O Princípio Constitucional do Valor Social Trabalho e a Obrigatoriedade do Trabalho Prisional

AutorJoão José Leal
CargoProfessor do CPCJ/UNIVALI
Páginas57-76

    Professor do CPCJ/UNIVALI. Ex-Promotor de Justiça e Procurador Geral de Justiça. Ex-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da FURB. E-MAIL: jleal@brturbo. com

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1. Execução Penal e Obrigatoriedade do Trabalho Prisional
1. 1 Execução Penal e Obrigatoriedade do Trabalho Prisional

A Lei de Execução Penal – LEP, além de visar a efetivação das disposições da sentença criminal, tem por objetivo éticopolítico o difícil e complexo desafio de “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (art. 1º). No tocante ao trabalho penitenciário (interno ou externo), compreendido como dever social e condição de dignidade humana, estabelece a lei que esse terá “finalidade educativa e produtiva” (art. 28, caput).

A legitimidade das normas que estabelecem a obrigatoriedade do trabalho do preso, observadas suas aptidões e capacidade (arts. 34 § 1º, 35, § 1º e 36 § 1º, do CP e 31 da LEP), é aceita pela maior parte da doutrina sem qualquer restrição.

Ney Moura TELES parte da premissa de que, por meio do trabalho, o homem se tornou um ser social e afirma que o trabalho prisional é “muito mais que um direito, pois constitui um importante método para o tratamento do desajustado social que é o condenado, com vistas a obter sua reinserção na vida social livre.”1 Romeu FALCONI não discrepa desta posição, ao lecionar que “a laborterapia é uma das formas mais eficazes de reinserção social, desde que dela não se faça uma forma vil de escravatura.”2

Jason ALBERGARIA entende que a idéia de trabalho como dever social, “enfatiza a responsabilidade pessoal do preso, como a de todo homem, ao assumir seu posto na sociedade”. Conclui que a “reinserção social do preso como objetivo da pena retirou do trabalho o seu aspecto de castigo, opressão e exploração.3

Odir PINTO DA SILVA e José Antônio BOSCHI assinalam que o trabalho prisional impede que o preso venha a desviar-se dos objetivos da pena “de caráter eminentemente ressocializador, embrenhando-se, cada vez mais nos túneis submersos do crime.4

Para Júlio MIRABETE, o trabalho prisional não constitui uma agra-Page 60vação da pena, “mas um mecanismo de complemento do processo de reinserção social”.5 Armida Bergamini MIOTTO escreve que “o trabalho, com seu sentido ético, suas funções e finalidades éticas, se integra no regime de execução da pena, concomitantemente, como um direito e um dever”. Para a autora, a laborterapia constitui importante instrumento de adaptação à disciplina prisional e de autopreparação para a vida em liberdade.6

Heleno Cláudio FRAGOSO admite que o trabalho sempre foi considerado “elemento essencial ao tratamento penitenciário, por ser um dever social e condição da dignidade humana” e lamenta que a realidade penitenciária de nosso país não oferece oportunidade de trabalho para a maioria dos condenados.7 No entanto, admite não só a necessidade como também, implicitamente, a legitimidade da obrigatoriedade do trabalho prisional.

1. 2 Trabalho Prisional como Atividade Facultativa

Doutrina mais recente, no entanto, questiona a constitucionalidade do dispositivo que obriga o preso a trabalhar. Carmen Silvia BARROS, com base nos dispositivos constitucionais que asseguram a liberdade de escolha de trabalho, ofício e profissão ou no que proíbe a pena de trabalho forçado (art. 5º, incisos XIII e XLVII, c), afirma que “o trabalho do preso só pode ter caráter facultativo”. Entende a autora que, como parte do processo que objetiva a reinserção social do preso, cabe ao Estado oferecer a oportunidade de trabalhar, mas no que diz respeito ao condenado “só pode ser uma oferta que ele é livre para aceitar ou não”. Em nota de página, escreve de forma incisiva: “Trabalho obrigatório com o qual não consente o preso é, sem dúvida, trabalho forçado.”8

Ao analisar o direito português e, embora reconhecendo a existência de um dever fundamental (constitucional) de trabalhar, que considera relevante para a posição jurídica do recluso, Anabela Miranda RODRIGUES afirma inexistir uma “consagração legal de um dever específico de trabalhar”. Defende a idéia de que existe sim um direito e não um dever legal ao trabalho. A autora, no entanto, reconhece que o trabalho penitenciário está consagrado na legislação da maioria dos países europeus “como um dever para os reclusos condenados”.9

Há uma dificuldade aparente para se harmonizar a regra da obrigatoriedade do trabalho prisional com as normas constitucio-Page 61nais que asseguram a liberdade de escolha de uma atividade laboral e a que proíbe o trabalho forçado (art. 5º, incisos XIII e XLVII, letra c, da CF). Além disso, o art. 6º caput consagra o trabalho como um direito social e não como dever do cidadão.

