. A Apple é a empresa mais valiosa da história, apoiada no binômio
intangível inovação tecnológica/design1. As riquezas das pessoas e nações passaram a
ser def‌inidas pela dinâmica capacidade de criação, em detrimento ao que a natureza
estaticamente lhes reserva, como terras e commodities.
O cerne do domínio se deslocou da posse de coisas e do capital físico para a criati-
vidade humana, o capital intelectual. A propriedade clássica, caracterizada pelo poder
1. Mais um ano se passou e, mais uma vez, a Apple está no topo das empresas mais valiosas do mundo. A marca foi
avaliada em US$ 170 bilhões, de acordo a Forbes. Esse é o sétimo ano consecutivo que a companhia de Cupertino
aparece nessa mesma posição no ranking. O top 10 do ranking deste ano divulgado pela Forbes é quase todo feito
de empresas de tecnologia: 1. Apple; 2. Google; 3. Microsoft; 4. Facebook; 5. Coca-Cola; 6. Amazon; 7. Disney;
8. Toyota; 9. McDonald’s; 10. Samsung; Disponível em: cado/119621-novo-apple-
-empresa-valiosa-mundo.htm>. Acesso em: 21 jul. 2017
Direito Privado e Contemporaneidade.indb 305Direito Privado e Contemporaneidade.indb 305 23/03/2020 18:30:5923/03/2020 18:30:59
NELSON ROSENVALD
306
de ingerência socioeconômica sobre a coisa e a visibilidade de sua exteriorização pelo
exercício dos atributos do uso e fruição é ultrapassada pela propriedade incorpórea, na
qual o artíf‌ice da criação intelectual é remunerado pela cessão da técnica, reservando
para si a titularidade do bem. Diversos modelos de propriedade convivem com as suas
peculiaridades. Daí que hoje se fala em direito das propriedades, ao contrário do que
se extraí da arcaica estrutura monopolística sugerida pelo artigo 1227 do Código Civil.
O que há de atualíssimo nessa discussão é a própria redef‌inição do conceito de
propriedade e o mais importante, o seu próprio embasamento f‌ilosóf‌ico e sociológico. A
propriedade enucleada no “ter” conferiu suporte ao indivíduo moderno. Em um primeiro
momento a sociedade estamental é abolida e o indivíduo se liberta da condição perene
de nobre ou campesino. A única possibilidade de a pessoa perseguir a sua autonomia se
dava pela aquisição da titularidade, que lhe propiciasse independência material e social,
passando a existir por si próprio, com possibilidade de conduzir a própria vida, preocu-
pando-se com o seu perímetro subjetivo e cultivando a sua interioridade. A propriedade
individual como acesso a cidadania já teve os seus tempos de glória.2
Todavia, a noção de propriedade é progressivamente substituída pelo acesso a
experiências culturais. A troca de bens materiais entre vendedores e compradores no
mercado é suplantada pela lógica da preservação da titularidade com os fornecedores,
com base em leasing, aluguel ou cobrança de uma taxa pela admissão ou pela assinatura,
na qual o que importa é a prestação de serviços e o acesso a curto prazo entre servidores
e clientes que operam em rede. Na nova economia o capital intelectual não é trocado.
O valor de mercado de empresas como Uber, Airbnb, Spotfy e Netf‌lix atestam a noção de
Bauman sobre a “modernidade líquida”, em tempos em que, ao invés da condição de
proprietários de bens móveis e imóveis, a única certeza é a busca pela utilidade privada
de bens, convertendo ideias e experiências – e não coisas – em verdadeiros itens de valor
na nova economia. A propriedade é uma instituição lenta demais para se ajustar a ve-
locidade de uma cultura f‌luida e veloz, na qual os verbos “ter”, “guardar” e “acumular”
cada vez fazem menos sentido. A propriedade pessoal já foi considerada a extensão do
próprio ser e a medida do homem, doravante, as próximas gerações se relacionarão com
o mercado de uma forma bem diferente.
2. O DIREITO FUNDAMENTAL DE PROPRIEDADE COMO GARANTIA
Desde 1215, com a imposição da Magna Carta pelos Barões ingleses a João sem
Terra, as sociedades civilizadas compreendem a imprescindível relação entre o Estado
de Direito e a irrecusável proteção aos direitos de propriedade. Os súditos oferecem
respaldo aos governantes em troca da erradicação do caos social e da preservação das
liberdades pessoais.3
2. CASTEL, Robert. La Inseguridad social. Buenos Aires: Manantial, 2015, p. 28.
3. Pode-se dizer que a Magna Carta foi a primeira tentativa de codif‌icação do direito inglês. Ao delegar a 25 barões a
atribuição de f‌iscalizar a atuação real e o seu próprio cumprimento, a Magna Carta lança o gérmen das modernas
democracias representativas ocidentais. É claro que os direitos que aparecem na Magna Carta não são universais,
dado que na altura do longínquo século XIII não existia esse conceito. Eles são direitos concedidos a diferentes
grupos em um delicado jogo de poder. No entanto lá reside a semente de uma Constituição. A submissão do
Direito Privado e Contemporaneidade.indb 306Direito Privado e Contemporaneidade.indb 306 23/03/2020 18:30:5923/03/2020 18:30:59

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT