Por uma ética do sentido em Kelsen

AutorKaren Simões Rosa e Silva
CargoMestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional
Páginas181-201

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1. Introdução

O sistema jurídico kelseniano, através de uma releitura heterodoxa, pode ser resgatado como um modelo eficiente para pensarmos o Direito na contemporaneidade. Tal assertiva baseia-se na convicção de que as críticas feitas ao autor muitas vezes são fruto da incompreensão de sua proposta, o que se dá por uma confusão de pressupostos, na medida em que partem de uma perspectiva lógico-identitária.

Não obstante ter tido muitos adeptos e da reconhecida importância de sua obra para a Teoria Geral do Direito, não faltaram aqueles que cobriram Kelsen de críticas em relação ao caráter formalista de sua teoria. Chamaram-no de reducionista, acusaram-no de esquecer as dimensões sociais e valorativas do Direito, e, ainda, de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa despida de seus caracteres humanos.

Dentro de uma perspectiva objetivista/representacional de linguagem, a Teoria Pura do Direito realmente é uma teoria esvaziada de conteúdo moral, o que em verdade é uma qualidade, eis que qualquer afirmação universal substantiva em relação a valores, dentro de tal perspectiva, nada mais é do que a afirmação de valores pessoais escamoteadas sob um discur-so pseudo-objetivo. Todavia, ao se adotar como pressuposto para a leitura da obra de Kelsen uma noção construtivista/não-representacional de lin-guagem, não se pode ter outra perspectiva em relação ao Direito que nãoPage 182a de prática social concreta, onde o significado das leis positivadas e seus valores só podem ser constituídos por essa prática.

Nessa perspectiva, não há como se atrelar à legitimidade do Direito a uma norma atemporal de Justiça, pois também a Moral não é algo em si, previamente determinado, e sim um constructo histórico-social, que pode ser modificado de acordo com cada realidade concreta, com cada forma de vida.

O que os críticos de Kelsen não percebem é que ele não negava a importância dos valores para o Direito, apenas achava absurdo fazer especu-lações nesse sentido, por uma questão de honestidade teórico-epistemológica1. A filosofia científico-crítica de Kelsen é o retrato de uma filosofia que rejeita o dualismo metafísico ou qualquer objeto que se coloque além da experiência. Ela tem seu paralelo em uma doutrina jurídico-política emancipada de toda a teoria do Direito Natural. Tal perspectiva não ignora a possibilidade de que exista fundamento na tendência metafísica, apenas não especula sobre isso, por considerar essa uma atitude vã, na medida em que a razão se mostra limitada para tal investigação. Para Kelsen não há como se negar o enigma que é o universo, nem como se achar que isso será solucionável cientificamente um dia. O que diferencia uma atitude cientifi-ca de uma atitude metafísica é justamente a consciência que a primeira tem de sua capacidade e limitações.

O autor teve como grande objetivo propor um método para a Teoria Jurídica. Isso o inseriu no contexto específico dos debates metodológicos oriundos do final do séc. XIX e que repercutiram no inicio do séc. XX. Na Modernidade, apenas o apreensível pela razão era conhecimento; e Kelsen, como homem moderno que era, tinha na consciência e na razão os seus limites do que podia ser conhecido2.

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Contudo, a teoria de Kelsen, apesar de moderna, já trazia em si a semente da mudança, eis que fundada em uma crítica parcial à modernidade. O autor parte da seguinte hipótese que perpassa tanto sua obra política quanto jurídica: o conhecimento absoluto não é acessível à razão. A constatação de que o real apreensível pela cognição racional não é da ordem do absoluto é o que torna Kelsen um autor apto a ser lido como um pragmático3 e não como um positivista racionalista, inserido dentro da tradição cartesiana.

Kelsen rejeita qualquer especulação jusnaturalista, no sentido de se encontrar um “Direito em si”, seja ele proveniente de alguma divindade ou de uma hipotética razão pura, pois entende o Direito como um construc-to humano, não havendo necessidade nenhuma de uma ordem transcendente que o justifique ou lhe reconheça valor absoluto. Kelsen não tem qualquer pretensão de validade absoluta para o Direito, seja ela racional ou metafísica, só sendo possível para ele assegurar-se uma verdade formal dentro de parâmetros instituídos de forma hipotético-relativa. A pureza de seu conhecimento, no sentido de indiferença política, nada mais era do que uma tentativa honesta de produzir uma epistemologia jurídica e de investigar analiticamente a juridicidade, independente de crenças pessoais4. Isso fez da Teoria Pura do Direito um marco científico importante para a doutrina jurídica, pois até então esta vinha atrelada a algemas morais, que são importantes para entendermos as causas que levam à escolha do conteúdo material das normas e sua origem, mas fogem do âmbito da cognição jurídica, na sua qualidade de dever-ser5.

