Vontade de prender: gênese e ocaso do sistema prisional moderno

AutorAndré Peixoto de Souza
Páginas196-211
REVISTA ACADÊMICA
Faculdade de Direito do Recife
Vol.93 N.01 - Anno CX XX
SOUZA, André Pe ixoto de. VONTADE DE PRENDER: GÊNESE E OCASO DO SISTEMA PRISIONAL MOD ERNO. Revista
Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife - ISSN: 2448-2307, v. 93, n.1, p.196-211 Abr. 2021. ISSN 2448-2307. <Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/ACADEMICA/article/view/238477>
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VONTADE DE PRENDER: GÊNESE E OCASO DO SISTEMA PRISIONAL
MODERNO
WILL TO ARREST: GENESIS AND DECLINE OF THE MODERN PRISON SYSTEM
André Peixoto de Souza1
RESUMO
No presente texto, intencionamos demonstrar as principais e notórias mazelas do sistema
carcerário moderno a partir de suas origens necessariamente vinculadas à gênese do sistema
capitalista , e algumas propostas reflexivas (todavia, ainda singelas e insuficientes) para a
abolição do cárcere, com a devida substituição por outros meios mais adequados a uma pretensa
ressocialização do condenado. Partindo da observação de ausência de sentido histórico para o
encarceramento nesse tecnológico e inteligente século XXI, o artigo retrocede à gênese do
sistema prisional moderno, no século XVI, com a bibliografia clássica em criminologia crítica, e
a seguir encontra na referência hegeliana a chamada luta por reconhecimento na perspectiva
punitiva/prisional, objetivando a constituição de um “sujeito carcerário”. Ao fim, notando a
desumanização que tal sistema ativamente promove, denunciamos a sua obsolescência e
sugerimos propostas de abolição do cárcere e consequente substituição desses defasados métodos
punitivos. Além da bibliografia especializada, recorremos a dados quantitativos emanados por
órgãos oficiais.
Palavras-chave: Prisão. Capitalismo. Crime. Pena. Abolição.
ABSTRACT
In the present text, we intend to demonstrate the main and notorious ailments of the
modern prison system from its origins - necessarily linked to the genesis of the capitalist system -
, and some reflective proposals (however, still simple and insufficient) for the abolition of prison,
with the due replacement by other means more appropriate to an alleged re-socialization of the
condemned.Starting from the observation of the absence of a historical sense for incarceration in
this technological and intelligent 21st century, the article goes back to the genesis of the modern
prison system, in the 16th century, with the classic bibliography on critical criminology, and then
finds in the Hegelian reference the so-called struggle by recognition in the punitive / prison
perspective, aiming at the constitution of a “prison person”. In the end, noting the
dehumanization that such a system actively promotes, we denounce its obsolescence and suggest
proposals for the abolition of prison and the consequent replacement of these outdated punitive
methods.In addition to the specialized bibliography, we use quantitative data from official
bodies.
Keywords:Prison. Capitalism. Crime. Penalty. Abolition.
1 INTRODUÇÃO
1 Doutor em Direito pela UFPR e Doutor em Educação pela UNICAMP. Professor -pesquisador do PPGD-
UNINTER, Professor e coordenador do Curso de Direito da UFPR, Professor da UTP, EMAP e ICPC. Ad vogado.
Recebimento em 14/10/2018
Aceito em 22/02/2021
REVISTA ACADÊMICA
Faculdade de Direito do Recife
Vol.93 N.01 - Anno CX XX
SOUZA, André Pe ixoto de. VONTADE DE PRENDER: GÊNESE E OCASO DO SISTEMA PRISIONAL MOD ERNO. Revista
Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife - ISSN: 2448-2307, v. 93, n.1, p.196-211 Abr. 2021. ISSN 2448-2307. <Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/ACADEMICA/article/view/238477>
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O sistema prisional, hoje, não faz mais sentido histórico. Os clássicos da criminologia
crítica já trataram de fornecer amplo e fundamentado escorço histórico sobre os mecanismos
punitivos modernos, e foi amplamente vislumbrado o seu caráter econômico ou político ao longo
da modernidade (a partir do século XVI).
