Uma questao de vida ou morte: para uma concepcao emancipatoria de acesso a justica/A matter of life and death: towards an emancipatory conception of access to justice.

AutorLauris, Elida

Introducao

Em 12 de marco de 2011, Dileone foi perseguido por dois policiais militares apos o relato de um roubo de carro, que colidiu contra o portao de uma casa na Zona Leste de Sao Paulo. Apos a colisao, abandonou o veiculo. Durante a perseguicao, atingiram-no com um tiro na perna, de seguida, algemado, foi colocado dentro de uma viatura policial, com vida. Testemunhas narraram a propria Policia Militar que presenciaram a execucao de Dileone pelos policiais, depois de ter sido retirado da viatura e conduzido ate ao interior do Cemiterio Parque das Palmeiras. Uma das testemunhas ligou para o 190 (numero de telefone do atendimento de emergencias da Policia Militar) e denunciou o ocorrido. Em 30 de maio do mesmo ano, a Defensoria Publica do Estado de Sao Paulo ingressou com um pedido administrativo ao governo do estado de indenizacao em favor dos pais de Dileone. O pedido incluia o ressarcimento de danos morais e o estabelecimento de uma pensao vitalicia para cada um dos pais, para alem da cobertura das despesas assumidas pela familia com velorio, transporte e sepultamento (R$ 2349,33). A defensoria ainda mobilizou a justica do estado requerendo exumacao, transporte dos restos mortais e retificacao da certidao de obito (2).

Em 26 de dezembro de 2011, o estado de Sao Paulo concordou em conceder indenizacao a familia. O acordo entre as partes determinou o pagamento de uma indemnizacao de R$ 100 mil, pensao mensal no valor de 1/3 do salario minimo e reembolso dos gastos com o sepultamento. No relatorio emitido acerca do caso, a Procuradoria-Geral do Estado de Sao Paulo acedeu ao facto de que "Esta claro que o obito de Dileone foi causado pela acao dos policiais militares, que agindo nessa condicao, o levaram para o interior do cemiterio, onde a vitima levou um tiro no peito. Depois disso seguiram para o hospital, no intuito de simular que socorreram a vitima, e que a morte se deu em razao dos ferimentos produzidos durante a troca de tiros, anteriormente ocorrida". Com o encerramento do caso, a defensora publica responsavel salientou a ineficacia do acordo como medida de reparacao, mas a sua oportunidade enquanto reconhecimento da responsabilidade por parte do Estado: "O valor nao indeniza a dor dessa familia, mas o acordo e importante e foi aceite pela Defensoria Publica porque houve concordancia dos familiares com seus termos. Prolongar a discussao do caso e prolongar a dor. Assim, reconhecemos a atitude positiva do Estado de ter-se prontificado a indenizar com certa agilidade em uma composicao extrajudicial, atitude essa que deve ser estimulada".

Noutro caso, em Agosto de 2011, a defensoria publica ingressou com uma acao judicial de indenizacao por danos morais e materiais em favor de duas pessoas portadoras de autismo. A acao denuncia os maus-tratos sofridos numa casa de cuidados conveniada com o governo do estado e dedicada a prestacao de servicos a pessoas portadoras de deficiencia. De acordo com a defensora publica responsavel pelo caso, o trabalho desta entidade apresenta diversas irregularidades, atestadas em laudos tecnicos realizados por representante da secretaria de saude, por perito judicial e por assistente tecnico da defensoria. "As pessoas com autismo eram alocadas numa enfermaria, sem qualquer distincao de idade, gravidade ou mesmo forca fisica, onde ficavam aprisionados por grades. O banheiro utilizado era comum, com vasos sanitarios sem tampa e sem papel higienico disponivel". As maes dos pacientes, por denunciarem as irregularidades, sofreram restricoes no regime de visitas aos filhos. A visita foi circunscrita as areas externas da instituicao, nao sendo admitida a entrada no local onde os pacientes recebiam o tratamento.

Em decorrencia das denuncias, os pacientes foram transferidos para outra entidade conveniada com o Estado. Realizaram-se diversos exames que demonstraram um quadro clinico nao apresentado antes do internamento (desnutricao, micose, piolho, escoriacoes nos bracos e pernas, etc). A acao pede indenizacao no valor de 200 salarios minimos para cada um dos autores. A defensora salientou a atuacao preventiva e de compensacao da medida, atraves da denuncia dos atos danosos, responsabilizacao e admoestacao acerca das consequencias: "A indenizacao e uma forma de compensar e advertir pelos danos morais sofridos. A recompensa e capaz de minimizar os problemas causados pela nao fiscalizacao do Estado e pelo servico de ma qualidade ao qual os pacientes foram submetidos; e a advertencia serve para que esse ato nao se repita, ja que outras pessoas com autismo se encontram no mesmo local".