Pode-se, ainda, acrescentar o argumento de que, num Estado Democrático de Direito, o preso, mesmo tolhido em sua liberdade física de locomoção, tem a liberdade de se autodeterminar para o trabalho e decidir se quer ou não exercer uma atividade laboral no interior de um estabelecimento penal. Ao ser condenado a uma pena privativa de liberdade, o preço éticojurídico a ser pago pelo seu crime consiste na perda de sua liberdade física de locomoção. Este seria o único bem jurídico legitimamente atingido pela sanção privativa da liberdade.

Além disso, o próprio CP estabelece que o “preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade” (art. 38). Em conseqüência, poder-se-ia argumentar que, mesmo privado de sua liberdade de locomoção física, o preso conserva o direito de se abster do trabalho penitenciário.

E mais: numa sociedade democrática e plural, desde que não prejudique interesses de terceiros ou perturbe o espaço de liberdade coletivo, o cidadão tem o direito de ser diferente, de optar por uma forma comportamental divergente daquela ditada pelos padrões ou paradigmas predominantes de normalidade ética. Nessa linha de raciocínio, poder-se-ia afirmar que a obrigatoriedade do trabalho prisional é, à luz do Direito Penal Democrático, inadmissível, pois o preso pode optar por cumprir sua pena no interior da cela, sem causar qualquer problema relacionado com a disciplina prisional. Portanto, o poder estatal se ressentiria da indispensável legitimidade para acrescentar à resposta punitiva uma obrigação a mais a ser suportada pelo condenado.

1. 3 Trabalho como Valor Social e Princípios Constitucionais

A nosso ver, a contradição inexiste. O fato de ser obrigatório, o moderno trabalho prisional não pode ser comparado à antiga prática penal do trabalho forçado. Este consistia na própria pena, enquanto que o encarceramento representava tão somente um indispensável instrumento de contenção do condenado, para que a pena corporal, com toda a carga de crueldade de que se revestia, pudesse ser efetiva e compulsoriamente executada. A recusa do conde-Page 62nado em exercer o penoso trabalho acarretava o emprego dos meios violentos e dos suplícios que se fizessem necessários para a execução forçada do trabalho. A própria morte do condenado não era descartada.

Portanto, não nos parece aceitável a idéia de que a obrigatoriedade do trabalho prisional equivale à prática do trabalho forçado.

Hodiernamente, a expressão trabalho obrigatório deve ser interpretada à luz dos princípios políticojurídicos que emanam da Constituição e do próprio sistema normativo infraconstitucional (CP, CPP e LEP). Isto significa que, embora o Direito estabeleça o dever ao trabalho prisional, o preso pode recusar-se a trabalhar e o aparelho estatal responsável pela condução do processo material de execução da pena privativa de liberdade não poderá utilizar legitimamente de qualquer meio ou instrumento para compelir ao trabalho.

A recusa ao trabalho, se injustificada, configura, é lógico, falta grave e o condenado não apresentará o necessário mérito prisional para ser beneficiado pela progressão de regime e por institutos despenalizadores como a remição, comutação de pena, indulto ou livramento condicional. Será o preço jurídico a pagar por sua injustificada recusa a cumprir uma das regras mais relevantes da disciplina prisional e por sua opção de, voluntariamente, cumprir sua pena de forma diferente daquela estabelecida pela lei de execução penal.

Ainda no campo dos princípios constitucionais, não se deve esquecer de que, um dos princípios fundantes da República Federativa do Brasil é o do valor social do trabalho, consagrado no inciso IV do art. 1º, da CF. Da mesma forma, a Carta Magna estabelece como fundamento da ordem econômica a valorização do trabalho (art. 170), enquanto que a “ordem social tem como base o primado do trabalho” (art. 193). Ora, se o trabalho reveste-se de valor social e se a própria ordem social se constitui e se legitima a partir do trabalho, é lógico que o trabalhar representa um inquestionável dever cívico para todo e qualquer cidadão. E se isto é válido para o cidadão livre, vale também para o cidadão-condenado da justiça criminal. A própria Anabela Miranda RODRIGUES, acima mencionada, não deixa de reconhecer que “como qualquer cidadão, o recluso encontra-se...

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