A viagem e volta do boi Milonga

AutorNewton Navarro
CargoReconhecido artista plástico
Páginas333-338

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"Se meu boi morrer

Que será de mim?"

(Toada do Bumba-meu-boi)

É tempo de sofrer, esse de agora, quando vai pela estrada de Rosário, vender Milonga. Arribou, de manhãzinha, pelo fim das estrelas, com a alva luzindo sobre o dorso das barras. Deixaram Milonga preso, no meio do curral, como condenado, desde a noite anterior, que era para não dar trabalho de procura pelo campo trevoso da madrugada. Chegadas as três horas, desamarrara o bicho que lhe pareceu mais manso, os dois grandes olhos fundos, como poças serenas, mas cheios dessa vida que há nas cacimbas perenes e era bem isso o amor de Milonga por tudo aquilo que deveria deixar: o campo, a casa, o povo e os bichos. Só não fez urrar porque então o moço não teria coragem de tomar a corda e o chapéu e se achar como agora estava, na estrada sozinha, no luscofusco da manhã cheirosa, a levar Milonga para o mercado da cidade.

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E dizer que as necessidades faziam aquilo era o que mais doía. A semana inteira pensara no caso. Para todas as razões de se separar de Milonga encontrava sempre uma alternativa. Pulava de lado diante de tantas verdades difíceis da sua vida. Protegia o bicho com amor de macho enamorado. Mas as coisas apertaram de vez. Já se desfizera do saldo da safra anterior, do restante da farinha e de todo o milho do armazém. Não encontrara o que mais contar senão o boizinho manso, companheiro, quase gente, criado e vivido ali mesmo, naquele geral de sertão, desde bezerro sem mãe, nos quartos da cozinha, bebendo os primeiros leites na mamadeira, pelas mãos de Zefa, preta velha, filha de escravos.

Vender o boi não resolveria, era verdade, mas o dinheiro desafogaria um pouco. E desse pouco, a cruel medida, faria esteio para levantar mais confiança no dia de amanhã. Duro viver da gente que se abandona de bem por um bicho daqueles e um dia há de chegar com a crueza de um serviço que obriga a vender, afastar, levar de vez a cria que se fizera amor e agrado.

Sua passada mansa se alterna com o andar arrastão do animal. O dorso de milonga vai cheio de estrelinhas dos pingos de orvalho. Os olhos prendem os derradeiros brilhos da alva e, inquietos, agora vão demorando em tudo, pelo estradão, nas cercas que margeiam os campos estragados, no milharal seco e retorcido, na vazante rasa: somente a fronde dos umbuzeiros maior e mais viva. Lá para detrás das sebes de favela bate um chocalho de cabra. A manhã se descobre em claridades que vão mostrando as cumeadas da serra.

A vida das coisas renasce, sonora e clara e, no entanto, em seu coração, o moço sente uma sombra...

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