Uma análise do caso Collor

AutorAdriano Corrêa de Sousa
Páginas95-109

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I Introdução

A Constituição1 da República Federativa do Brasil teve de lidar, logo em seus primeiros anos de vida, com um teste grandioso: manter a integridade das instituições democráticas sob forte tensão política.

O Brasil sempre foi um país de desenvolvimento instável. Sua evolução econômica, desde a era colonial, ocorreu de forma “cíclica, tanto no tempo como no espaço, em que se assiste sucessivamente a fases de prosperidade estritamente localizadas, seguidas, depois de maior ou menor lapso de tempo, mas sempre curto, do aniquilamento total2. Essa instabilidade econômica deixou suas marcas na política brasileira, esta não fruindo de maior sorte e menores acidentes ao longo de sua história. Por conta disso, confere-se valor à Constituição de 1988, que conseguiu impugnar o mandato do chefe ma ior do Estado sem violar a ordem jurídica corrente, não obstante toda crítica tecida sobre usa prolixidade.

Trata-se de um dos mais emblemáticos casos após a reconstrução democrática do país, corroída pelo regime militar de cunho ditatorial.

Após vinte e nove anos sem eleições diretas para a Presidência da República, Fernando Affonso Collor de Mello é eleito democraticamente pelo povo em 1989,Page 96 tomando posse no ano seguinte. Logo em seu primeiro ano de mandato, cria um plano econômico polêmico que bloqueia o saldo das contas correntes, cardenetas de poupança e demais investimentos superiores da R$ 50.000.000,003. Embora o plano tenha reduzido a inflação num primeiro momento, trouxe, na realidade, a maior recessão da história do país.

Contudo, a crise política se instaura, de fato, em março de 1992 quando Pedro Collor, irmão do então presidente da República, concede entrevista que acusava o tesoureiro da campanha eleitoral, Paulo César Farias, de articular um esquema de corrupção que envolveria tráfico de influência, loteamento de cargos públicos e cobrança de propina dentro do governo4.

Logo após, em junho do mesmo ano, é instalada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito “destinada a, no prazo de até 45 dias, apurar fatos contidos nas denúncias do Sr. Pedro Collor de Mello, referentes às atividades do Sr. Paulo César Cavalcante Farias, capazes de configurar ilicitude penal5.

Após os trabalhos finais da CPMI, Fernando Collor de Mello é denunciado por crimes de responsabilidade por Alexandre Barbosa Lima Sobrinho, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, e Marcello Lavenère Machado, Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil6.

Assim, no esteio do art. 86 da Constituição da República e da Lei nº. 1.079, de 10 de abril de 1950, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo e julgamento, a Câmara dos Deputados admitiu a acusação contra o Presidente da República, autorizando que o Senado Federal, em sua atribuição especial como tribunal de juízo político7, julgue o processo de impeachment.

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Logo em seguida, o Presidente Fernando Collor é afastado de suas funções. Durante o transcorrer do processo de impugnação de seu mandato, impetra diversos mandados de segurança.

Nesse esteio de fortes tensões políticas, o Supremo Tribunal Federal consolidou uma importante jurisprudência sobre o processo de impeachment no Brasil. Esses frutos serão estudados com maiores detalhes a diante.

II Premissas metodológicas

Para a execução do presente trabalho, optou-se por colher as três principais fontes jurisprudenciais do processo de impeachment no Brasil: os Mandados de Segurança nº 21.564, 21.623 e 21.689.

Ao analisar cada um desses writs, buscou-se expor de forma concisa a temática envolvida e a posição dos Ministros votantes. Em breve síntese, analisou-se, de forma panorâmica, as raízes históricas do impeachment, sua natureza jurídica, além da definição e processo dos crimes de responsabilidade.

Além disso, foi discutida a possibilidade de controle judicial dos atos no referido processo, afastando-se o entendimento pela impossibilidade desse controle sem afetar o mérito político do julgamento. Por fim, submeteu-se à discussão a aplicabilidade da pena de inabilitação do cargo por oito anos, buscando-se referências históricas. Em síntese questionou-se se o processo poderia continuar, caso houvesse a renúncia do acusado.

III O MS nº 21.564

No Mandado de Segurança nº 21.564, que ora se debruça, o impetrante, então Presidente da República, busca impugnar ato do Presidente da Câmara dos Deputados que estabeleceu uma série de questões de ordem após o recebimento da denúncia contra o Presidente da República.

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Em síntese, as questões de ordem estabeleceram: a) a competência da Câmara dos Deputados para admitir ou não acusação contra o Presidente da República, dando conhecimento ao Senado para fins de processo e julgamento; b) a aplicabilidade da lei nº 1.079/50, em exceção dos trechos que reproduzirem atos típicos de processo, uma vez que é competência privativa do Senado o processo e julgamento; c) o prazo de sete seções para elaboração do parecer pela comissão especial, votação única em plenário pelo processo ostensivo nominal; e d) a inaplicabilidade do art. 188 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, tendo em vista seu conflito com outros dispositivos do mesmo regimento e com a lei 1.079/50.

Em conseqüência disso, a Câmara dos Deputados fixou o prazo de cinco sessões para que o impetrante apresentasse defesa. A Câmara determinou, ainda, o procedimento do escrutínio ostensivo, ao contrário do que determina o art. 118, inciso II, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados8. Essas decisões da Câmara foram objeto de impugnação nesse Mandado de Segurança.

Primeiramente, destaca-se a competência da Câmara dos Deputados no que tange ao processo do crime de responsabilidade. A Constituição de 1988 dividiu o processo em duas partes: a primeira ocorrerá na Câmara dos Deputados, cabendo a esta Casa tecer o juízo de admissibilidade; posteriormente, o processo e julgamento do feito se desdobrará no Senado Federal, conforme a redação dada ao caput do art. 86, da Constituição da República9.

Dessa forma, diante dessa divisão competencial, surgem algumas questões sobre onde a denúncia deva ser apresentada originariamente. O Ministro Octavio Gallotti, relator do presente writ, posiciona essa discussão na mudança feita pela Constituição de 1988. Anteriormente, competia à Câmara dos Deputados a prolação de juízo de procedência da acusação, hoje sua função alterou para um voto de autorização, conforme a redação do art. 51, inciso I, ou de admissão, conforme o art. 86, todos da Constituição vigente. Embora utilizem palavras diferentes, os dois dispositivos querem dizer a mesma coisa.

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Assim, o Ilmº. Ministro entende que a Casa responsável pelo desenrolar do juízo prévio de admissibilidade da denúncia, é o órgão naturalmente indicado para acolher a mesma.

O Ministro Carlos Veloso, em seu voto, expressa que a Câmara não deve se limitar simplesmente à autorização ou não da denúncia. Para que haja o parecer exarando essa decisão, a Casa deve examinar a admissibilidade da acusação, interpretando o art. 51, inciso I, com o art. 86, caput, da Constituição da República.

Em segundo, cabe destacar a validade da Lei nº 1.079/50 para regular os crimes de responsabilidade e seu respectivo processo e julgamento. Como foi citado, a Câmara dos Deputados estabeleceu a aplicabilidade da lei nº 1.079/50, exceto naquilo referente aos atos de processo, onde a Constituição previu a competência exclusiva do Senado.

O Ministro Relator levantou a possibilidade de revogação dessa lei em face da Emenda Constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961, à Constituição de 1946, que instituiu o sistema parlamentarista de governo no país, de forma artificial e transitória10.

No entanto, o Ilmº. Ministro entende que a Lei nº 1.079/50 está em pleno vigor, na sua provisão substantiva, ou seja, naquilo que não se refere a atos de processo. Isso se deve porque a Emenda Constitucional nº 4, ao estabelecer o rol dos crimes funciona is do Presidente da República, não incluiu os atos que atentassem contra a probidade da Administração.

O Ministro ressalta que esse rol seria exemplificativo, visto que cabe ao comando constitucional apenas delinear a moldura para tipificação do crime, ficando a cargo da legislação infraconstitucional a sua tipificação propriamente dita. Além disso, a Emenda Constitucional nº 6 não viria apenas para revogar a Emenda nº 4, mas para restabelecer o sistema presidencialista de governo. Em linhas gerais, esse posicionamento foi acompanhado pela maioria dos Ministros.

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O terceiro tema fundamental do presente Mandado de Segurança trata do exercício do direito de defesa nessa fase do procedimento de impeachment.

O Ministro Relator Octavio Galliotti manifestou-se invocando o entendimento do Ministro José Carlos Moreira Alves, no sentido de entender que as normas contidas na Lei nº 1.079/50, no que se referem ao exercício do direito de defesa, não foram recepcionadas pelo atual ordenamento jurídico-constitucional, tendo em vista que disciplinavam um processo, hoje suplantado por força constitucional, que culminava em pronúncia ou impronúncia. Logo, não se fala mais em juízo de pronúncia, conforme constituições passadas, mas sim em juízo de admissibilidade da denúncia.

Dessa forma, o Ministro conclui que...

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