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AutorGonçalves, Priscila Brolio

Introdução

A pandemia de COVID-19 (1) levou governos ao redor do mundo a adotarem uma série de medidas de distanciamento social, que incluíram o fechamento de escolas, estabelecimentos comerciais e locais de trabalho, bem como a migração de inúmeros serviços antes prestados presencialmente para o ambiente virtual (HALE et al., 2020). Durante esse período, as plataformas digitais desempenharam um papel fundamental, possibilitando a manutenção de contatos e compromissos profissionais e pessoais, bem como a continuidade de uma série de atividades, como o ensino à distância. (2) Enquanto a economia mundial como um todo enfrenta uma grave crise desencadeada pela pandemia, os negócios de algumas das maiores empresas de tecnologia continuaram estáveis e em alguns casos até prosperam. A Amazon contratou novos empregados, o Facebook viu seu tráfego de mensagens e vídeo explodir e a Microsoft notou um aumento expressivo em seu software de colaboração online. (3) Netflix e YouTube, na mesma toada, registraram um importante aumento de suas respectivas audiências. (4)

Mesmo antes da pandemia, plataformas digitais já mediavam quase todos os aspectos da vida moderna. A ubiquidade dessas plataformas e seus modelos de negócios inovadores vinham suscitando desafios prementes de desenho de novos instrumentos regulatórios, bem como de seus correspondentes arranjos institucionais de implementação. Por conta das medidas de enfrentamento ao coronavírus, no entanto, tais plataformas tornaram-se ainda mais imprescindíveis e, ao que tudo indica, mais poderosas em seus nichos. Evidências da dominância de tais plataformas foram reunidas em relatório do Subcomitê de Direito Antitruste, Comercial e Administrativo do Comitê sobre o Judiciário do Congresso norte-americano, que, em meio à crise sanitária, examinou a dominância da Amazon, da Apple, do Facebook e do Google. O objetivo dos parlamentares era verificar como o poder dessas empresas afeta a economia e a democracia nos Estados Unidos, mas a pandemia de COVID-19 escancarou também a importância de regular mercados digitais para manter a Internet competitiva, disponível e acessível para trabalhadores, famílias e negócios, além da necessidade de se preservar uma Imprensa livre e vibrante nos planos nacional e local. (5)

A situação crítica e inusitada causada pelo novo coronavírus torna alguns dos desafios jurídicos envolvendo plataformas digitais ainda mais agudos e complexos. Em muitas partes do mundo reguladores e formuladores de políticas públicas têm buscado soluções inovadoras para lidar com as novas questões trazidas pelos modelos de negócios que tais plataformas engendram, desde aspectos concorrenciais - como casos de abuso de posição dominante - passando por questões de privacidade e regulação de conteúdo online, como discurso de ódio e fake news. (6) Dito de outra forma, o direito econômico é novamente chamado a dar resposta imediata a dificuldades regulatórias complexas e até então desconhecidas. (7)

Este artigo trata dos desafios associados à regulação dessas plataformas digitais em meio à pandemia de COVID-19 como parte das preocupações do direito econômico. Parte do pressuposto teórico de que esse campo possui relações de vasos comunicantes--importantes, mas nem sempre percebidas - com os contextos históricos de economia política. Economia política e direito econômico são, em outras palavras, áreas interligadas e capazes de produzir influências recíprocas em cada época: a primeira é crucial na formação e mudança dos sistemas jurídicos à medida que dá contornos ao cenário no qual o direito é disputado, demandado e contestado. (8) O segundo é quem, entre outras funções, traduz os objetivos de política econômica do Estado em cada momento histórico ao forjar instrumentos normativos e arranjos político-institucionais que convertem tais objetivos em medidas concretas de política pública. (9) Vale dizer: a economia política da pandemia, bem como o vertiginoso ritmo de mudanças tecnológicas que levou ao surgimento de plataformas digitais dominantes e virtualmente ubíquas, eventos sem precedentes recentes no capitalismo global, tem produzido mudanças paradigmáticas no direito econômico e este, por sua vez, reage buscando modificar o contexto em que opera.

O texto é dividido em duas seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção, abordamos questões de natureza concorrencial--com ênfase (i) em aspectos ligados à colaboração entre concorrentes para atender a demandas geradas pela pandemia do novo coronavírus e (ii) em condutas anticompetitivas associadas às plataformas digitais, com exemplos de questões que emergiram durante a pandemia. Na segunda seção discutimos aspectos de natureza regulatória, sublinhando certos desafios de coordenação institucional que as plataformas digitais suscitam. São recortes que fizemos a partir de um amplo espectro de questões relevantes a serem exploradas na confluência entre o vírus e as telas pelas quais interagimos com essas plataformas. Esperamos, com isso, contribuir para a compreensão de como a pandemia influencia e transforma o direito econômico, ao mesmo tempo, como a crise sanitária vem sendo enfrentada por ele.

