A tutela do meio ambiente como limitador da soberania estatal e do desenvolvimento

AutorIngrid Giachini Althaus - Tiago Gagliano Alberto - Paola Bianchi Wojciechowski
CargoPossui graduação em Direito (2005) e pós-graduação lato sensu pela Escola da Magistratura do Paraná (2006) - Possui graduação em Direito pela Universidade Cândido Mendes (2002) - Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Paraná
Páginas170-194

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Introdução

Os problemas ambientais devem ser vistos como diferentes facetas da mesma crise, que é, em grande parte, uma crise de percepção, decorrente do fato de que a maioria possui uma visão de mundo obsoleta, uma percepção da realidade inadequada, para lidar com o mundo superpovoado e globalmente interligado.

O presente artigo abordará a proteção do meio ambiente como fator de limitação da soberania estatal e do crescimento econômico global.

Para tanto, analisar-se-á o fenômeno da integração econômica no comércio global, além de traçar um paralelo com a dependência econômica entre os países, fruto da globalização.

Outrossim, demonstrar-se-á toda a evolução ocorrida nas normas internacionais, como, por exemplo, as instituições de Bretton Wo-ods, o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e o GATT, a fim de abarcar essa nova realidade que nos cerca, qual seja, de uma integração econômica global.

Vencida essa etapa, passa-se à análise do conceito tradicional de soberania, para, por fim, demonstrar a necessidade de se fazer uma releitura de sua concepção, a fim de se adequá-lo ao fenômeno de integração econômica internacional.

Após o que, relacionar-se-á o processo de surgimento de uma consciência ambiental universal com a relativização do conceito de soberania e como limite ao crescimento econômico mundial.

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1. A integração econômica e o direito internacional - a globalização

O sistema econômico capitalista neoliberal desenvolvido e fortalecido na modernidade sustentou-se sobre a ideia de um mercado autossustentável e autorregulável. A "mão invisível" do mercado, conforme termo introduzido por Adam Smith, pairou sobre a economia por muito tempo como um dogma.

Desta maneira a expansão do capital não tardou a atingir proporções globais, acelerando a denominada globalização (ou internacionalização) da economia (CHOMSKY, 1999, p. 12), caracterizada essencialmente pelo comércio internacional. Na perspectiva de Noam Cho-msky (1999, p. 12-13) essa nova economia global apresenta duas consequências importantes:

Em primeiro lugar, ela estende o modelo do Terceiro Mundo a países industrializados. No Terceiro Mundo, a sociedade divide-se em dois segmentos - um de extrema riqueza e privilégio, e outro de imensa miséria e desespero, formado por pessoas inúteis, dispensáveis.

Tal divisão é acentuada pelas políticas ditadas pelo Ocidente. Ele impõe um sistema neoliberal de 'livre mercado', que canaliza os recursos aos ricos e investidores estrangeiros, afirmando que algo irá resultar dali, como num passe de mágica, logo depois da chegada do Messias.

[...]

A segunda conseqüência, também importante, tem a ver com estruturas governamentais. As estruturas de governo tenderam à coalizão, ao longo da história, em torno de outras formas de poder - em tempos modernos, basicamente em torno do poder econômico. Portanto, onde existem economias na-

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cionais existem Estados nacionais. Agora temos uma economia internacional e estamos avançando rumo a um Estado internacional - o que significa, por fim, um executivo internacional. Citando a imprensa econômica, estamos criando uma "nova era imperial" com um "governo mundial de facto". Ele tem suas próprias instituições - como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, estruturas comerciais como o Nafta e o Gatt [o Acordo Norte-Americano de Livre Comércio e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (...)], encontros executivos como o G-7 [os sete países industriais mais ricos - EUA, Canadá, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, França e Itália - que se reúnem regularmente para discutir políticas econômicas] e a burocracia da Comunidade Européia.

Na medida em que o neoliberalismo se espraia pelo globo terrestre, impondo políticas econômicas que respondem basicamente aos anseios do capital (corporações transnacionais, bancos internacionais, órgãos econômicos supranacionais), demonstra-se acertada a afirmação realizada por Milton Santos, no sentido de que a "globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista" (SANTOS, 2000, p. 23).

No entanto, longe de se tratar de uma questão meramente econômica, centralizada na interdependência entre os países decorrente desta rede econômica global, a globalização envolve uma integração entre os Estados que supera este viés exclusivamente econômico1. Veri-

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fica-se, utilizando-se das palavras de Winter e Wachowicz (2006, p. 875), que o "Estado deixa de ser dono de algumas das suas políticas, que, historicamente, eram suas, perde a jurisdição sobre certas matérias, é obrigado a harmonizar a sua legislação com a dos restantes Estados, partes no fenômeno de integração, e, isto é o mais importante, muitas vezes, sem o seu consentimento." Isso porque, o fenómeno de integração internacional acaba por sobrepor um sistema jurídico a outro, vinculando os seus sujeitos duplamente2.

