Uma experi

AutorVentura, Miriam

Introdução (1)

O litígio judicial para garantia do direito à saúde tornou-se um caminho alternativo para o cidadão reivindicar prestações estatais, com jurisprudências favoráveis à responsabilização dos governos, em contextos político-jurídicos bastante diversos (FERRAZ, 2018). O entendimento das instâncias de direitos humanos é que Estados devem fornecer tratamentos que atendam às necessidades de saúde dos indivíduos e populações, ainda que a regulamentação estatal não tenha previsão desta cobertura, em especial, àqueles que não possuem capacidade econômica (GILARDI et al., 2007).

Os direitos humanos como construção axiológica dinâmica pressupõem o embate tanto no momento de produção quanto de aplicação da norma, evidenciando a "tensão dialética entre regulação social e emancipação" (SANTOS, 1998, p. 11). Nesse sentido, viabilizar a resolução dos conflitos é questão central na realização dos direitos, sua maior e menor efetividade se dará de acordo com o contexto socioeconômico, as culturas jurídicas e políticas locais, e a existência (ou não) de estruturas administrativas que sustentam a aplicação dos direitos e o efetivo acesso à justiça (SANTOS, 2007).

Recente estudo sobre "determinações legais da saúde" no âmbito global reitera o poder do Direito e das leis para intervir nas "causas sociais e económicas subjacentes a lesões e doença". Destaca como uma de suas funções essenciais a "resolução das disputas" entre indivíduos, organizações e governos, tanto nos tribunais de justiça tradicionais como através de mecanismos alternativos, mediação ou arbitragem. Aponta que os resultados dessas práticas podem ir muito além das partes envolvidas (GOSTIN et al., 2019).

O desafio prático no acesso à saúde e à justiça é traduzir os direitos e as prestações devidas pela Administração Pública em um sistema público que garanta procedimentos e serviços (como a saúde e a advocacia pública e gratuita) capazes de compatibilizar as dimensões coletivas e individuais dos direitos, interesses e responsabilidades governamentais em disputa, com mecanismos adjudicatórios eficientes.

A problemática da judicialização exige refletir sobre seus efeitos no acesso à saúde e à justiça. O pressuposto deste estudo é que, na resolução de conflitos complexos como os de saúde, as alternativas extrajudiciais podem favorecer esse acesso no caso concreto. Contudo, é insuficiente pensar o acesso como o resultado de uma mera regulação de utilização de bens e serviços de saúde e jurídicos, com equilíbrio entre oferta e demanda, devendo-se ampliar a compreensão em uma perspectiva comunicativa e participativa democrática voltada ao entendimento, que favoreça a (re)formulação das leis e o (re)direcionamento das políticas de saúde centradas nas pessoas (BIEHL; PETRYNA, 2014).

No ano de 2012, foi criada a Câmara de Resolução de Litígios em Saúde (CRLS), no município do Rio de Janeiro, como um arranjo interinstitucional que visa reduzir a demanda judicial local através de solução extrajudicial. A estratégia é resultado das articulações de atores locais da justiça e da saúde com diferentes iniciativas desenvolvidas ao longo de cinco anos (SOUZA, 2016). Seu público-alvo são os hipossuficientes econômicos, usuários das Defensorias Públicas.

O diálogo diretamente com a população atendida nesse serviço, sobre direitos, regras, benefícios legais e de saúde implicados na demanda, mostrou-se promissor. Para tanto, desenvolveu-se pesquisa qualitativa interdisciplinar--"Judicialização, acesso à saúde e à justiça: um estudo sobre itinerários terapêuticos e litígios de saúde no município do Rio de Janeiro", com financiamento do CNPq, processo no 402079/2016-7. Este artigo é um dos resultados desta pesquisa e focalizará a discussão dos aspectos institucionais, da dinâmica e dos mecanismos da CRLS no tocante à mediação dos conflitos dos usuários das Defensorias Públicas no acesso ao direito à saúde e à justiça.

Em termos metodológicos, recorreu-se à literatura sociológica e crítica da saúde coletiva e jurídica. Iniciou-se a investigação com a atualização bibliográfica e levantamento documental sobre a CRLS. Realizou-se observação do atendimento ao público durante três meses, registrando-se as dinâmicas cotidianas entre usuários e a equipe da CRLS. Após a observação, foram entrevistados 27 usuários da CRLS, no período de 20/02/2018 a 20/03/2018, com roteiro semiestruturado abrangendo questões sobre os percursos dos usuários no sistema de saúde até sua chegada a CRLS. Os usuários foram convidados a participar da pesquisa por ordem de chegada no atendimento, não se registrando recusa. As entrevistas foram realizadas no local após apresentação dos objetivos da pesquisa e com concordância registrada no termo de consentimento livre e esclarecido. Os princípios éticos jurídicos para a pesquisa científica foram cumpridos, garantindo-se, sobretudo, o respeito à confidencialidade e privacidade dos entrevistados. Buscou-se, a partir dos relatos, identificar diferentes contextos individuais, sociais e programáticos envolvidos nas trajetórias, desde a identificação do problema de saúde e os recursos e rede de informações acionados até o acolhimento de sua demanda na CRLS. O estudo foi autorizado e teve apoio logístico da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e da CRLS. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAEE IESC-UFRJ: 71557817.8.0000.5286, Parecer 2.368.924) e financiado pelo CNPq--Chamada Universal (processo 402079/2016-7).