Utilizo esses dois casos para introduzir a discussao acerca do encontro com a justica daqueles/as convencionalmente referidas/os como populacao pobre e/ou grupos vulneraveis. O que estes casos enunciam sobre a experiencia de conquista de direitos por parte daqueles e daquelas que sao sistematicamente privados do direito? De um lado, um direito decorrente da morte, subtracao da vida pelo proprio Estado numa acao em defesa da seguranca da sociedade; de outro, um direito a condicoes dignas de vida, exercido contra uma instituicao reconhecida e financiada pelo poder publico para assegurar o cuidado a pessoas portadoras de deficiencia economicamente carentes. Ambos os casos receberam atendimento juridico e um encaminhamento que se pode considerar bem-sucedido, enquanto num deles o pedido realizado foi correspondido por decisao acordada entre as partes, noutro, ainda sem desfecho, foi assegurada uma medida cautelar para interrupcao da situacao abusiva. O encontro com a defensoria, ainda que na forma de vitoria do caso, nao alterou substancialmente as condicoes de vulnerabilidade enfrentadas por aquelas familias. O tratamento desses casos em particular sequer permite abordar outras dimensoes em que a pobreza se manifesta como falta de direitos. As vitorias tambem nao transformaram a situacao de sujeicao em face das intemperies do sistema juridico, que marca o cotidiano de tantas outras familias expostas a violencia institucional.

Com base nestes dois exemplos, neste artigo, proponho analisar a afirmacao segundo a qual o acesso a justica e um indicador da democratizacao dos estados. No caso de Sao Paulo, a criacao da defensoria publica em 2006 foi, sem duvida, um momento de ampliacao democratica da forma de prestacao de servicos juridicos no estado. Uma mudanca cuja realizacao e uma conquista partilhada tanto por profissionais de assistencia juridica quanto por movimentos sociais. Contudo, como se ve nos casos acima, o aprofundamento da missao da defensoria publica, quando democratica (independente, proativa, dedicada as causas de vitimizacao das/os pobres), demonstra a involucao do Estado em materia de igualdade. Em termos simples, defendo que um sistema de acesso a justica democratico so e um indicador politico se funcionar como um indicador social. Isto e, o facto de os estados contemporaneos assentarem-se em principios e instituicoes democraticos ganha relevancia apenas e na medida em que esta normatividade esteja a servico do desvelamento de violencias estruturais que, nao advindo mais de regime politico ditatorial, e social (Santos, 2003).

De facto, os sistemas de acesso a justica na atualidade estao colocados perante uma encruzilhada entre a vulnerabilizacao ou o aprofundamento da democracia. No ambito de um movimento de enfraquecimento da democracia, a defesa de que os sistemas de acesso servem como indicativos da evolucao da igualdade de todas/os perante a lei e feita atraves de uma disjuncao entre acesso e justica. Procurei demonstrar ate aqui que uma democratizacao fraca do acesso nada mais representa do que um movimento de maximizacao da oferta de servicos no ambito de reformas judiciais dirigidas ao controle da carga de litigiosidade dos tribunais. Esse maior acesso reflete uma dinamica de combinacao geopolitica entre os recursos de um Estado considerado fraco e uma sociedade tomada como forte (Santos, 2007b). Neste ponto, sem detrimento da expansao da violencia do Estado, aposta-se na cooperacao com a sociedade civil como meio de promocao de um acesso a justica proximo e desjudicializado. O envolvimento da comunidade resulta numa resolucao de conflitos a partir de baixo que funciona como alternativa de consumo contentora do aumento da demanda judicial. A soberania do Estado pronuncia-se democratica atraves de um conjunto poliforme de instituicoes e procedimentos que asseguram a ampliacao do acesso a justica oficial. Este e um contexto que efetiva um conceito de democracia minimo em que a permanencia de regimes de exclusao radical no interior do Estado nao tem qualquer impacto na retorica de ampliacao da legitimidade politica.

Num movimento de aprofundamento democratico, a maximizacao do acesso atraves da pluralizacao geral das estruturas juridicas atende apenas a um requisito de democracia formal. A defesa material de democratizacao do acesso a justica dirige-se a uma acao estrategica de desvelamento das condicoes de privacao de direitos invisibilizadas pela normalizacao difundida pela ordem juridica. A logica de auto-preservacao do direito como instrumento de dominacao politica constroi-se por meio de linhas de divisao abissal (Santos, 2007a). Neste sentido, a defesa da justica como democracia, reconhecimento de direitos fundamentais e acesso a instancias de resolucao de conflitos oculta a existencia de uma justica que corrobora a violacao sistematica de direitos em franjas de excecao juridica. Se o espaco de violencia, apropriacao e dano sistematico vividos pelas populacoes descartaveis do sistema e separado da reproducao da justica como igualdade, o acesso ao direito das/os pobres e grupos vulneraveis nao se da no interior de um estado de direito democratico. As mulheres e homens marginalizadas/os pelo sistema juridico, quando o acedem, fazem-no a partir dos estados de excecao a que estao relegados. A reproducao de estados de excecao, por sua vez, resulta do proprio exercicio da...

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