Tomando em conta esse quadro histórico, o texto presente intenciona refletir sobre
condições carcerárias contemporâneas, geradas a partir das definições de crime e de pena, para
então sugerir novos modelos substitutivos de punição (enquanto ainda houver punição). O
ponto central é a proposta de abolição definitiva do cárcere.
Para tanto, desenvolveremos um capítulo “empírico” sobre os sentidos do cárcere (odor,
audição etc.), outro sobre essa conjuntura histórica do sistema prisional, com suas notórias
fundamentações teóricas (Foucault, Rusche-Kirchheimer, Carnelutti, Baratta, Melossi-Pavarini,
Zaffaroni, Goffmanetc.), outro sobre os aspectos econômicos que justificaram a invenção do
cárcere na modernidade em conjunto com a teoria hegeliana do reconhecimento, e outro sobre a
obsolescência de todo esse sistema.
Após tal construção, partiremos para as proposições críticas. Advém, portanto, um
capítulo sobre “estética do crime” (num sentido ontológico), outro sobre “desumanização”,
quando se confere ao prisioneiro um caráter de coisa ou objeto o retorno ao reconhecimento
hegeliano , e o último que lista um conjunto de medidas substitutivas do cárcere, mas que ainda
não resolvem toda a questão.
2 SENTIDOS DO CÁRCERE
As grades têm menos de vinte centímetros de distância entre si, num diâmetro individual
de quase três centímetros. Ao seu longo, atravessam duas barras de ferro não redondas como as
grades, mas retangulares, também com três centímetros de espessura por quase dois de largura.
São grades e barras pretensamente pintadas de azul, mas bem descascadas, que fecham um
cubículo de três metros por três. O cheiro é impregnado de odores fortes e ácidos dentre os quais
se destaca o ferro com tinta das barras e das grades e cadeados, sobressaindo-se até mesmo ao
cheiro de dejetos e comida que também se infiltram sobremaneirano ambiente.
Cela após cela, grade após grade, cheiros e barulhos desconfortáveis, no interior desse
cubículo, onde caberia dignamente um vulto, aninham-se nove: a mãe e seus oito filhotes de
porco-do-mato recém-nascidos, que mamam ferozes nas tetas róseas da porca durante uma tarde
fria no Zoológico Municipal de Curitiba, Paraná.
A trinta e seis quilômetros dali, na Penitenciária Estadual de Piraquara, o maior complexo
penitenciário do Estado do Paraná, o menino lava e esfrega o chão com vassoura, encharca em
água e sabão com água sanitária e desinfetante, embebe a vassoura e o esfregão no balde de água
e química forte, e joga no chão a esfregar avançando os palmos e metros quadrados; segue o rodo
atrás recolhendo a água jogada na água química do chão e o rodo recolhendo, empurrando a água
toda corrente nos chinelos brancos com tiras azuis já desgastados; o barulho da vassoura
esfregando e do rodo empurrando e do retinir da vassoura e do esfregão no balde e a água jogada
de cima por outro balde, e o empurra-empurra, esfrega-esfrega das vassouras e esfregões e rodos
no chão agora limpinho, brilhante e cheiroso.
O cheiro do chão encharcado de passos lavados a sabão, desinfetante e água sanitária com
água e chinelos de dedo. O cheiro da água. O cheiro do que sobrou no ar: sabão, desinfetante e
água sanitária misturados a um cheiro de chuva e de monotonia.
As panelas enormes a cozer feijão, arroz, carne, barata, óleo e fritura com legumes e
verduras; mas perdura o feijão cujo odor esvai das incrivelmente enormes panelas de pressão e
deixa o cheiro evidente na cozinha industrial misturado com o suor dos cozinheiros e seus
respectivos chinelos de dedo brancos com tiras azuis e toucas nos cabelos, tentativa algo exitosa

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