Uma leitura crítica de antígona para o direito

AutorMarcelo Alves
Páginas326 - 376

Page 326

Palavras-Chave

Antígona; Direito; Moral; Nómos; Pólis.

Abstract

The interpretation of the tradgedy Antigone, by Sophocles that has predominated in the legal scope, is that the play, by means of its outcome, expresses a victory of Natural Law over Positive Law. This essay seeks to construct a reading that is capable of re- thinking the great polemic debate which the play evokes, in terms of the relationship between Law and Morality. For this purpose, the reading takes as a point of departure the recognition of the play as a work of art and all the complexity which it contains and gives dynamism to. This involves thinking of the legal aspect based on the context created by the play, in harmony with the diversity and internal coherence which Antigone creates. The path taken enables the identification of different facets of reality present in the dynamic of the play, and the construction of a reading capable of explaining, based on the context identified, the tension which the different regulatory forces and individual desires can produce in life in society, a tension which must be recognized and transformed by the polis into a stimulus for perfecting life in society, politics and its institutions.

Key Words

Antigone, Law, Morality, Nomos, Polis

1. Introdução

Nos últimos** anos, no Brasil, os estudos e as pesquisas na área do Direito têm intensificado a busca por outras fontes — que não aquelas canonizadas pela práxis jurídico-judiciária (códigos,Page 327jurisprudência e manuais) — para pensar os fenômenos jurídicos. O que está na base dessa inquietação é o reconhecimento de que um fenômeno jurídico é um fenômeno complexo, que extrapola, e muito, a realidade configurada pelo universo da técnica e da dogmática jurídica. A conclusão, então, tem sido a de que é preciso compreender e explorar as múltiplas interfaces que constituem os fenômenos jurídicos e que por eles são também constituídos. Uma dessas interfaces é aquela existente entre o Direito e a Literatura, bastante explorada, já há muito, em outros países.

Mas seria faltar à verdade simplesmente afirmar que a Literatura até então não teria comparecido nos debates, nos estudos e nos questionamentos próprios ao universo jurídico no Brasil. Quer na sala de aula dos cursos de Direito, quer na tribuna, quer em documentos jurídicos, quer em textos acadêmicos, a referência a vários clássicos da Literatura sempre ocorre, em maior ou menor medida. Todavia, o modo como isso acontece tem sido, freqüentemente, problemático. A alusão a tais obras quase sempre é de caráter ilustrativo, assimilando-as como adornos ou, quando muito, insinuações — o que, no final das contas, faz com que não sejam levadas muito a sério, não sejam reconhecidas, entre outras perspectivas, como objetos de conhecimento. Esse tratamento dispensado à Literatura — que por certo se estende a outras manifestações artísticas — ajuda a compreender o reduzidíssimo número de obras, na área do Direito, que se dediquem à discussão e à analise de problemas jurídicos a partir uma obra literária. Isso é tão sintomático que chega a produzir lacunas inadmissíveis no quadro da produção intelectual referente ao pensamento jurídico.

Exemplo eloqüente dessa carência é a falta, no Brasil, de uma obra que promova a compreensão crítica, no que diz respeito às suas implicações jurídicas, de um clássico da Literatura Universal como a Antígona de Sófocles — um texto cuja importância para pensar aspectos relevantes da idéia de Justiça e de Direito remonta à própria Antigüidade, passa pela Idade Média e a Modernidade, e se faz ouvir com grande ressonância ainda hoje1. É desconcertante a ignorância e os mal-entendidos acerca daquilo que a peça pode representar para a reflexão e a problematização do Direito. Isso não obstante ser um texto de que a imensa maioria dos alunos, dos profissionais e dos professores da área jurídica já terem ao menos ouvido falar. Aliás, talvez justamente nisso resida boa parte dos mal-entendidos sobre a obra e o grande desconhecimentoPage 328quanto às possibilidades de interpretação que Antígona guarda: a obra, ela própria, quase não é lida, muito menos estudada2. Via de regra, ela é citada nos cursos de Direito meramente para ilustrar o conflito entre Direito Natural e Direito Positivo, e quase sempre para destacar uma suposta vitória incontestável do Direito Natural. Dito de outro modo, Antígona, e não apenas ela, acaba muitas vezes sendo citada a título de curiosidade, para testemunhar a suposta cultura daquele que a cita e conferir certo “verniz” ou “perfume” à formação técnica dos acadêmicos — postura esta que, obviamente, em nada favorece à compreensão crítica da obra.

