Um direito inocente?

Autorde Moura Costa Matos, Andityas Soares

Deleuze: a prática do direito, lançado em 2019 pela editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa em uma cuidadosa edição, é um livro fascinante. De autoria do criativo jusfilósofo belga Laurent de Sutter, Professor de Teoria do Direito na Vrije Universiteit Brussel, a obra busca alinhavar, de maneira quase sempre muito deleuziana, aquilo que pode ser chamado de "filosofia do direito" de Deleuze, objeto que, antes dos esforços de Sutter, certamente pertencia ao terreno das coisas apenas imaginadas contidas nos livros não escritos, tendo em vista que Deleuze nunca dedicou uma obra ou um curso específico para pensar o direito. Nada obstante, contra todas as evidências fragmentárias que pontuam os escritos de Deleuze, Sutter afirma que existe em seu pensamento um sistema completo de filosofia do direito (p. 20), que pode ser reconstituído da mesma maneira que os arqueólogos e os detetives reconstituem seus respectivos objetos de estudo (p. 12). Só isso já serviria para afirmar a extrema necessidade e oportunidade do livro, pois até então ninguém tinha se dado conta disso e muito menos tentado demonstrar rigorosamente essa ousada tese. Mas os méritos do livro vão muito além, pois está escrito com uma linguagem elegante - por vezes bastante densa - cuja inevitável dificuldade que seu tema - a filosofia jurídica de Deleuze - impõe é mitigada pela forma da exposição, extremamente sistemática e dividida em pequenas seções quase nunca maiores que uma página, tornando possível respirar durante o alucinante processo de leitura.

Ainda que não se trate de um livro didático, nele Sutter se preocupa com seu leitor, pois reconhece a complexidade das ideias que desenvolve, razão pela qual apresenta a todo momento esquemas, diagramas - algo que Deleuze também parecia gostar de fazer -, retomadas e pequenos resumos, necessários quando o texto atinge uma tal intensidade que o leitor chega a sentir vertigem. Destaca-se também o procedimento tateante, experimental e criativo de Sutter, que jamais é apodíctico ou categórico em suas tomadas de posição. Uma das palavras que mais aparecem no livro é "talvez", sigilo dos verdadeiros pensadores. O autor é honesto desde as primeiras linhas e reenvia os leitores não acostumados com o léxico de Deleuze a outras obras mais elementares, dado que a sua não se configura como manual, mas como ensaio criativo que, atacando um autor pelas costas, o "enraba" para fazer-lhe filhos monstruosos, procedimento que, em Uma carta a um crítico severo, Deleuze confessou usar com filósofos como Kant, Hume, Leibniz etc. (p. 26).

Um elemento a mais, além de todos esses, a comprovar a excelência do livro, é a cuidadosíssima tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa, professor de Teoria Política no curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa, ele próprio um apaixonado e competente leitor de Deleuze. O francês de Sutter não é fácil, mas foi magistralmente recriado em nossa língua, dando lugar a uma prosa filosófica rigorosa, fluída e provocativa. Além disso, o pós-escrito de Corrêa ajuda muito a compreender o contexto do livro que, tendo sido publicada em países como França, Itália, Inglaterra e Argentina, encontrou no Brasil a sua edição mais bem acabada, pois além das várias correções efetivadas em relação às suas outras versões, conta com o supracitado pós-escrito de Corrêa e dois textos suplementares de Sutter em que ele reflete sobre alguns aspectos específicos da sua proposta e sua recepção crítica.

O livro se organiza em duas partes: crítica e clínica (às quais se juntam as necessárias introdução e conclusão), reverberando o título de uma das obras mais influentes de Deleuze. Fundando-se em Nietzsche, Deleuze explica que a crítica corresponde à "destruição com alegria", enquanto a clínica equivale à "construção com alegria" (p. 79), ressoando nessa distinção a antiga tradição latina que articula a pars destruens com a pars construens, a qual parece ter sido esquecida por muitos dos filósofos ditos pós-estruturalistas, com a óbvia exceção de Deleuze. A essas duas partes - crítica e clínica - correspondem duas teses fortes que, segundo Sutter, resumem a filosofia do direito de Deleuze. A primeira delas, crítica, é que "sempre houve apenas uma maneira de se pensar a lei, pela comicidade do pensamento, feita de ironia e humor" (DELEUZE, 2009, p. 86). A segunda, clínica, enuncia que "a jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, por prolongamento de singularidades" (DELEUZE, 2008, p. 191).

No que diz respeito à tese crítica, o objetivo de Deleuze é afastar o direito da figura da lei, que o parasita com especial gravidade a partir da modernidade. É importante compreender que a noção de "lei" em Deleuze não se limita ao produto do poder legislativo, dizendo respeito a um conceito muito mais amplo que comparece também e principalmente na filosofia, na psicanálise, na economia etc. A lei é uma espécie de universal abstrato que pretende determinar e limitar os desenvolvimentos do direito que, como veremos na parte clínica, se comporta de maneira caótica, casuística e multiplicativa de singularidades, razão pela qual a filosofia do direito para Deleuze reside no trabalho paciente e descomprometido com outras esferas do social feito pela jurisprudência, e não na cabeça dos filósofos que querem pensá-lo e restringi-lo por meio de figuras ideais como a justiça, o contrato, o consenso etc. Nesse ponto, me parece saborosíssima a crítica que Deleuze lança a autores que, como Habermas, apostam nessas construções, indicando que somente podem fazê-lo ou por serem muito estúpidos ou muito canalhas. É uma pena que esse debate só seja rapidamente pincelado por Sutter, e não desenvolvido com mais fôlego (compreendo, contudo, que esse não constitui o objeto de seu ensaio). Mas vale como prêmio de consolação o elenco de injúrias que Deleuze lança aos filósofos "argumentativos", "comunicativos" e "humanistas". Sutter as reúne na nota n. 87:

"E é preciso muita inocência, ou safadeza, para uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade de amigos ou mesmo a de sábios, formando uma opinião universal como 'consenso' capaz de moralizar as nações, o...

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