Violência e resistência em Bacurau/Forceful and Dusty Magnifying Glasses: Violence and Resistance in Bacurau.

AutorAssy, Bethania

E o que estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se para jagunço, mas a matéria vertente. [Riobaldo, Grande Sertão] -Precisamos resistir e eu preciso cantar. Paulo, Terra em Transe -E quem nasce em Bacurau é o que? - É gente! [O Estrangeiro (Karine Toles) pergunta e o menino responde, Bacurau] 1. Antes de Bacurau: Caetano, Rosa, Glauber, Vandré e Oiticica (1 2)

1.1 Um objeto não identificado

Bacurau começa com a bela canção Não identificado de Caetano Veloso: "Eu vou fazer uma canção pra ela/ Uma canção singela, brasileira/ Para lançar depois do carnaval/Eu vou fazer um iê-iê-iê romântico/ Um anticomputador sentimental/ Eu vou fazer uma canção de amor/ Para gravar um disco voador/ Uma canção dizendo tudo a ela/ Que ainda estou sozinho, apaixonado/ Para lançar no espaço sideral/ Minha paixão há de brilhar na noite/ No céu de uma cidade do interior/ Como um objeto não identificado". Esta canção marca a Tropicália (3), um movimento estético, político e (contra) cultural que teve lugar nos anos sessenta e expôs as contradições de um país profundamente dividido entre centros urbanos e zonas rurais. Tal divisão opõe modernização e estagnação, futuro e passado, aceleração e retração do tempo.

O Brasil da escravidão, do colonialismo, da pobreza extrema, do autoritarismo e de numerosas carências, torna-se mais visível e aparece mais claramente nas regiões rurais, especialmente no sertão do nordeste. A representação da cultura regional do sertão da Tropicália e seus valores populares se opõem aos dos grandes centros e suas referências internacionais. No entanto, a Tropicália faz mais do que simplesmente mostrar essas contradições. Não estabelece exatamente uma relação dialética entre elas - pois não há síntese - mas exacerba a sua experiência conflituosa, uma experiência sem fim a que Derrida (4) se refere como as experiências da aporia. Ao contrário dos movimentos culturais da época, que se definiam esteticamente referindo-se a valores locais e populares contra os valores da modernização (valores do mercado e de fácil consumo, importados de experiências de outros lugares), a Tropicália fez uma apropriação de ambos. Tomou os valores populares e os valores da modernização e os desconstruiu. Como um parangolé (5), recusou-se a escolher entre o regionalismo cultural e a arte moderna engajada, produzindo uma estética própria e original na música, no cinema, na literatura e nas artes plásticas, em que o regionalismo, o folclore popular e o nacionalismo reaparecem na experiência e no espetáculo das grandes cidades; do seu mundo e do seu submundo.

Ao misturar o popular e o primitivo com as novas tecnologias e a cultura de massa, o tropicalismo tornou-se uma experiência de aporia, que, como Derrida (6) a caracteriza, é uma não-caminho (non-chemin): o seu acesso é dado pela sua inacessibilidade. Segundo Pedro Duarte (7), a Tropicália "era simultaneamente pensamento e consumo, política e moda, crítica e prazer, erudição e pop, arte e espetáculo, brasileira e cosmopolita". (8) (tradução nossa)

Neste novo filme, Bacurau, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles revisitam essa atmosfera tropicalista, no encontro do primitivo com o popular, da tecnologia com a cultura de massa e acrescentam algo mais a ela. O resultado é um lugar que é o mundo inteiro como o céu de uma cidade do interior e um objeto não identificado onde, não por acaso, a ação começa e termina.

1.2 O sertão é o mundo inteiro

O filme começa com uma imagem de uma cidade do interior, no sertão brasileiro. A filmagem foi feita na fronteira entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba. Assim como Guimarães Rosa, os diretores narram o sertão a partir da sua própria localização. O sertão que está em toda parte (9)- literatura, cinema, música, artes plásticas - é um espaço e um tempo que contém em si todos os elementos que fazem os grandes dramas universais, com suas batalhas entre a vida e a morte, entre o bem e o mal.

Na relação com o universo de Guimarães Rosa, Bacurau expõe o que caracteriza o Grande Sertão: veredas (10): o enredo de opostos numa certa dialética sem Aufhebung, por assim dizer. Os opostos estão em tensão o tempo todo, em cada palavra, em cada ação, assim como (em) os afetos. Sugere antes relações aporéticas do que dialéticas: "Tudo é e não é... [...] o amor, já de si, é algum arrependimento [...]". "Deus existe mesmo quando não há. Mas o diabo não precisa de existir para haver. [...] Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? [...] Pelejar por exato, dá erro contra a gente [...]". "Aquilo o igual sempre sendo [...]" "'Deus ou o Demo [...]" "Sertão é bom. Aqui tudo é perdido e tudo aqui é achado [...]. Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda hora a gente está num cômpito." (11)