A discussão a propósito do conflito, ou da convergência, entre Direito e Moral é certamente uma das mais antigas e complexas da história da Filosofia do Direito. Em Antígona, Sófocles representa este conflito em toda a sua complexidade de carne e espírito, abordando, a um só tempo, os dramas existenciais, políticos, religiosos, jurídicos e éticos que esse tipo de problema produz numa sociedade politicamente organizada. Por este vigor próprio da grande arte, Antígona se tornou amplamente reconhecida — de Aristóteles, passando por Hegel, e chegando a Del Vecchio e Bobbio — como o exemplo clássico que suscita a reflexão sobre o Direito Positivo e o Direito Natural3 ou, em linhas mais gerais, sobre as relações entre Direito e Moral. Mas é preciso sempre ter presente que essa é uma das dimensões abordadas pela peça, cuja grandeza não se deve ao fato de ser uma “peça de tese”, ou seja, uma peça escrita com o claro e único propósito de provar isso ou aquilo. Obra de arte que é, ela opera em diversos níveis, sem necessariamente hierarquizá-los, extraindo a sua força e a sua beleza da plena realização que ela materializa ao integrar, sem fissuras ou emendas, forma e conteúdo. Não há, portanto, como isolar determinado aspecto da obra — o jurídico, por exemplo — para tentar compreender quer seja a obra como um todo, quer seja o próprio aspecto em questão. Unidade que é, a obra exige de seu expectador/leitor não menos do que ser reconhecida como tal.

O que pode ser feito, e é o que se tentará aqui, é compreender o aspecto jurídico a partir do contexto criado pela obra, ou melhor, trata-se muito mais de problematizar o aspecto jurídico a partir do contexto da obra, valorizando inclusive elementos religiosos, políticos e sócio-culturais apenas subentendidos na obra e que possam ser úteis à construção da leitura proposta. Em síntese,Page 329o esforço central, neste ensaio, será o de oferecer, por meio da devida contextualização religiosa, política, jurídica e cultural, somada à análise passo-a-passo da própria peça, subsídios para uma compreensão crítica de Antígona capaz de contribuir para as reflexões, em Filosofia do Direito, sobre as relações entre Direito e Moral — o que, paralelamente, permitirá desmistificar as leituras simplistas que comprometem substancialmente o reconhecimento do alcance da obra.

2. A lei de Antígona

A tragédia4 Antígona tem como núcleo mítico a famosa maldição da família, ou guénos, dos Labdácidas, que forneceu matéria-prima para muitas outras tragédias5. No pensamento grego arcaico, em que o caráter religioso tem um peso esmagador sobre as ações dos indivíduos, o crime, a falta (hamartía) cometida por um dos membros do guénos se estende, em forma de maldição, a todos os demais membros da família e a seus descendentes, até que seja totalmente “paga”, expiada6. A maldição dos Labdácidas tem início com Laio, filho de Lábdaco (daí a designação “Labdácidas” para a sua linhagem), rei de Tebas. Com a morte de seu pai, o jovem Laio, para não perecer nas mãos de um usurpador do trono, teve de fugir de Tebas e refugiar-se na Élida, junto à corte do rei Pélops. Lá, trai a hospitalidade que lhe fora concedida ao apaixonar-se pelo filho do rei, Crisipo, e raptá-lo. Pélops então amaldiçoa Laio, que retorna a Tebas, torna-se rei e casa-se com Jocasta.

Após muito tempo sem conseguir ter filhos, o casal vai consultar o mais famoso de todos os oráculos gregos, o Oráculo do Templo de Delfos. E o que ouvem é terrível: se tivessem um filho, este por fim mataria o pai e se casaria com a própria mãe. Apesar disso, um ano depois o casal teve um menino, mas seu nascimento atemorizou o casal, que não podia esquecer da terrível profecia anunciada. Entregaram então a criança a um pastor, para que ele a matasse. Mas apiedado da criança, o homem a entregou a um outro pastor para que a levasse dali. O pastor a levou para a cidade de Corinto, onde o casal de reis, que não tivera filhos, acaba adotando Édipo. Aos vinte e um anos de idade, Édipo ouve dizer que não é filho legítimo dos reis de Corinto. Intrigado, o jovem vai consultar o Oráculo de Delfos, que nada fala sobre quem são os seus pais, apenas lhe diz: “Irás matar o teu pai e casar com a tua mãe”. Aflito, Édipo procura fugir de seu destino não retornando a Corinto, mas tomando um outro rumo. Tebas, naquele momento,Page 330vivia assolada por um grande mal: a Esfinge, criatura monstruosa que devorava a todos que cruzassem o seu caminho e não conseguissem decifrar os seus enigmas. Laio partira em direção a Delfos em busca de uma solução para os males da cidade. Numa encruzilhada, Édipo se depara com uma comitiva. O senhor que a comanda exige rudemente que o andarilho lhe dê passagem. Édipo reage e mata a todos, exceto um dos guardas, que consegue escapar. Sem saber, Édipo acabara de cumprir a primeira parte da profecia: matara seu pai, Laio. Com a morte de Laio, o trono de Tebas, agora vago, é oferecido como recompensa àquele que conseguisse destruir a terrível Esfinge. Édipo decifra o enigma da Esfinge, destruindo-a. A cidade está salva, e seu salvador, Édipo, ganha...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT