A legitimidade da defensoria pública para a propositura de ações civis públicas: primeiras impressões e questões controvertidas.

AutorHumberto Dalla Bernardina de Pinho
CargoP&oacute;s-Doutor em Direito (<i>University of Connecticut School of Law</i>). Mestre, Doutor em Direito e Professor Adjunto de Direito Processual (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Professor da Universidade Est&aacute;cio de S&aacute;. Promotor de Justi&ccedil;a Titular no Estado do Rio de Janeiro.
Páginas29-48

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A Lei Federal nº 11.418, de 15 de janeiro de 2007 é, a um só tempo, um marco histórico e a correção de uma injusta discriminação com uma das mais importantes e respeitadas instituições brasileiras.

O artigo 2º dessa Lei, ao dar nova redação ao artigo 5º da Lei nº 7.347/85, denominada Lei da Ação Civil Pública, inscreve a Defensoria Pública entre os legitimados para a propositura de tais demandas.

Nas linhas abaixo, faremos uma análise da evolução legislativa em matéria de ações coletivas. Após, teceremos algumas considerações sobre as modalidades de direitos transindividuais para, em seguida, examinar as perspectivas no Projeto de Código de Direitos Coletivos2 apresentado recentemente pelo IBDP.

Com efeito, o texto base sobre a ação civil pública é a já referida Lei nº 7.347/85, o que denota que o ordenamento brasileiro é ainda neófito no tema3.

Portanto, apenas três anos antes4 da edição de nossa atual Carta Política, nosso legislador começa a se preocupar com a proteção dos interesses sociais, para utilizar a expressão cunhada pelo texto constitucional no artigo 127.

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A partir daí, podemos dizer que se inicia o movimento para mover o eixo estrutural do processo de um viés puramente individual para a seara coletiva, o que já vinha acontecendo com o direito civil5 e já era advertido pela doutrina processual6 italiana.

Com a Lei nº 7.347/85, foram ampliadas as hipóteses de cabimento de demandas visando à tutela dos direitos difusos e coletivos, podendo tal ação ser utilizada não somente para a proteção do patrimônio público, que já era tutelável via ação popular, mas, da mesma forma, para a proteção do meio ambiente, dos consumidores, bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, bem como qualquer interesse difuso ou coletivo7.

Depois, mister fazer referência à Constituição Federal de 1988, que teve papel fundamental na tutela dos direitos coletivos lato sensu, uma vez que ampliou o objeto da ação popular, permitindo a sua utilização também para a preservação do meio ambiente e da moralidade administrativa; previu a possibilidade de mandado de segurança coletivo; e, por fim, dispôs expressamente sobre a legitimidade para tanto8.

A Lei da Ação Civil Pública foi seguida pela Lei 7853/89, que disciplina especificamente a tutela dos direitos e interesses coletivos e difusos de pessoas portadoras de deficiência, e pela Lei 7913/89, que prevê a ação civil pública de responsabilidade por danos a investidores do mercado de valores mobiliários.

Posteriormente, tivemos a edição do E.C.A. (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), que contemplou a viabilidade da ação civil pública por ofensa a direitos da criança e do adolescente.

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Logo após, foi editado o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11.09.90), que alterou diversos dispositivos da Lei da Ação Civil Pública e também regulamentou no ordenamento pátrio a ação coletiva nos seus artigos 91 a 100.

Importante, ainda, apontarmos a edição da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), que visa ao combate dos atos ilícitos praticados por funcionários públicos no exercício de suas funções, criando mecanismos para a repressão a esses atos e a devolução aos cofres públicos das quantias desviadas de suas finalidades originais; da Lei nº 8.884/94 (Lei Antitruste), que dispõe sobre a prevenção e a repressão de infrações econômicas; e da Lei 8.974/95, que estabelece normas de proteção à vida e à saúde do homem, dos animais, das plantas, bem como do meio ambiente.

A seguir, tivemos a Lei nº 10.257/01, que em seu artigo 54 (que remete à Lei nº 7.347/85) contemplou a defesa coletiva da ordem urbana, e o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003) que criou uma série de normas protetivas às pessoas maiores de sessenta anos, bem como regulamentou o uso da ação civil pública para a defesa dos interesses desses indivíduos.

Por fim, a Lei Maria da Penha – Lei nº 10340/06 – que visa a coibir a violência doméstica, também contemplou a tutela coletiva nos artigos 26, inciso II e 37. Vistos todos esses Diplomas, surge a inevitável indagação: qual a extensão da legitimidade da Defensoria Pública nesse contexto? Estamos em que, diante da previsão genérica no artigo inciso II do art. 5º da Lei nº 7.347/85, a Defensoria Pública estará legitimada para todas as matérias contempladas nas Leis acima referidas.

A única exceção que poderá ser oposta diz respeito à matéria de improbidade administrativa, uma vez que a Lei nº 8.429/92 traz regra específica e restritiva a respeito do tema no artigo 16, que dispõe serem legitimados apenas o Ministério Público e a pessoa jurídica de direito público interno lesada.

