O público e o privado em hannah arendt e a crise da cultura jurídica individualista em face dos desafios do desenvolvimento sustentável

AutorAna Luiza Piva;Fabiane Lopes Bueno Netto Bessa
CargoAdvogada, Mestranda em Direito Econômico e Social/Mestre e doutora em Direito (UFPR)
Páginas1-22

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Introdução

A adequada compreensão12 das novas situações jurídicas que se manifestam na sociedade contemporânea, a exemplo das questões envolvendo a proteção ambiental, pressupõe a avaliação, tanto da historicidade quanto da situação atual daPage 2 sociedade, e em especial, o tipo de organização social vigente, o contexto sociocultural, as formas de poder operantes na sociedade, os valores e os interesses dos indivíduos envolvidos.

Considerando que a sociedade ocidental ainda vive as conseqüências da modernidade, o presente artigo apresenta de forma resumida o entendimento de Hannah Arendt acerca do enfraquecimento da esfera pública e a promoção do social na Era Moderna e enfatiza as transformações sociais, políticas e econômicas decorrentes da ideologia do individualismo para, em um segundo momento, apontar os reflexos dessas transformações na tutela do meio ambiente.

Na Modernidade, todos os homens se tornam iguais e livres perante o Estado e cada indivíduo adquire status de ser autônomo, enquanto depositário da razão. Ademais, na passagem do feudalismo para o capitalismo, o homem moderno à medida que se distancia dos interesses comuns à sociedade e do tradicional sistema de crenças e valores, apenas atribuí importância à sua satisfação pessoal, ou seja, às suas necessidades individuais.

É justamente neste contexto que a análise da obra A Condição Humana torna-se fundamental para o objetivo do trabalho, uma vez que evidencia de forma aprofundada as mudanças políticas e sociais provocadas com o advento da Modernidade.

A autora reporta-se às experiências históricas das cidades antigas da Grécia e de Roma a fim de abordar a classificação das atividades humanas e estabelecer a distinção entre a esfera pública e a esfera privada na Antiguidade. Por intermédio dessa análise, consegue apontar, na Era Moderna, as manifestas mudanças relacionadas à promoção da esfera social e ao enfraquecimento da esfera pública.

O declínio da esfera pública e a descrença do mundo comum na modernidade estão estritamente vinculados ao fortalecimento da sociedade operária e consumista, capaz de reduzir os indivíduos a meras peças da máquina administrativa, e à emergência da sociedade patrimonialista e individualista, que ainda prima pela defesa dos direitos individuais em detrimento dos direitos coletivos.

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No que concerne à discussão acerca do meio ambiente, o estudo oferece referências que permitem discutir o individualismo como princípio condutor da ordem social, e seus limites diante dos diversos conflitos relacionados aos direitos coletivos, e que, portanto, transcendem aos interesses exclusivamente individuais.

1. “A condição humana” – Um breve relato

Inicia-se a síntese da obra que serve como referência a este estudo com a exposição de Arendt sobre a atividade humana uma vez que, para ela, condição humana não é sinônimo de natureza humana, mas a soma total das atividades e capacidades humanas.

Além das características biológicas que a vida lhes oferece para alcançar a condição humana, Arendt destaca que os homens necessitam de outros elementos criados pelas próprias atividades humanas, pois possuem a capacidade de transformar o estado bruto da natureza para criar suas próprias condições de sobrevivência.

Assim, inspirada na vida activa de Aristóteles, a autora classifica as atividades humanas em três categorias: labor, trabalho e a ação (labor, work, e action).

O labor corresponde ao processo biológico do corpo humano e conseqüentemente assegura a sobrevivência da espécie. O homem que realizava o labor é chamado de animal laborans.

A idéia de labor surgiu da existência primitiva do homem, que nos primórdios, vivia isolado dos outros seres humanos regendo-se apenas pelos processos fisiológicos da vida animal. A condição humana do labor é a própria vida e se encontra na esfera eminentemente privada.

O trabalho (fabricação) consiste na atividade do homem de produzir objetos duráveis, sendo equivalente ao artificialismo da vida humana. Tal atividade tem a finalidade de garantir certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal -Page 4 caráter efêmero do tempo humano na terra – e é definida por Adeodato3 como produção de objetos. O homem que produzia bens com duração maior no tempo, não apenas para o consumo, era denominado homo faber.

