A valorização do ser humano a partir das matrizes teóricas do direito fraterno e da justiça restaurativa: o tratamento de conflitos como forma de exercício da cidadania

AutorCharlise Paula Colet
CargoAdvogada. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do RS e Mestranda em Direito pela UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul. Membro do Grupo de Pesquisa em Direito, Cidadania e Políticas Públicas coordenado pela Profa.
Páginas50-70

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Introdução

Considerando o Direito Penal brasileiro no seu viés punitivista, em que se revela comprometido com o controle e o disciplinamento social das classes populares do país, faz-se necessária a sua humanização, com o esquecimento de preconceitos de índole social, a fim de se modificar o foco para as desigualdades sociais, razão principal da maioria dos crimes em um país profundamente marcado pela desigualdade social desde os primórdios de sua história.

Nesta ótica, apresentam-se o Direito Fraterno e a Justiça Restaurativa como novos modelos de justiça, mas também de uma filosofia e de uma cultura, eis que cada uma é capaz de captar a mesma imagem sob ângulos e perspectivas diferentes e produzir resultados completamente diferentes, opondo-se ao etiquetamento social, visto que a seletividade somente reproduz o senso comum majoritário, punindo-se as condutas desviantes sob uma perspectiva apenas, a dominante.

Portanto, como valorização do ser humano, apresentam-se as matrizes teóricas do Direito Fraterno e da Justiça Restaurativa na medida em que reúnem todas as partes envolvidas no cometimento de um crime de modo a buscar uma solução fraterna, de forma conjunta, para o resultado do delito, bem como para as suas implicações futuras. Ou seja, os mecanismos fraternos e restaurativos criam espaços de acolhimento e promoção de direitos, permitindo a existência de um sistema de valores e princípios fundado no diálogo, na participação direta e indireta dos envolvidos e no estabelecimento de acordos restaurativos, buscando, por conseguinte, a desestruturação da estigmatização social e a restauração das relações sociais, considerando, assim, a pessoa enquanto sujeito de direitos especiais inerentes ao seu desenvolvimento pleno.

Com efeito, os mecanismos de Justiça Restaurativa, abordados a partir do marco teórico do Direito Fraterno, oportunizam a construção de um modelo de política criminal comprometida com os direitos humanos e a inclusão social, ao abordar as relações sociais envolvidas em conflitos de igualitária e fraterna. Por isso, o estudo da aplicabilidade dos mecanismos restaurativos e do Direito Fraterno na sociedade contemporânea oportuniza a construção de uma política criminal quePage 51promova os direitos humanos e a cidadania, a inclusão social e a dignidade humana, ao compreender as relações sociais em conflitos de forma humana e pacífica.

1 Os conflitos e seus tratamentos como forma de transformação da realidade social

A construção do Estado e a multiplicação de formas pacificadoras de intervenção possibilitaram à sociedade a vitória sobre a barbárie, eis que se extingue o direito à vingança e emerge um sistema normativo.2 No entanto, é inerente ao ser humano possuir desejos similares aos dos outros, vindo a gerar a rivalidade e a disputa pelo domínio de um território, oportunidade em que nasce o conflito, sendo ele reflexo da incapacidade do homem de compreender que há espaço para ele e os demais.3 Por isso, afirma Vezzula que “[...] o conflito consiste em querer assumir posições que entram em oposição aos desejos do outro, que envolve uma luta pelo poder e que sua expressão pode ser explícita ou oculta atrás de uma posição ou discurso encobridor”.4

Para Muller, a humanidade do homem não se cumpre fora do conflito, mas sim para lá do conflito. O conflito está na natureza dos homens, mas quando esta ainda não está transformada pela marca do humano. O conflito é o primeiro, mas não deve ter a última palavra. [...] o homem não deve estabelecer uma relação de hostilidade, onde cada um é inimigo do outro, mas deve querer estabelecer com ele uma relação de hospitalidade, onde cada um é hóspede do outro. É significativo que os termos hostilidade e hospitalidade pertençam à mesma família etimológica: originalmente, as palavras latinas hostes e hospes designam ambas o estrangeiro. Este, com efeito, pode ser excluído como um inimigo ou acolhido como um hóspede.5

Julien Freund manifesta que o conflitoPage 52trata de romper a resistência do outro, pois consiste no confronto de duas vontades quando uma busca dominar a outra com a expectativa de lhe impor a sua solução. Essa tentativa de dominação pode se concretizar através da violência direta ou indireta, através da ameaça física ou psicológica. No final, o desenlace pode nascer do reconhecimento da vitória de um sobre a derrota do outro. Assim, o conflito é uma maneira de ter razão independentemente dos argumentos racionais (ou razoáveis) [...]. Então, percebe-se que não se reduz a uma simples confrontação de vontades, idéias ou interesses. É um procedimento contencioso no qual os antagonistas se tratam como adversários ou inimigos. [grifou-se]6

