Da Tutela do Consumidor em Portugal e do Papel do Ministério Público

AutorJorge Dias Duarte
CargoProcurador-Coordenador dos Juízos e Varas Cíveis de Gaia
Páginas133-152

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Referindo-se aos direitos dos consumidores, o artigo 60º da Constituição da República Portuguesa estabelece expressamente que:

«1. Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos.

  1. A publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indirecta ou dolosa.

  2. As associações de consumidores e as cooperativas de consumo têm direito, nos termos da lei, ao apoio do Estado e a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores, sendo-lhes reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos.»

Caracterizando-se, tradicionalmente, o Ministério Público português pela riqueza e diversidade das funções que lhe são cometidas, veriica-se que, atualmente, o n. 1 do artigo 221º da Constituição da República Portuguesa, estabelece que "ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar (...)", sendo que, em paralelo, o artigo 3º, n. 1, alínea e), do Estatuto do Ministério Público1dispõe que "compete especialmente ao Ministério Público: (...) assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos2", acrescendo que, de acordo com a alínea e) do n. 1 do artigo 5º do mesmo estatuto, em tais casos "o Ministério Público tem intervenção principal nos processos".

Importa, a este propósito, referir que, sob a epígrafe de "Ações para a tutela de interesses difusos", o artigo 26º-A do Código de Processo Civil dispõe que "Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos casos previstos na lei".

Sendo estas as primeiras normas convocáveis para deinirmos a atuação do Ministério Público na tutela dos direitos dos consumidores, importa, no estrito âmbito da presente intervenção, reter dois diplomas que expressamente se referem à intervenção do Ministério Público nesta área, quais sejam, a Lei de Defesa do Consumidor (LDC), ou seja, a Lei 24/96, de 31 de Julho, na redação do DL 67/2003, de 8 de Abril, o qual, por sua vez, foi alterado pelo DL 84/2008, de 21 de Maio, que transpôs para o direito interno a Diretiva 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, e o

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Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais3, plasmado no DL 446/85, de 25 de Outubro, sucessivamente alterado pelo DL 220/95, de 31 de Agosto, objeto da Declaração de retiicação 114-B/95, de 31 de Agosto, pelo DL 249/99, de 7 de Julho e pelo DL 323/2001, de 17 de Dezembro.

Nos termos do n. 1 do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor4,

"considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não proissional, por pessoa que exerça com carácter proissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios"; mas importa referir que o âmbito da Lei em referência se estende, também, aos bens, serviços e direitos fornecidos, prestados e transmitidos pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas Regiões Autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos, tal como dispõe o n. 2 do normativo citado.

Continuando a seguir a mesma lei, veriica-se que o consumidor tem os direitos consagrados no respectivo artigo 3º, ou seja:

- direito à qualidade dos bens e serviços (cfr., também, artigo 4º);

- direito à proteção da saúde e da segurança física (cfr., também, artigo 5º); - direito à formação e educação para o consumo (cfr., também artigo 6º);

- direito à informação para o consumo (cfr., também, artigos 7º e 8º);

- direito à protecção dos direitos económicos (cfr., também, artigo 9º);

- direito à prevenção e reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogéneos, coletivos ou difusos (cfr. artigos 10º a 13º);

- direito à proteção jurídica e a uma justiça acessível e pronta (cfr. artigo 14º), e

- direito à participação, por via representativa, na deinição legal ou administrativa dos seus direitos e interesses (cfr. artigo 15º).

Reportando-se a minha intervenção ao papel que o Ministério Público português pode/deve desempenhar na defesa do consumidor, impõe-se referir que, quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos e de harmonia com o disposto na alínea c), do artigo 13º da LDC, o Ministério Público (tal como o Instituto do Consumidor) tem legitimidade activa para intentar as ações previstas nos artigos 10º a 12º da mesma lei, e designadamente a ação inibitória, a qual, como resulta do n. 1 do artigo 10º da lei em referência, se destina "a prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos do consumidor consignados na presente lei, que, nomeadamente:

  1. Atentem contra a sua saúde e segurança física;

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  2. Se traduzam no uso de cláusulas gerais proibidas; c) Consistam em práticas comerciais expressamente proibidas por lei". Retenha-se que, de acordo com o n. 2 da mesma norma, "A sentença proferida em ação inibitória pode ser acompanhada de sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo 829º-A do Código Civil, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar".

