Votação secreta no senado: uma questão apenas de transparência?

AutorLuiz Fernando Esteves Gomes
Páginas197-203
197
38
VOTAÇÃO SECRETA NO SENADO: UMA
QUESTÃO APENAS DE TRANSPARÊNCIA?
Luiz Fernando Esteves Gomes
18 | 01 | 2019
Votação aberta abre caminho para uma rígida
inuência do Executivo sobre o Senado.
No atacado de decisões monocráticas no m de 2018, o ministro
Marco Aurélio determinou que a escolha do próximo presidente do
Senado seja feita por voto aberto, e não secreto. Essa decisão não cha-
mou tanta atenção quanto às decisões monocráticas sobre execução
provisória da pena
203
– do próprio Marco Aurélio, inicialmente, e
depois de Toffoli. Mas obrigar voto aberto nesse processo no Senado
tem graves implicações para a separação de poderes, alterando a dinâ-
mica de funcionamento do Legislativo e tornando-o mais vulnerável
a ataques do Executivo. Apesar da liminar de Marco Aurélio ter sido
suspensa por Toffoli, a discussão sobre a forma de votação parece
não ter sido encerrada, sobretudo porque há no STF recurso de um
deputado que teve negado o pedido de votação aberta na Câmara.
204
Na decisão de sete páginas, o ministro Marco Aurélio argumenta
que a transparência deve ser aplicada a todos os atos de exercício
dos três poderes. Especicamente quanto ao Legislativo, arma que
a Constituição é clara ao prever votações fechadas apenas nas três
203 ARGUELHES, Diego Werneck. A liminar de Marco Aurélio: da mono-
cratização à insurreição? JOTA, 27 dez. 2018. Disponível em:
www.jota.info/especiais/a-liminar-de-marco-aurelio-da-monocratiza-
cao-a-insurreicao-27122018>. Acesso em: 11 fev. 2019.
204 REDAÇÃO JOTA. Kim Kataguiri vai ao STF para tentar garantir
candidatura à presidência da Câmara. JOTA, 16 jan. 2018. Disponível
em:
ra-tentar-garantir-candidatura-a-presidencia-da-camara-16012019>.
Acesso em: 11 fev. 2019.
198
O SUPREMO E O PROCESSO ELEITORAL
hipóteses nos incisos III, IV e XI do Art. 52 da Constituição, que não
dizem respeito à eleição para presidente do Senado, mas sim à escolha
de magistrados e outras autoridades, nos casos indicados no próprio
texto constitucional, bem como para a exoneração do Procurador
Geral da República, antes do término de seu mandato. Fora desses
casos, para o ministro, apenas uma emenda à Constituição, e não
uma lei ou resolução do Senado, poderia criar novas exceções à regra
da transparência.
O argumento geral de transparência não faz sentido, ao menos
nesses termos tão rígidos. A Constituição determina que os atos ju-
diciais sejam públicos, mas não fala nada sobre outros atos realiza-
dos no âmbito do Poder Judiciário. Isso signica que a eleição para
Presidente do Supremo só pode ocorrer por voto aberto? Estaria
o próprio Supremo, nesse raciocínio, violando um dever geral de
publicidade e transparência a cada eleição de seu presidente? Se
aplicarmos essa lógica, no limite, reuniões presidenciais com seus
ministros ou mesmo as razões que levam à escolha dos processos que
irão compor a pauta de julgamentos de um tribunal deveriam ser
abertas ao público, já que nada na Constituição excepciona a regra da
transparência nesses casos. Mais razoável seria ler, na Constituição,
uma exigência ou princípio geral de transparência que precisa ser
compatibilizada com outras razões, também constitucionais, em
sentido contrário – como, por exemplo, eciência e capacidade de-
cisória na administração pública, independência de certos atores de
pressões externas, preservação da privacidade de atores privados em
seus contatos com o poder público.
O argumento mais especíco sobre votações no legislativo parece
mais promissor. Aqui, porém, as implicações continuam sendo graves,
por uma razão muito peculiar: ela interage com o papel da Presidência
da casa, alterando o perl da liderança que os senadores estariam
escolhendo. Ao fornecer informação pública sobre como votam os
senadores nessa eleição interna, a regra de voto aberto transforma a
natureza institucional do Presidente do Senado.
