Tutela jurisdicional para entrega de coisa (cpc, art. 461-A)

AutorEduardo Talamini
CargoMestre e Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas97-120

Page 97

1 Introduçåo

Na história da vigência do Código de Processo Civil de 1973, suas alterações ocupam papel destacado. Deixando de lado mudanças pontuais e isoladas - presentes, aliás, desde antes do início de sua vigência (Lei 5.925/1973) - ePage 98 concentrando-se no conjunto de revisões iniciadas na primeira metade da década de 1990, com a Lei 8.455/1992, já se vão quatorze anos de sucessivas alterações. Vale dizer, a época das reformas corresponde a 40% do tempo de vigência do Código, com a edição de mais de vinte leis. E outras tantas estão por vir: há mais de vinte projetos em trâmite no Congresso Nacional. Até aqui, algumas delas talvez tenham sido, como já disseram alguns, meramente "cosméticas". Outras, embora sendo propriamente de conteúdo, disseram respeito a questões acessórias. Mas houve também mudanças significativas, que verdadeiramente implicaram a substituição de princípios fundamentais adotados na origem do Código. Enfim, optou-se por reformá-lo progressiva e continuamente em vez de construir um integralmente novo - com as vantagens e inconvenientes que isso traz. 1

2 A alteraçåo de um princípio geral

O tema do presente texto insere-se no âmbito dessas transformações essenciais. Originalmente, o Código consagrava a diretriz da clara separação das atividades de cognição e de execução em dois distintos processos. Não detendo o jurisdicionado um título executivo extrajudicial, cabia-lhe antes promover um processo de conhecimento destinado à formação de um título executivo judicial, para só depois, em subseqüente processo, com nova petição inicial e citação, obter a execução. A reunião de ambas as atividades na mesma relação processual, em duas fases subseqüentes, era um excepcionalidade reservada a alguns "procedimentos especiais" disciplinados no Código ou em legislação extravagante (ações possessórias, nunciação de obra nova, demarcatória, divisória, mandado de segurança etc.). Ao primeiro traço, da separação das atividades em processos distintos, associaram-se ainda outras duas características gerais: (i) a marcante tipificação dos meios destinados à produção do resultado executivo e (ii) a ausência da emissão de ordens judiciais propriamente ditas, cujo descumprimento implicasse afronta à autoridade estatal. Também no que tange a esses aspectos, as exceções residiam em "ações especiais".

Mas a separação ou unificação das atividades cognitiva e executiva em um mesmo processo, assim como os outros dois aspectos ora mencionados, deriva de razões pragmáticas, contingentes - e não ontológicas, necessárias.

Com a Lei 8.952/1994, o cenário começou a alterar-se. Mediante o conjunto de disposições reunidas no novo Art. 461 do Código, 2 institui-se regimePage 99diferenciado de tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. Eis os seus principais traços: 3

  1. consagra-se a máxima da preferência absoluta pelo resultado específico que se teria com o cumprimento do dever de fazer ou não-fazer. Apenas em última hipótese, quando isso for impossível ou houver pedido do autor, far-se-á a conversão em perdas e danos;

  2. a sentença final é executada na própria relação processual em que foi proferida. Não é necessária nem cabível a instauração de um subseqüente processo de execução;

  3. a sentença final, tal como a decisão que antecipa tutela, veicula também eficácia mandamental. Ou seja, o juiz tem o poder de emitir verdadeiras ordens para o cumprimento do dever de fazer ou não fazer;

  4. cabe a cominação, inclusive de ofício, de multa diária ou com outra periodicidade pelo descumprimento do comando judicial. Tal multa tem caráter coercitivo, e não indenizatório ou punitivo. Destina-se a pressionar o réu ao cumprimento da ordem do juiz.

  5. o juiz está ainda investido de amplos poderes para adotar inclusive medidas atípicas, não expressamente previstas, destinadas a substituir a conduta do réu no cumprimento da obrigação (medidas sub-rogatórias) ou a pressionar o próprio réu a cumprir ele mesmo a obrigação devida (medidas coercitivas);

  6. previu-se especificamente o cabimento de medida urgente de antecipação de tutela, que pode ser concedida inclusive liminarmente. E - eis o detalhe mais importante - para a efetivação dessa medida podem ser utilizadas todas as providências sub-rogatórias e coercitivas utilizáveis para a execução da própria sentença final. Não cabe aqui discutir as classificação das sentenças, para saber se é viável aludir a sentenças "mandamentais" e "executivas" como algo distinto das sentenças "condenatórias". Tenho defendido tal distinção. 4

Mas aqui importa apenas destacar que mesmo doutrinadores que recusam a diferenciação reconhecem que o modelo estabelecido com o novo Art. 461 é significativamente distinto daquelePage 100 disciplinado pelo Livro II do Código (e aplicável - note-se - inclusive ao "cumprimento de sentença" condenatória ao pagamento de quantia, conforme Art. 475-R). 5