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Para Kelsen, existe uma perfeita correspondência entre epistemologia e teoria política. A oposição entre absolutismo e relativismo filosófico que se apresenta na epistemologia, para o autor, correspondente à oposição entre autocracia e democracia, representantes, respectivamente, do absolutismo e do relativismo no âmbito político6.

Para o autor, o conhecimento da verdade absoluta e/ou a compreen-são dos valores absolutos refletem uma concepção absolutista-metafísica à qual, em política, corresponde a uma atitude autocrática, de onde deriva a pretensão de impor, custe o que custar, a verdade e o valor absoluto a todos. A democracia, por sua vez, advém justamente da crença na inacessibilidade da verdade e dos valores absolutos ao conhecimento humano, o que torna necessário que se considere não apenas a própria opinião, mas também a dos outros. Kelsen era tributário do relativismo filosófico, por-tanto, um democrata7.

Existem duas questões que em geral são confundidas por aqueles que criticam o formalismo Kelseniano, quais sejam: se a democracia pode servir a um determinado ideal; e se esta pode constituir em si um ideal absoluto. Quem lê Teoria Pura de forma rasa e descontextualizada, costuma inferir da resposta negativa que Kelsen dá à segunda questão, necessariamente, uma resposta negativa também para a primeira, o que é um erro.

Fica claro na proposta de Kelsen que o seu grande objetivo ao perse-guir tão contundentemente a pureza na teoria do Direito era não permitir que o objeto da ciência do Direito fosse manipulado pelo poder que existe por trás dos jogos de verdades. Kelsen, com sua luta buscou evidenciar os espaços de liberdades existentes, de forma a permitir que cada um conhecesse sua verdade. Verdade essa que não é desvelada, mas construída; e não de forma individual, mas nas relações interpessoais. Não há que se buscar fundamento de legitimidade para o Direito posto em normas de verdade,Page 185pois essas não existem metafisicamente. São apenas instrumentos de poder utilizados por aqueles que querem impor suas verdades pessoais.

A cognição tem papel ativo na perspectiva kelseniana e é nela que Kelsen acredita estar a raiz comum entre convicção filosófica e crença política. É através da mentalidade do sujeito, de sua forma de experimentar a si e ao outro como objeto, que provêm tais posições ideológicas. Kelsen remete, em última instância, às peculiaridades da mente humana a resposta para o intransponível abismo criado pelo antagonismo entre esses dois sistemas políticos e filosóficos.

Para um relativista, e Kelsen se considerava um8, é clara a separação entre proposições sobre a realidade e juízos de valor, que, em última instância, não são baseados apenas em um conhecimento racional da realidade, mas especialmente nos fatores emocionais do sujeito cognoscente, que podem ser tanto conscientes quanto inconscientes. Como a fonte dos valores e dos juízos de verdade não é uma autoridade absoluta, mas o próprio sujeito, não há que se falar em valores, nem verdades absolutas, mas apenas relativos. Estamos aqui em torno de uma questão central para a epistemologia e que deve ser esmiuçada, pois a todos que fazem uma leitura negativa de Kelsen parece que sua obra se associa a uma visão representacional de mundo e linguagem, o que é um equívoco.

Assumir a hipótese do absolutismo filosófico que crê em uma realidade absoluta, independente do conhecimento humano é pressupor a função do conhecimento como simples refletir. Isso sim é adotar como perspecti-va uma visão representacional do mundo, como fazem os jusnaturalistas. Ao passo que quando se busca olhar o mundo por um viés epistêmico relativista, isso se dá pautado em uma perspectiva não representacional da linguagem, como é o caso de Kelsen.

Qual a importância desta distinção? É imensa, pois o homem enquanto sujeito do processo cognitivo é epistemologicamente criador de seu mundo, um mundo constituído em e por seu conhecimento; e diria mais, em e por sua vontade. O relativismo filosófico encara o sujeito como um sujeito de alteridade, pois sabe não haver uma realidade normatizante fora da produção humana.

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2. Kelsen no bosque das coisas sem nome

É possível traçar um paralelo entre a Teoria Pura do Direito e a segunda fase de Wittgenstein9. Este desenvolveu de modo particularmente original, ao escrever Investigações Filosóficas, uma nova dimensão para o uso dos signos, em oposição a uma concepção tradicional dos sinais10. Kelsen, com a Teoria Pura do Direito fez o mesmo, ao se opor às idéias jusnaturalistas que defendiam a existência de um Direito natural como espelho da justiça.

Essa nova dimensão de uso, trazida por Wittgenstein, em um contexto de interação, pressupõe uma re-definição dos processos de significação, que rompe com a concepção apresentada em sua obra anterior, do signo como um representante da realidade externa, por meio de sua vinculação a um elemento interno...

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