Ao estudar diferentes tipos de presidência de parlamentos, os pes-
quisadores Marcelo Jenny e Wolfgang Müller encontraram 4 espécies
de presidentes:205
205 JENNY, Marcelo; WOLFGANG, Mueller. Presidentes of Parliament:
Neutral Chairmen or Assets of the Majority? DÖRING, Herbert.
Parliaments and Majority rule in Western Europe. Frankfurt: Campus
199
O SUPREMO E O PROCESSO ELEITORAL
I. o líder partidário;
II. o líder da minoria;
III. o represent ante do parlamento;
IV. o líder neutro.
O líder neutro seria aquele escolhido por uma eleição consensual,
e não se envolveria em conitos partidários. Assim, teria uma esta-
bilidade reforçada, já que provavelmente não seria de interesse dos
membros da casa legislativa a criação de uma crise que colocasse
em risco a manutenção do poder presidencial. O principal exemplo
indicado pelos autores é o do presidente da Câmara dos Comuns,
no Reino Unido, que normalmente é recrutado entre aqueles par-
lamentares que não se envolvem em conitos partidários antes da
escolha e, após assumir o cargo, deixa de participar das reuniões de seu
partido, se isola dos eventos sociais promovidos pela própria Câmara
dos Comuns e não vota nas questões submetidas à sua casa legislativa.
O líder da minoria teria poucos poderes para atuar no processo le-
gislativo e na relação com outros poderes. De forma simples e direta,
o líder partidário nada mais seria do que uma gura decorativa. Até
por isso, as eleições sequer seriam objeto de grande disputa, e pouco
risco haveria de instabilidade, dada a falta de importância do cargo,
reduzido a mero simbolismo.
Por outro lado, o presidente do tipo líder partidário seria escolhido
em uma eleição cercada de disputas e conitos, e o vencedor, além
de possivelmente ter a eleição contestada, rapidamente poderia ser
sugado por crises, diante da falta de apoio dos perdedores nas eleições.
Isso ocorre porque esse tipo de presidente tem grandes poderes para
atuar no processo legislativo e para dialogar com os outros poderes em
nome da casa legislativa que representa. Porém, está autorizado a fazer
tudo isso não em nome do Legislativo, mas sim para beneciar seu
próprio partido e seus aliados. Caso simbólico e pontual desse tipo de
presidente no Brasil é o de Eduardo Cunha, que utilizou seus amplos
poderes para tentar sufocar a oposição que não o apoiava, como no
caso das sucessivas votações da proposta de redução da maioridade
Verlag, 1995, p. 326-364. Disponível em:
publication/265563491_Presidents_of_Parliament_Neutral_Chairmen_
or_Assets_of_the_Majority>. Acesso em: 11 fev. 2019.
200
O SUPREMO E O PROCESSO ELEITORAL
penal,206 ou mesmo no prosseguimento do pedido de impeachment
formulado contra a presidente Dilma Rousseff como resposta à falta
de apoio que recebera do PT.207
A gura do representante do parlamento se aproximaria do líder
neutro, na medida em que não tomaria frente em disputas partidárias,
mas também guarda relações com o líder partidário, na medida em
que possui grandes poderes para atuar no processo legislativo. Aqui,
a escolha não decorreria de um consenso entre os membros do parla-
mento, sendo possível que o escolhido não contasse com estabilidade
reforçada no momento de crises. Além disso, na gura do represen-
tante do parlamento são concentrados importantes poderes, tanto
para atuar no processo legislativo, quanto para lidar com o público
e o poder Executivo, daí o nome “representante do parlamento”.
Um exemplo curioso dessa última gura pode ser extraído da pró-
pria experiência recente brasileira. O senador Aécio Neves nunca
fez questão de esconder que não apoiava Renan Calheiros para a
presidência do Senado,
208
declarando à imprensa, ainda em 2013,
que o peemedebista deveria abrir mão do cargo para abrir caminho
para alguém que representasse todo o parlamento. Além disso, Aécio
se envolveu em discussões acaloradas com Calheiros durante sessões
206 BRAGA, Isabel; BRESCIANI, Eduardo; SOUZA, André de. Com
manobra de Cunha, Câmara aprova redução de maioridade penal.