Segundo Pedro Paulo Gomes Pereira (12), o sertão brasileiro define e delimita o país como uma nação, tanto na obra de Guimarães Rosa quanto na de Glauber Rocha. Grande Sertão: veredas e Deus e o Diabo na Terra do Sol narram o sertão pelo (des)emaranhado de vozes que estão nestas duas narrativas. Os filmes do Cinema Novo de Glauber Rocha, especialmente Deus e o diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, estão presentes em Bacurau. O fascínio de Rocha (e também de Rosa) pelo universo dos mercenários (jagunços) e bandidos (cangaceiros) representam os fora-da-lei que participaram do processo de ocupação do território brasileiro desde o início do século XX, acelerando a época da colonização com seu próprio ritmo de ação e violência. A lei dos fora-da-lei é sua própria lei, uma lei excepcional. Força é o que está em jogo nesta lei - pois a lei, afinal, requer força, tem que ser aplicada - ainda, assim, a lei e a força dos bandidos conduz à violência e aos próprios bandidos.

Guimarães Rosa, no conto A hora e a vez de Augusto Matraga (cuja narrativa serviu de base para o filme homônimo, produzido por Roberto Santos, em 1965) conta a história do conflito moral enfrentado por um fazendeiro violento (Augusto Matraga) depois de ter sido salvo da morte por um casal de negros, locais, que, assim, se arrepende de seu mau comportamento e tenta viver uma vida dedicada a fazer o bem. No entanto, quando confrontado com o líder violento de um bando, ele se depara com o dilema de manter ou não a sua conversão moral, dada a sua atração pelo conflito de vida e morte.

O conto de Guimarães Rosa e a narrativa do filme de Roberto Santos inspiraram a canção Requiem para Matraga de Geraldo Vandré: "Vim aqui só pra dizer/Ninguém há de me calar/Se alguém tem que morrer/ Que seja pra melhorar/ Tanta vida pra viver/Tanta vida a se acabar/ Com tanto pra se fazer/Com tanto pra se salvar/ Você que não me entendeu/ Não perde por esperar." (13) Durante a ditadura civil-militar brasileira, esta canção (engajada) tornou-se, por sua vez, um ícone das canções políticas de resistência dos anos 60. Ao tocar a canção, Bacurau conecta o passado ao presente e à atual ascensão dos movimentos políticos fascistas e de extrema direita no Brasil, fazendo todo o sentido dizer que "ninguém há de me calar/ se alguém tem que morrer/ que seja para melhorar".

Jagunços, fora-da-lei, marginalização e violência, o mundo visto de dentro para fora, seu submundos, são presença constante na literatura de Guimarães Rosa, no Cinema Novo de Glauber Rocha e no cinema marginal dos anos 60, na música de Geraldo Vandré, assim como na obra de arte de Hélio Oiticica, em seus parangolés, onde a ação acontece e se multiplica. Na arte de Oiticica também não há síntese. "É uma obra aberta com invenções que caminham através da desconstrução/construção, das irreverências e das apropriações, e que, finalmente, realizam uma poética do instante na afirmação do gesto inaugural." (14) Na sua arte, o submundo, o mundo do fora-da-lei e do herói marginal dá sentido à sua estética e fundamenta uma experiência que põe em questão (e não se submete) o mercado e o establishment.

Em Bacurau, os sinais são invertidos, deslocando a própria cidade de qualquer localização. Está em algum lugar e em nenhum lugar. É no sertão onde a tradicional dominação oligárquica do campo brasileiro se entrelaça violentamente com a dominação tecnológica global, ou seja, onde acontece a vigilância tecnológica do não-lugar. Por outro lado, Bacurau é também o lugar de resistência às vacinas vencidas, à falta de água, aos livros inúteis, às coordenadas apagadas do mapa, aos drones e ao que mais existe para atacar sua população (mesmo sendo um lugar não identificado). O rural e o urbano estão ligados na violência que Bacurau experimenta.

Pois bem, depois de termos feito este excurso que liga o leitor à trama de possíveis referências que aparecem em Bacurau, passamos ao que queremos destacar no filme, ou seja, uma nova configuração da resistência que se move entre o singular e o universal, o periférico e o central, o doméstico e o externo, e que trata de uma violência imanente que compele à ação e resistência. O tipo de resistência que é tanto comum (no dia-a-dia) quanto extraordinária e que chama a nossa atenção para aquilo que os Viveiros de Castro denomina de devir-índio, ou seja, outras formas de vida que contrariam esta forma a que estamos vinculados na modernidade.

  1. Violência

    Bacurau fala da relação ultrajante, aporética e irreconciliável entre violência, vida e política - um dos principais temas da filosofia política e da filosofia do direito. De fato, a narrativa do filme pode ser fácil e imediatamente identificada como uma apologia à violência. Uma glamourização da violência diante da falta de alternativas. Também pode aludir ao fracasso das instituições e, finalmente, a um incentivo para fazer justiça pelas próprias mãos (sugerindo uma compreensão bastante antiquada da trama). Na verdade, Bacurau tem um efeito catártico desconcertante e perturbador: pode-se ouvir as pessoas dentro do cinema batendo palmas por punições severas infligidas aos vilões e suas mortes chocantes. Alguns críticos acusam o filme de instigar a...

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