Aspectos concorrenciais: colaboração em tempos de crise e condutas anticompetitivas em plataformas digitais

A pandemia de COVID-19 tem feito as autoridades de defesa da concorrência repensar e ajustar, em vários países, a aplicação tradicional do direito antitruste. Se, de um lado, os cartéis seguem sendo considerados uma das mais graves condutas anticompetitivas, de outro lado, algumas formas de cooperação entre empresas (que não passem pela fixação de preços e outras condutas coordenadas identificadas como hardcore, vale dizer) tem sido reputadas, em meio à circunstância excepcional, aceitáveis. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, publicou documento tratando de como autoridades antitruste podem ajudar a enfrentar alguns dos desafios econômicos trazidos pela pandemia (OECD, 2020). De forma similar, a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) também elaborou uma lista de recomendações para proteger a concorrência durante a crise causada pela COVID-19, incluindo a garantia de condições iguais para concorrentes e a aplicação vigorosa da legislação para evitar cartéis e abuso de poder de mercado (UNCTAD, 2020).

A percepção, compartilhada entre alguns especialistas e autoridades antitruste, é a de que diante dos desafios extraordinários trazidos pelo coronavírus, exige respostas coordenadas de agentes econômicos. Alguma forma de colaboração entre tais agentes é necessária para lidar com os severos impactos causados em certos mercados, nos quais oferta e demanda foram impactadas a ponto de ameaçar perigosamente consumidores e, como um todo, a saúde pública. (10) Nesse contexto, evitando o emprego do termo "cartéis de crise", muitas autoridades antitruste reconheceram que certas condutas usualmente consideradas anticompetitivas poderão ser, ao menos temporariamente, toleradas. Isso não quer dizer que deixará de existir permanente vigilância e monitoramento para reprimir abusos. (11) Tampouco significa que a aplicação do direito antitruste em meio à pandemia não deva ser tornada mais severa ou rígida, em face do surgimento de novos riscos e ameaças à competição em diversos mercados.

A Competition and Markets Authority (CMA), autoridade de defesa da concorrência do Reino Unido, autorizou supermercados a cooperar ou a se coordenar quando se trata, por exemplo, de horários de funcionamento, bem como para compartilhar informações sobre estoques de alimentos (UK GOVERNMENT, 2020). Comerciantes também foram autorizados a compartilhar pontos de distribuição e veículos de transporte, assim como mão de obra, para atender à demanda por comida. Nos termos empregados pela CMA, a "situação extraordinária pode levar à necessidade de empresas cooperarem para garantir a oferta e justa distribuição de produtos e ou serviços escassos, afetados pela crise, para todos os consumidores". Tal cooperação se justifica para evitar a falta de bens e serviços, para garantir segurança e suprimento, desde que claramente em nome do interesse público e desde de que contribua para o bem-estar dos consumidores em meio às medidas tomadas como resultado da pandemia de COVID-19. A CMA deixou claro, ademais, que tal prática não deve se prolongar por mais tempo do que necessário e que a orientação não deve ser entendida como "passe livre" para condutas que levem os consumidores a correr outros tipos de risco (CMA, 2020).

Entre as vedações expressamente previstas pela CMA estão a troca de informações comerciais sensíveis sobre preços e estratégias comerciais (não estritamente necessárias em face da situação excepcional), a exclusão de rivais menores dos esforços de cooperação, e a recusa a tais rivais de acesso a fornecedores e prestadores de serviços. Tampouco será tolerado que um agente econômico detentor de posição dominante (posição essa que pode ter sido conferida pela pandemia, inclusive) aumente preços "significativamente acima dos níveis competitivos". Foram explicitamente vedadas, ainda, a colusão entre concorrentes voltada a mitigar as consequências da queda da demanda por meio da prática de manter preços artificialmente elevados em detrimento dos consumidores, bem como a coordenação entre empresas que transcenda o que for necessário para enfrentar a situação extraordinária que motiva a cooperação atualmente tolerada (CMA, 2020). A despeito das cautelas adotadas, as medidas implementadas foram questionadas quanto aos seus efetivos benefícios para a sociedade. (12)

A autoridade antitruste polonesa (UOKiK) iniciou investigações a partir da denúncia de que dois atacadistas teriam rescindido contratos de fornecimento a hospitais para oferecer os produtos (como máscaras protetoras) a preços mais altos no mercado (JENNY, 2020b). Já a Cofece (autoridade...

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