Quer me parecer que aqui, por se tratar de moralidade administrativa, com claros reflexos nas instâncias penal e, por vezes, eleitoral, a legitimidade deve ser mesmo mais restrita, constituindo-se em norma específica que não admite revogação por Lei posterior.

Importante observar que o Estatuto do Idoso, traz em seu artigo 81 um rol de legitimados para a ação coletiva, que chega a incluir a Ordem dos Advogados do Brasil (inciso III), embora nada disponha sobre a Defensoria Pública.

Também a "Lei Maria da Penha" traz redação restritiva no artigo 37, dispondo que para ações coletivas em matéria de violência doméstica estarão legitimados o 31Page 32Ministério Público e as Associações Civis, observado quanto a essas últimas, o requisito da pertinência temática.

Mesmo nesses dois casos, temos sustentado que a nova Lei nº 11.448/07, por ser norma posterior e por estar inserida exatamente no Diploma Base da Ação civil pública, que, aliás, é invocado por quase todas as demais Leis, se aplica também a esses casos.

Por outro lado, sendo ente legitimado para a propositura da ação, certamente poderá também habilitar-se como litisconsorte (art. 94 do C.D.C.). Pode-se ainda pensar numa interpretação extensiva do art. 5º, § 5º da Lei nº 7.347/85, de modo a se permitir um litisconsórcio entre Defensorias Públicas de Estados diversos ou ainda entre o ente estadual e a Defensoria Pública da União.

Contudo, é mais ponderado que tal dispositivo venha a ser inserido na Lei Orgânica da Defensoria Pública, tanto em nível federal (Lei Complementar nº 80/94) como nos planos estaduais (no caso do Rio de Janeiro, Lei Complementar nº 06/77).

Em razão das restrições contidas no art. 129, inciso III da Constituição da República, c/c art. 8º da Lei nº 7.347/85, a D.P. não pode instaurar inquérito civil, eis que se trata de providência privativa do Ministério Público, na medida em que este instrumento demanda uma série de providências investigatórias, como a requisição de documentos, depoimentos de testemunhas e realização de perícias, incompatíveis com a natureza constitucional da Defensoria.

Por outro lado, nos termos do artigo 5º, § 6º da Lei da Ação Civil Pública, poderá normalmente firmar compromissos de ajustamento de conduta, eis que se insere na definição legal de "órgão público".

Outras providências, como a convocação de audiências públicas e expedição de recomendações devem ser, por enquanto, evitadas, eis que sua efetivação, a nosso ver, demanda previsão legal específica nas respectivas leis orgânicas, como referido acima.

Como ocorre com os demais legitimados, à D.P. também será imposta a restrição referida no parágrafo único do artigo da Lei da Ação Civil Pública, introduzido pela Medida Provisória nº 2180-35, de 24 de agosto de 2001, no sentido de não ser cabível a tutela coletiva "para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados".

Ainda quanto à legitimidade, é preciso investigar sua dimensão político- social, a fim de ofertar sustentáculo dogmático à nova Lei.

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Nesse passo, mister referir dois autores de grande relevância nessa matéria e que ajudaram a construir a "ponte" entre os mundos político e jurídico.

Barbosa Moreira9 talvez tenha sido o primeiro processualista a ofertar uma visão sistemática da legitimidade, aclarando alguns pontos sobre o instituto.

Para o Mestre, legitimação é "a coincidência entre a situação jurídica de uma pessoa tal como resulta da postulação formulada perante o órgão judicial, e uma situação legitimante prevista em lei para posição que essa pessoa se atribui, ou que ela mesma pretende assumir".

Prosseguindo nessa linha de raciocínio, Donaldo Armelin10 faz distinção entre a legitimidade política-social e a legitimidade jurídica, asseverando que o ponto de contato entre elas reside na justificação do exercício do poder.

Destarte, o conceito de legitimidade é formado a partir de dois elementos, a saber: (i) objetivo, que representa a qualidade atribuída pela ordem jurídica ao sujeito legitimado para o exercício de determinados atos; e (ii) subjetivo, que indica a existência de uma situação de fato legitimante e que autorize a atuação do referido sujeito.

Tais considerações são interessantes para a tutela individual, mas não suficientes para fundamentar a legitimação de um ente para a tutela coletiva.

Com efeito, há grande controvérsia doutrinária, de cunho processual, acerca da legitimidade para a propositura da ação coletiva; discute-se ser ela ordinária ou extraordinária.

A bem da verdade, tal divergência já existia ao tempo da Lei nº 7.347/85. Neste trabalho não abordaremos a questão, mas remetemos o leitor às obras especializadas.

Embora prevalecesse o entendimento de que a legitimidade seria extraordinária11, a idéia de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro12 mostrava-se bastante sedutora. Advogava ele a tese da legitimidade ordinária, na medida em que na ação coletiva o interessePage 34tutelado é da coletividade, e como tal, todos têm certa ligação com ele, não havendo razão plausível para se falar em tutela em nome próprio de interesse alheio.

É certo que tal questão se torna um pouco obscura nas...

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