O Globo, 1 jul. 2018. Disponível em:
brasil/com-manobra-de-cunha-camara-aprova-reducao-da-maiorida-
de-penal-16623458>. Acesso em: 11 fev. 2019.
207 GÓIS, Fábio. Temer admite que Cunha só autorizou impeachment
porque petistas não o apoiaram na Câmara. Congresso em Foco (UOL),
16 abr. 2017. Disponível em: -
pecial/noticias/temer-admite-que-cunha-so-autorizou-impeachment-por-
que-petistas-nao-o-apoiaram-na-camara/>. Acesso em: 11 fev. 2019.
208 AGÊNCIA ESTADO. Aécio Neves sugere que Renan Calheiros desista
de presidir Senado. Gazeta do Povo, 28 jan. 2013. Disponível em: -
tps://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/aecio-neves-sugere-que-re-
nan-calheiros-desista-de-presidir-senado-27wzkdishuotbuy6oo4rz0ft8/>.
Acesso em: 11 fev. 2019.
201
O SUPREMO E O PROCESSO ELEITORAL
do Senado.
209
Nada disso impediu, no entanto, que o mesmo Renan
Calheiros, enquanto presidente do Senado, criticasse a decisão do
STF que havia afastado Aécio de seu mandato de senador.210
O presidente do Senado brasileiro pode reunir características dos
quatro diferentes tipos de presidentes indicados. Contudo, o presi-
dente eleito não sabe quais colegas o escolheram. Ou, no lado mais
importante da moeda, o escolhido não pode responsabilizar pesso-
almente aqueles membros que não o escolheram. Isso encoraja o
desenvolvimento de uma presidência em um papel de representante
do parlamento.
Imagine o cenário em que o presidente é eleito com 50 votos, con-
tra 31 do segundo colocado. Em um cenário de votação secreta, a
informação ocial que o escolhido terá é a de que não conta com 1/3
dos votos de seus colegas, o que possivelmente levará a uma atuação
prudente e guiada aos interesses da casa que representa. Por outro
lado, se a votação aberta for aplicável no mesmo exemplo hipotético,
um escolhido com muitos poderes poderá utilizá-los para boicotar
aqueles que não contribuíram para sua eleição. Isso pode ocorrer ao
não pautar projetos de lei para votação, ao não conceder a palavra
para falar no plenário, ou mesmo para usar o seu poder presidencial de
comandar as sessões legislativas para tratar os derrotados nas eleições
como se fossem inimigos.
Nesse cenário, a decisão de Marco Aurélio poderia ter a reorgani-
zado completamente a lógica de funcionamento do Senado, com
o surgimento de uma radicalização partidária capaz de gerar ainda
mais crises.
Há uma segunda consequência, semelhante à primeira. Porém,
em vez de os membros do Senado carem submetidos ao poderoso
presidente e seu partido, cariam frágeis diante do poder do Presidente
209 JUNGBLUT, Cristiane; LIMA, Maria. Renan e Aécio batem boca
no Senado por causa de escolha de cargos na Mesa Diretora. O
Globo, 4 fev. 2015. Disponível em: -
sil/renan-aecio-batem-boca-no-senado-por-causa-de-escolha-de-car-
gos-na-mesa-diretora-15246812>. Acesso em: 11 fev. 2019.
210 REDAÇÃO. Renan critica decisão do STF de afastar Aécio do mandato.
Senado Notícias, 26 set. 2017. Senado Notícias, 26 set. 2017. Disponível
em: -
nan-critica-decisao-do-stf-de-afastar-aecio-do-mandato>. Acesso em:
11 fev. 2019.