De tal forma, o Estado nacional tornou-se obsoleto para a resolução de inúmeros conflitos decorrentes do processo de globalização, eis que estes, muitas vezes, envolvem questões transfronteiriças, de modo que se buscou fortalecer as normas internacionais.

Como esse intuito, após a Segunda Guerra Mundial, teve origem o sistema de Bretton Woods, o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT).

As instituições de Bretton Woods fizeram uma nova leitura do Direito Internacional Público (SILVA, 2003, p. 33), o qual "pautava-se por uma ideologia europeia, visto que regulava as relações entre Estados civilizados, entendidos assim os Estados europeus, introduziu critérios que aplicavam-se também aos antigos países coloniais."

Ademais, consagrou-se (SILVA, 2003, p. 33) "o princípio da autodeterminação dos povos e o da justiça e progresso social para todos

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os países da nova comunidade mundial", criando-se, por consequência, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, os quais, teoricamente, visam garantir a concretização de tais princípios.

No avanço do direito internacional, com vistas à integração econômica, o GATT (CINTRA, 2004) fixou um conjunto de normas e um meio multilateral para o comércio de serviços, concomitantemente com a necessidade dos Estados preservarem as condições regulatórias de seus mercados internos, agregando-se, por fim, vários Estados-membros.

Pode-se inferir, portanto, que a integração econômica entre os Estados, bem como o fortalecimento das normas internacionais, decorrentes da necessidade de regulamentação das práticas comerciais, acabou por minar o conceito tradicional de soberania, eis que:

[...] se no âmbito econômico - para começar com este - os Estados, como questão de fato, se inclinam ante o poder de decisão coletiva das empresas multinacionais e ante as decisões e condicionamentos, em muitas ocasiões de caráter direta-mente político, de instituições tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, então, há de reconhecer-se claramente que o conceito de soberania é, nesse âmbito, uma convenção inútil ou, pior, mascaradora da realidade.

Desta forma, faz-se necessário realizar uma breve análise acerca do conceito tradicional de soberania a fim de se demonstrar as razões pelas quais se sustenta a impossibilidade de coexistência deste conceito - sob um viés absoluto e inflexível - com o sistema econômico global.

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2. A necessária revisão do conceito tradicional de soberania frente à globalização

O surgimento da concepção de soberania está atrelado ao nascimento do Estado Moderno e remonta à construção teórica realizada essencialmente por Jean Bodin, em 1576, com o desenvolvimento da obra "Les Six Livres de Ia Republique". Nesta obra, Bodin (1997, p. 09) define a República como "o justo governo de muitas famílias, e do que lhes é comum, com poder soberano"3, de modo a inserir substancialmente a soberania na definição de República4.

A passagem da Idade Média para a Idade Moderna é marcada, portanto, pelos Tratados de Paz de Vestfália que consagraram o "reconhecimento oficial da ideia de uma sociedade internacional integrada por Estados iguais e soberanos" (BOSON, 1994, p. 162).

Em sua gênese a soberania constituiu-se, portanto, como um poder absoluto e perpétuo, componente fundamental do Estado, cuja existência passa a depender desta noção. Norberto Bobbio (1997, p. 96) explica em que consistiriam os dois atributos da soberania - absoluto e perpétuo - na perspectiva de Jean Bodin:

O significado de 'perpetuidade' é óbvio, embora não seja claro onde se possa traçar a linha de demarcação entre um poder perpétuo e outro não-perpétuo. Por 'caráter absoluto' se entende que o poder soberano deve ser 'legíbus solutus'. Quer dizer: não deve precisar obedecer às leis, isto é, às leis positivas, promulgadas pelos seus predecessores e por ele próprio.

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O Estado Moderno absorve a concepção de soberania que passa a ser tratada pelos mais diversos filósofos e teóricos do Estado e do Direito. Thomas Hobbes, outro grande filósofo político da Idade Moderna, em consonância com a teoria desenvolvida por Bodin, defende, de maneira ainda menos flexível, o caráter absoluto e indivisível da soberania (BOBBIO, 1997). No entanto, em Hobbes, a soberania torna-se impessoal, de modo que se transmuda em uma soberania estatal. Já teóricos como John Locke e Jean-Jacques Rousseau transferem a titula-ridade da soberania para o povo.

Esses teóricos que defendem a doutrina da soberania popular ancoram-se no princípio democrático, de maneira que, conforme sintetizado no pensamento de Rousseau (2003, p. 52), "se o Estado é composto por de dez mil cidadãos, cada um terá a décima...

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