    Referindo-me, antes do mais, à legitimidade do Ministério Público para intervir e sendo seguro que a mesma apenas se veriicará quando estejam em causa interesses individuais homogéneos5, coletivos6 ou difusos - e sendo certo, todavia, que a maioria das solicitações efetuadas ao Ministério Público se referem a casos individuais em que o consumidor mais não deseja que reclamar uma indemnização - importa repetir que, em tais situações o Ministério

    Público não atua em representação, mas em nome próprio, por a lei lhe impor que assuma um interesse de caráter social que, por natureza, se não mostra determinado do ponto de vista subjetivo, assim se tratando de uma intervenção oiciosa, no exercício de uma competência especíica, para agir no interesse da coletividade.

    Nestes casos, o Ministério Público exerce um verdadeiro poder de intervenção nas relações jurídico-privadas, que o ordenamento jurídico, em certas circunstâncias reserva ao Estado-coletividade. Este vai, pois, atuar através do Ministério Público como verdadeiro substituto processual dos titulares das relações jurídico-privadas controvertidas, solicitando uma providência jurisdicional com relexo na esfera dos particulares, com vista à realização direta do interesse público (Lopes do Rego, Revista do Ministério Público, ano 11º, n. 41, págs. 48 e 49).

    A ação inibitória, no âmbito da LDC, visa a defesa de interesses individuais homogéneos, coletivos e difusos, com o objetivo de prevenir, corrigir e/ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos dos consumidores, sendo admissível procedimento cautelar, nos termos gerais; no que se refere ao tribunal competente, aplicam-se as regras gerais - cfr. artigos 85º, 86º e 87º do Código de Processo Civil.

    Conforme resulta do acima referido, as alíneas a), b) e c) do n. 1 do artigo 10º da LDC são meramente exempliicativas, existindo uma relação de especialidade entre a alínea b) daquele normativo - "práticas lesivas dos direitos dos consumidores (...) que se traduzam no uso de cláusulas gerais proibidas" - e o artigo 25º do RJCCG; importa, a este propósito, referir que pode haver

    Compete especialmente ao Ministério Público: assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos

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    cumulação de causas de pedir, maxime quando estamos perante uma cláusula nula e uma prática comercial proibida por lei7.

    De harmonia com o disposto no n. 1 artigo 11º da LDC, a ação inibitória tem o valor equivalente ao da alçada da Relação mais 1$00 (atualmente, €0,01), seguindo os termos do processo sumário, e estando isenta de custas, sendo que "A decisão especiicará o âmbito da abstenção ou correção, designadamente através da referência concreta do seu teor e a indicação do tipo de situações a que se reporta" - cfr. n. 2 do mesmo normativo; acresce, ainda, que, de harmonia com o n. 3 do normativo em referência, "Transitada em julgado, a decisão condenatória será publicitada a expensas do infrator, nos termos ixados pelo juiz, e será registada em serviço a designar nos termos da legislação regulamentar da presente lei", sendo que "Quando se tratar de cláusulas contratuais gerais, aplicar-se-á ainda o disposto nos artigos 31º8e 32º9do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 220/95, de 31 de Agosto" - cfr. n. 4 do artigo citado.

    Do acima exposto resulta nítida a intenção do legislador em facilitar este tipo de ações, maxime ao estabelecer que a ação inibitória segue os termos do processo sumário, estando isenta de custas.

    No que estritamente concerne à isenção de custas, aigura-se que, não tendo sido revogada pelo anterior Código das Custas Judiciais, não obstante o disposto no artigo 25º, n. 110, do DL 34/2008, de 26 de fevereiro, que aprovou o novo Regulamento das Custas Processuais, à luz do disposto na alínea f )11do n. 1 do artigo 4º deste regulamento, e sem prejuízo do disposto no artigo 25º, n. 1, do diploma citado, aigura-se que a mesma isenção se manterá ainda nos dias de hoje12.

    Já no que concerne ao Ministério Público dúvidas não há que está isento de custas, pois que nos termos da alínea a) do n. 1 do artigo 4º do Regulamento das Custas...

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