Percebe-se, neste contexto, que o indivíduo não pode fugir da situação de conflito sem que venha a renunciar aos seus próprios direitos. Por isso, ao aceitar o conflito, permite que seja reconhecido pelos demais, destacando-se que o conflito pode ser construtivo à medida que estabelece um contrato entre as partes, satisfazendo os respectivos direitos e promovendo a construção de relações de equidade e justiça entre pessoas de uma mesma comunidade e entre comunidades distintas.7

Compreende-se, neste diapasão, que o conflito é um meio de manutenção da coesão do grupo no qual ele explode, sendo as situações conflituosas reveladoras de intensa interação, a qual une os indivíduos com mais frequência que a ordem social, sem traços de conflitualidade.8 Em adição, afirma-se que o conflito é inevitável e salutar aos indivíduos enquanto estes encontrem meios autônomos de manejá-los, e o considerem como um fato, positivo ou negativo, conforme os valores inseridos no contexto social analisado.9

Entretanto, salienta-se que, embora o conflito seja construtivo, o mesmo deve ser tratado quando ultrapassa os limites da sociabilidade (inimigo/não inimigo; pessoa/não pessoa), assumindo uma postura vingativa ou de prejuízo à outra parte, motivo pelo qual se faz necessária a intervenção mediante mecanismos hábeis para o seu tratamento.10

Algum tempo atrás, no jardim da casa de um amigo, meu filho de cinco anos e seu colega disputavam a posse de uma mangueira. Um queriaPage 53usá-la antes do outro para aguar as flores. Cada um tentava arrancá-la do outro para si e ambos estavam chorando. Os dois estavam muito frustrados e nem um nem outro era capaz de usar a mangueira para regar as flores como desejavam. Depois de chegarem a um impasse nesse cabo-de-guerra, eles começaram a socar e a xingar um ao outro. A evolução do conflito para a violência física provocou a intervenção de uma poderosa terceira parte (um adulto), que propôs um jogo para determinar quem iria usar a mangueira antes do outro. Os meninos, um tanto quanto assustados pela violência da disputa, ficaram aliviados em concordar com a sugestão. Eles rapidamente ficaram envolvidos em tentar achar um pequeno objeto que eu tinha escondido e obedientemente seguiram a regra de que o vencedor seria o pri-meiro a usar a mangueira por dois minutos. Logo eles se desinteressaram pela mangueira d'água e começaram a colher amoras silvestres, as quais atiravam provocativamente em um menino de dez anos de idade que respondia aos inúteis ataques com uma tolerância impressionante.11

Ou seja, embora o homem pareça estar sempre lutando contra situações de angústia, de forma a se manter em equilíbrio, é de sua natureza a contradição entre o desejo sobre determinada coisa e fazer o oposto disto que deseja. Desta forma, afirma Muller que a paz não deve significar a ausência de conflitos, mas o domínio, a gestão e o tratamento dos mesmos mediante meios diversos da violência destruidora e mortífera. “A acção política também deve procurar a resolução (do latim resolutio, acção de desatar) não-violenta dos conflitos”.12

Destarte, a identificação de alternativas para satisfazer as necessidades humanas mínimas constitui-se em um instrumento de tratamento de conflito sem violência, incentivando a paz e o restabelecimento das relações entre os indivíduos de forma a interromper as cadeias de reverberação de violência.

Só a acção não-violenta pode desatar o nó górdio de um conflito e permitir assim a sua resolução. Cortar o nó em vez de levar tempo a desatá-lo é dar provas de impaciência. A violência é precipitação e um excesso de velocidade da acção. Ela violenta o tempo que é necessário para o crescimento e maturação de todas as coisas. Não que o tempo aja por si mesmo, mas concede à acção o tempo de que ela necessita para se tornar eficaz. Assim, a virtude da paciência encontra-se no cerne da exigência de não-violência. [...] A paciência tem a força da perseverança.13

Vislumbra-se, assim, que novas formas de participação social incitam uma relação de corresponsabilidade entre Estado e a sociedade, as quais possibilitamPage 54um espaço de participação social consciente e mobilizado. Por isso, é necessário humanizar o sistema penal brasileiro, com o esquecimento de preconceitos de índole social, a fim de se modificar o foco para as desigualdades sociais, razão principal da maioria dos crimes.

2 Os modelos alternativos do direito fraterno e da Justiça Restaurativa como expressão da cultura de paz

Como alternativa à demonização incutida nos ideais do senso comum punitivo, em que aquele que não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não deve e não pode ser tratado como pessoa, eis que o contrário tornaria vulnerável a segurança das demais pessoas, os não inimigos14, nos deparamos com a mediação penal ou justiça de proximidade na França, justiça comunitária em Quebeque, restorative justice nos países anglo-saxônicos, Diritto fraterno na Itália, mas a ideia central é comum a todos os modelos: atribui-se aos...

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