Por fim, a última atividade que compõe a vita activa: a ação. Diferentemente das demais atividades humanas, esta não está relacionada à sobrevivência biológica ou à produção técnica. É a única que depende exclusivamente da contínua presença de outros homens, e existe sem a mediação das coisas ou da matéria.

A ação é essencial para vida humana em sociedade, uma vez que significa a interação dos indivíduos uns com os outros. Cada ser humano possui suas peculiaridades e idiossincrasias e o contínuo diálogo com os outros, no espaço denominado público; torna-se atividade fundamental para a garantida da existência do homem sobre a terra, pois assegura a existência da pluralidade humana. Além do mais, tal atividade cria as condições para a lembrança, ou seja, para a história.

Arendt enquadra o trabalho (labor) e a fabricação (work) no domínio da esfera privada, enquanto que a ação se desenvolve no plano da esfera pública (política).

1.1. Esfera privada e a esfera pública na Grécia Antiga

Na obra A Condição Humana, ao analisar as esferas pública e privada, Arendt, reporta-se à constituição das cidades-estados na Grécia Antiga e às características preponderantes de cada esfera.

Na Grécia antiga, as atividades necessárias para atender as exigências da condição animal - como a alimentação, o repouso, o alojamento, a procriação, a segurança em face dos perigos externos - seriam exercidas na esfera privada. Em outras palavras, a esfera privada seria o reino das necessidades, que obrigaria o exercício de determinados tipos de atividades para sobrevivência, de modo que tais atividades não diziam respeito aos demais indivíduos que habitavam a polis.

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O termo privado tinha o sentido de ser privado, ou seja, o homem estaria privado de participar da esfera pública, pois em primeiro plano estaria restrito às necessidades da natureza (meio de sobrevivência).

Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privada da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros4.

Na esfera privada, o homem encontrava-se privado da mais importante das capacidades, a ação política, e não era considerado livre, pois estava sob a coação da necessidade.

Assim, o privado seria o governo da casa (decorria da necessidade e da sobrevivência da espécie) por intermédio da dominação, da desigualdade e da violência, e duas atividades seriam exercidas nesta esfera: o trabalho e a produção, que respeitam a necessidade da reprodução da vida e a lógica instrumental da produção.

Ao tratar da esfera pública, Arendt designa ao termo público dois fenômenos relacionados.

O primeiro fenômeno seria a existência de um lugar onde tudo possa ser visto ou ouvido por todos, com a maior divulgação possível. Para que os seres humanos possam perceber a realidade de si mesmos e a realidade do mundo, faz-se necessária a presença de outros que vêem e ouvem a mesma coisa.

Todavia, apesar de não serem menos importantes, há assuntos, especialmente aqueles relacionados aos sentimentos - como o amor e a dor física -, que não são relevantes ao espaço público, e devem permanecer apenas na esfera privada.

O segundo fenômeno refere-se ao mundo comum a todos, que tenha sido criado por cada um dos homens que o habitam na perspectiva de sua permanência, objetivando ultrapassar a existência individual dos homens: feitos humanos - materiais e imateriais - como as cidades e as leis.

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O mundo comum tem o papel de manter unidas as pessoas em torno dos mesmos objetivos e de fazer com que elas se relacionem por intermédio do diálogo a fim de evitar qualquer forma de colisão. “A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer”5.

Além desses dois fenômenos, Arendt, a partir dos conceitos de cidades- estados da Antiguidade (Atenas e Roma), identifica o espaço público como o local apropriado à política. A distinção elaborada por ela seria que todo espaço político é espaço público, mas a recíproca não seria verdadeira.

A esfera pública é a esfera do comum (koinon), local onde se desenvolve a vida política da polis. “O surgimento da cidade-estado significa que o homem recebera, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos”6.

A ação é a atividade política por excelência, e, diferentemente das atividades exercidas na vida privada, jamais era praticada por meio da força. Substituía-se a violência da esfera privada pelo uso da palavra e da persuasão por meio da retórica, que garante o diálogo e a pluralidade de opiniões.

Para Aristóteles, a esfera pública era o domínio da vida política: os cidadãos exerciam a sua vida política participando nos assuntos da polis, por intermédio da acção (praxis) e do discurso (lexis), privilégio apenas daqueles que conseguissem satisfazer todas as suas necessidades da esfera privada e resolver todos os assuntos da casa e da família.

Em oposição às relações de superioridade e de propriedade que havia na esfera privada (esfera da casa - oikos), na esfera pública todos eram iguais (não há desigualdade de...

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