202
O SUPREMO E O PROCESSO ELEITORAL
da República. No Brasil, desde a redemocratização se aponta que
a relação entre Executivo e Legislativo se pauta por um modelo
de presidencialismo de coalizão. Nesse sistema, o Presidente da
República, para fazer avançar sua agenda, necessita do apoio de uma
quantidade signicativa de aliados no parlamento. Esse apoio é cons-
truído de diversas formas diferentes, com a distribuição de cargos, de
distribuição de orçamento, ou mesmo através da imposição de certos
constrangimentos, como o troca-troca de membros nas comissões e
a pressão pública para aprovação de certas medidas.
Apesar de ser quase sempre apontado como um mecanismo que, se
bem gerido, favorece o protagonismo do Executivo no processo legis-
lativo e leva a uma centralidade decisória na gura do Presidente da
República, fato é que o Legislativo conserva para si inúmeros poderes.
Pode jogar duro no momento da aprovação de certas medidas, para
que a equação de poderes, aançada na coalização, seja reequilibrada.
Nos últimos anos tivemos alguns exemplos importantes da força do
Legislativo em relação aos outros poderes, como o impeachment da
presidente Dilma, a não votação da reforma da previdência,
211
ou mes-
mo o não cumprimento de decisão do Supremo Tribunal Federal.212
Contudo, ao determinar a votação aberta para escolha do presiden-
te do Senado, o Ministro Marco Aurélio concede a Bolsonaro um
grande poder em um momento decisivo. Notícias dão conta de que
o partido do Presidente da República lançará candidato próprio na
disputa do Senado.
213
Caso isso ocorra, Bolsonaro poderá fazer uso
211 SADI, Andréia. Maia admite que Previdência pode não ser votada
semana que vem: ‘ainda não há votos’. G1, 30 nov. 2017. Disponível
em:
maia-admite-que-previdencia-pode-nao-ser-votada-semana-que-vem-ain-
da-nao-ha-votos.ghtml>. Acesso em: 11 fev. 2019.
212 GARCIA, Gustavo; RAMALHO, Renan. Senado decide descumprir
liminar para afastar Renan e aguardar plenário do STF. G1, 6 dez.
2016. Disponível em: -
do-decide-nao-cumprir-liminar-e-aguardar-decisao-do-plenario-do-stf.
ghtml>. Acesso em: 11 fev. 2019.
213 CALGARO, Fernando. PSL lança pré-candidatura de Major Olimpio
à Presidência do Senado. G1, 3 jan. 2019. Disponível em:
g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/03/psl-lanca-pre-candidatu-
ra-de-major-olimpio-a-presidencia-do-senado.ghtml>. Acesso em: 11
fev. 2019.
203
O SUPREMO E O PROCESSO ELEITORAL
de um constrangimento público para punir aqueles parlamentares
que não escolherem o candidato por ele apoiado. Esse não é um risco
hipotético no caso de Bolsonaro, que já vem se manifestando dentro
de uma lógica de ataque ao que identica como o establishment da
política “velha” no Congresso.
Em um cenário de votação secreta, o Presidente da República
apoia um candidato, que pode vencer ou não as eleições, mas nunca
saberá quem de fato seguiu sua linha na votação. Caso a votação seja
aberta, no entanto, o Presidente da República pode antecipadamente
declarar que o senador que não votar em seu candidato não deseja o
melhor para o país – um tipo de declaração que faria bastante sentido
dentro da retórica política de Bolsonaro. Ao fazer isso, Bolsonaro
criaria custos para os parlamentares votarem no sentido contrário,
para que não quem privados do apoio orçamentário e político do
governo para satisfazer sua base eleitoral.
A votação aberta, portanto, abre caminho para uma rígida inu-
ência do Executivo sobre o Senado Federal, minando a capacidade
de resistência e barganha do Senado e de seus membros diante do
Presidente da República.
Em tese, ninguém afasta a importância da transparência no fun-
cionamento do Estado. Mas há outros valores relevantes em jogo, e
promover cegamente transparência neste caso pode acabar fortale-
cendo demais o Poder Executivo. O destino do arranjo de separação
de poderes não deveria jamais ser decidido pelo Supremo – muito
menos em uma decisão monocrática – com base em uma interpre-
tação unilateral e abstrata de uma ideia de transparência.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT