Por uma adequação do conceito de 'animal'

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Por uma adequação do
conceito de “animal”
1 O que é um animal?
Uma análise da relação entre humanos e animais sob o pon-
to de vista ético e jurídico deve, inicialmente, buscar respostas à
pergunta: sob qual escopo a noção de “animal” deve ser analisa-
da? Esse recuo semântico é necessário, uma vez que a tradição
do pensamento jurídico-losóco ocidental, na qual o presente
trabalho está inserido, é forjada em ambiguidades e preconceitos
que circundam os termos “ser humano” e “animal”.
Cabe destacar que o debate acerca da conceituação do ani-
mal se insere na tradição mais enraizada no pensamento ociden-
tal: a de pensar-se por meio de dicotomias paralelas e, via de re-
gra, incomunicáveis entre si – a não ser para a exemplicação de
contraexemplos.
Nesse sentido, percebe-se que a relação entre animalidade e
humanidade é similar àquela travada entre os domínios da nature-
za e os da cultura, ou, ainda, o natural e o articial: uma relação po-
larizada, que separa domínios que operam em lógicas antagônicas.
Nessa ótica, assevera o antropólogo Tim Ingold que “[u]m
traço marcante da tradição ocidental é a tendência a pensar em
8
Brunello Stancioli e Carolina Maria Nasser Cury
dicotomias paralelas”.19
Ainda,
[c]ada geração reconstrói sua concepção própria de ani-
malidade como uma deciência de tudo que apenas nós,
os humanos, supostamente temos, inclusive a linguagem,
a razão, o intelecto e a consciência moral. E a cada gera-
ção somos lembrados, como se fosse uma grande desco-
berta, de que os seres humanos também são animais e
que a comparação com os outros animais nos proporcio-
na uma compreensão melhor de nós mesmos.20
Assim, a esteira tradicional do pensamento ocidental, no
que tange aos animais, tende a buscar elencar características que
fazem com que os seres humanos sejam distintos, qualitativa e
substancialmente, dos demais animais. Com isso, a interpretação
da noção de animal foi, via de regra, até o século XIX, fundamen-
tada a partir do contraste com o comportamento humano.
Muito embora a pergunta acerca da natureza do conceito de
“animal” possua várias respostas que variam em função de recor-
tes, frequentemente estas coincidem com uma busca do próprio
conceito de humanidade. Isso porque, no Ocidente, dizer sobre o
conceito de animal é dizer, indiretamente, sobre o próprio con-
ceito de humano.
Cada atributo designado como característica singular e
guardadora do sentido da humanidade deve estar ausente, ou r u-
dimentarmente presente, nas espécies animais. Nesse sentido, “o
conceito genérico de ‘animal’ é constituído negativamente através
19 INGOLD, Tim. “Humanity and animality”. In: INGOLD, Tim (ed.). Com-
panion Encyclopedia of Anthropology. Londres: Routledge, 1994. p. 20.
20 INGOLD. Humanity and animality. Op. cit. p. 14.
9
Para além das espécies
da soma dessas deciências”.21
As atitudes de sociedades humanas para com animais não
guardam uma lógica linear e padronizada ao longo da história.
Percebe-se que
as ideias das pessoas em relação aos animais, bem como
as suas atitudes em relação a eles, são proporcionalmen-
te tão variáveis quantos os seus jeitos de relacionarem-s e
entre si, em ambos os casos reetindo a impressionante
diversidade da tradição cultural que é amplamente imagi-
nada como sendo o marcador da humanidade.22
Pode-se inferir, portanto, que a noção de “animal” tem sido
elemento chave para o desenvolvimento da noção de “humano”.
O debate sobre a conceituação de animais ao longo da história
ocidental pode ser dividido em três grandes blocos histórico-ana-
líticos, que serão abordados a seguir no presente trabalho.
O primeiro deles concerne às raízes e fundamentos da di-
cotomia estrita entre humanos e animais, fortemente calcada no
pensamento aristotélico e judaico-cristão, mas cuja fonte princi-
pal a ser discutida será o pensamento cartesiano. Nesse primeiro
momento, a tônica da conceituação do animal será a do antro-
pocentrismo exacerbado, fundamentado na ideia de que animais
são seres autômatos desprovidos de quaisquer traços, ainda que
elementares, de racionalidade.23
Em seguida, analisar-se-á a tradição moderna, baseada
no incipiente desenvolvimento das ciências biológicas. Esta, de
21 INGOLD. Introduction. Op. cit. p. 3.
22 INGOLD. What is an..., op. cit. p. 1.
23 THOMAS, Keith. Man and the natural world: changing attitudes in En-
gland 1500-1800. Londres: Allen Lane, 1983. p. 19.

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