  1. Judicialização da saúde e o acesso ao direito à saúde e à justiça

    No Brasil, o processo de judicialização da saúde iniciou-se no final da década de 1980 e se respalda na nova configuração constitucional brasileira de 1988 (SANTOS, 2007). A saúde é definida como um direito universal e dever do Estado, sem requisitos de contribuição prévia ou prova de incapacidade, em um Sistema Único de Saúde (SUS) com cobertura nacional, acesso gratuito, igualitário e integral, mantido pelos impostos. Tal configuração possibilita que as demandas insatisfeitas dos indivíduos se transformem em demandas judiciais.

    Os efeitos desse processo no Brasil são controversos: alguns estudos o consideram favorável à promoção da igualdade no acesso e à reformulação de políticas públicas inefetivas (entre eles, VENTURA et al., 2010; BIEHL et al., 2018); outros enfatizam que a demanda judicial é produtora de iniquidades e desajustes na gestão de saúde, prejudicando a implementação de políticas universais de acesso (entre eles, WANG, 2015). O fato é que a judicialização tem apontado deficiências do sistema de saúde brasileiro para responder de forma satisfatória às necessidades da população, bem como insuficiências do sistema de justiça na resolução dos conflitos entre cidadãos e a administração pública.

    A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) se consolidou após audiência pública promovida no ano de 2009, reafirmando a dimensão subjetiva do direito à saúde e a legitimidade da intervenção do Judiciário nas políticas públicas. Ademais, atribuiu ao governo o ônus de demonstrar, em concreto, a existência de alternativa terapêutica efetiva já disponível no SUS que atenda às necessidades de saúde dos demandantes.

    A partir de 2009, presencia-se a ampliação da interlocução entre as instituições jurídicas e de saúde, juntamente com a formulação de uma política de resolução de conflitos na saúde protagonizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), buscando-se uma "exigibilidade pactuada" (FLEURY, 2012) e a adoção de medidas de racionalização da utilização da via judicial. Fazem parte dessa nova conjuntura: o Fórum Nacional do Judiciário para demandas em Saúde, com comitês nacional e estaduais (CNJ, 2010; CNJ, 2016a); os Núcleos de Assistência Técnica aos Juízes (NAT-Jus) para qualificação técnicocientífica da prestação jurisdicional junto aos Tribunais (CNJ, 2016b); a criação de um banco de dados com informações técnicas para subsidiar os magistrados de todo o país (CNJ, 2016c); as experiências locais de resolução extrajudicial de conflitos e a ampliação do acesso às defensorias estaduais e da União (SIMAS; VENTURA, 2018).

    As alternativas de resolução extrajudicial dos conflitos em saúde, conciliação e mediações ganham significados diversos nas discussões acadêmicas e práticas locais (RIBEIRO, 2013; PINHEIRO; ASENSI, 2015; SILVA; SCHULMAN, 2017; RIBEIRO, 2018; DELDUQUE; CASTRO, 2015). Observa-se predominância da perspectiva de resolução de problemas de gestão estatal, enfatizando o encerramento de processos por meio de acordos, o controle estatístico da atuação jurisdicional e o estímulo de premiações a instituições judiciais por sua eficiência. No estado do Rio de Janeiro, busca-se, ainda, dar conta de sucessivas crises de governabilidade e denúncias de altos índices de corrupção (FREIRE, 2019). Surgem diferentes rituais e práticas locais, que revelam "lógicas coercivas" na condução da nova política de acesso à justiça em prol do "coletivo" e do "bem comum", propiciando um tipo de "harmonia coerciva", que privilegia critérios de pacificação dos conflitos, mas negligencia o papel garantidor de direitos e adota padrões de um modelo de "justiça neoliberal" (GARCIA, 2018).

    Para a análise articulada do acesso à justiça e à saúde como direitos humanos, adota-se a concepção de acesso à saúde como dimensão do direito à saúde e à justiça social, pautada pela equidade no atendimento às necessidades de saúde sem qualquer discriminação. A compreensão incorpora a efetividade da assistência à saúde no que concerne à utilização dos serviços e à satisfação das necessidades de saúde dos indivíduos e populações, referendando o Estado como provedor de políticas e ações organizadas que culminem em mudança no estado de saúde e na qualidade de vida (SANCHO; SILVA, 2013).

    Segundo o artigo 5, inciso XXXV, da CRFB-88, o acesso à justiça no Brasil representa um direito...

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