Mas até então tinha-se apenas uma exceção ao regime geral. Foi com a instituição do Art. 461-A (Lei 10.444/2002), que estendeu à tutela para a entrega de coisa as regras do Art. 461, que a diretriz geral veio a alterar-se. A partir daí a separação das atividades cognitiva e executiva em processos distintos passou a ser uma exclusividade da tutela referente ao pagamento de quantia (e, ainda assim, por pouco tempo: a Lei 11.232/2005 veio a também prever que em regra a execução da condenação por quantia certa seja feita no próprio processo em que se formou o título). Além disso, também se tornou regra geral - excetuando-se a tutela pecuniária - a autorização para o emprego de providências executivas atípicas pelo juiz (nesse ponto, a tutela relativa a pagamento de quantia permanece alheia a essa nova regra geral: como já afirmado, nos termos do Art. 475-R, aplica-se ao "cumprimento de sentença" a disciplina do Livro II do Código, que tipifica rigidamente os meios executivos utilizáveis).

3 As razões para a extensåo das regras do art 461 À tutela para entrega de coisa

O dever de entregar coisa fungível ou infungível envolve prestação eminentemente fungível: há a possibilidade de que terceiros se substituam ao sujeito incumbido do dever e obtenham o bem devido. Assim, poder-se-ia supor que tais deveres já receberiam tutela adequada e suficiente através da estrutura tradicional condenação (posterior à violação do direito) seguida de processo autônomo de execução .

Mas mesmo nesse campo, são inúmeras as situações que exigem proteção que vá além. Podem ser mencionadas, entre outras hipóteses: i) os deveres contínuos e periódicos que correm o risco de sofrer repetição de violação - para os quais se justifica "condenação para o futuro" (formação do título executivo prévio ao inadimplemento - ex.: CPC, Art. 290); 6Page 101

ii) os casos de urgência, em que a violação do dever tende a gerar, ainda que reflexamente, danos graves e de difícil reparação (ex.: obrigação de fornecimento de matéria-prima indispensável para a atividade da empresa credora) - para os quais são necessários provimentos urgentes, com eficácia executiva e (ou) mandamental, que poderão até ser emitidos antes da própria violação, a fim de operar sanções preventivas ou simultâneas. Isso já podia ser propiciado, mesmo antes da Lei 10.444/2002, pelo Art. 273 do Código de Processo Civil;

iii) as pretensões reais (ex.: reintegração de posse, ação de imissão na posse) - para as quais não se justifica o emprego da condenação seguida de "execução para entrega de coisa", sendo-lhes mais adequados pronunciamentos executivos (i.e., cuja execução dispense a instauração de novo processo). Mas isso depende do direito positivo: se a lei não atribuir tal eficácia às decisões que tutelam as pretensões reais, ela não será extraível de uma suposta "natureza das coisas"; 7

iv) os deveres de entrega de coisa cuja realização mediante meios sub-rogatórios tende a ser extremamente dificultada se não houver a colaboração do sujeito passivo (por exemplo, para indicar onde está bem móvel) - para os quais se revela útil e razoável o emprego de provimentos mandamentais. Uma mesma situação carente de tutela pode inserir-se em duas ou mais dessas quatro hipóteses.

Conforme apontado, para as situações descritas em "i" e "ii" já existiam em nosso sistema instrumentos de tutela adequados. Não, porém, para as indicadas sub "iii" e "iv". Nem todas as pretensões reais ("iii", acima) eram objeto de tutela mediante pronunciamentos diretamente executivos. E não eram previstos meios coercitivos para pressionar o obrigado à entrega da coisa, a fim de que ele colaborasse com sua própria conduta.

Por isso, ainda antes da Lei 10.444, apontava-se que a incidência de regime semelhante ao do Art. 461 poderia vir a apresentar significativa utilidade para a tutela referente à entrega de coisas. 8

É bem verdade que, conforme o fundamento do dever de entrega da coisa, já existiam tutelas diferenciadas, revestidas de mecanismos cuja eficiência equivale à daqueles previstos no Art. 461. Basta considerar a disciplina da reintegração de posse, da busca e apreensão, do despejo, da ação de depósito etc. Além disso, noPage 102 procedimento dos Juizados Especiais, a multa já era aplicável à execução para entrega de coisa (Lei 9.099/95, Art. 52, V).

Todavia, não existia idêntica previsão na disciplina geral de tutela para entrega de coisa. A multa era expressamente prevista apenas para a tutela relativa a deveres de fazer e de não-fazer. Antes da reforma de 1994, prevalecia o entendimento de que a multa diária não era extensível à tutela referente à entrega de bens ou pagamento de quantia (Súmula 500 do STF: "Não cabe a ação cominatória para compelir-se o réu a cumprir obrigação de dar"). Porém, a partir da instituição das atuais normas dos Arts. 273 e 461 (pela Lei 8.952/94), não...

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