Who wants to be Madame Sata? Race and Sexuality in the legal medical discourse in the first half of the XXth Century/Quem quer ser Madame Sata? Raca e Homossexualidade no Discurso Medico Legal da Primeira Metade do Seculo XX.

AutorPiza, Evandro

Introducao

Nao se sabe se Madame Sata e figura dos palcos ou dos bastidores. Na verdade, Joao Francisco tornou-se muitos. Quando o longa-metragem Madame Sata (2002) de Karim Ainouz foi lancado, logo dividiu opinioes, sendo aplaudido e vaiado. Exibido no Festival de Cannes, provocou a insatisfacao de alguns criticos que se levantaram da sala de cinema nas cenas de sexo homossexual (1).

O filme e uma biografia de Joao Francisco dos Santos, personalidade fez parte do universo da regiao da Lapa no Rio de Janeiro, cujo auge se da durante os anos da decada de 1930 retratados no longa. Nascido em 25 de fevereiro de 1900 na cidade de Gloria do Goita, em Pernambuco, em uma familia de 17 irmaos, perdeu o pai quando ainda tinha 7 anos. Sua mae o troca por uma egua com um negociante de cavalos, mas Joao consegue fugir para o Rio de Janeiro com a promessa de trabalho em uma pensao que seria aberta. Nao experimenta grandes mudancas; a dura jornada de trabalho continuava a ocupar todo o seu dia com a diferenca de que agora, em vez de cuidar de cavalos, era responsavel por limpar a cozinha, fazer compras e carregar marmitas (2).

Aos treze anos, passa a viver nas ruas da Lapa, dormindo nas escadarias das casas de aluguel. Sua iniciacao sexual ocorreu nessa epoca. No periodo, o Rio de Janeiro passava por reformas e o bairro ja se caracterizava como zona boemia, reunindo todo o universo de tipos sociais e relacoes em que Joao Francisco se inseriria. Quando completa 18 anos, inicia um trabalho de garcom na Pensao Lapa, um bordel localizado na referida regiao. Era comum as proprietarias contratarem jovens homossexuais que poderiam atuar inclusive como prostitutos. (3)

O filme apresenta um Joao Francisco (Lazaro Ramos) em que Madame Sata ja surge como possibilidade. Numa das primeiras cenas ele observa o espetaculo de um bordel atras de uma cortina de pedrarias e a imagem de Joao e sobreposta a da cantora, paulatinamente Joao transforma a cancao, virando o protagonista de sua recriacao. O espectador e apresentado tambem a Tabu (Flavio Bauraqui) e Laurita (Marcelia Cartaxo), que com ele viviam e para quem deveriam pagar uma parte do dinheiro ganho na prostituicao, alem de Renatinho (Fellipe Marques) o par afetivo de Joao. O ambiente mais comum e o bar de Amador (Emiliano Queiroz), onde Joao fara suas apresentacoes vestido de mulher, sem fazer uso do apelido que o imortalizou--cuja historia e por si so controversa. O epiteto teria sido atribuido por um policial que, fazendo referencia a um filme americano de titulo Madame Sata, reconheceu Joao Francisco na delegacia em funcao de uma fantasia usada no carnaval daquele ano.

Sistema Penal no Brasil: para compreender a racializacao punitiva

Madame Sata, como personagem, sugere as contradicoes enfrentadas por um contingente de parias sociais que formaram a clientela do sistema penal no periodo republicano. Retrata como a violencia individual, institucional e estrutural condicionaram os projetos de vida pos-abolicao. Dentro das multiplas possibilidades, convem questionar o modo como a violencia institucional foi capaz de produzir formas sutis e explicitas de violencia racial na cidade do Rio de Janeiro.

As relacoes entre raca e espaco urbano foram estruturantes da cidadania no Brasil. A apropriacao privada do espaco publico tem paralelo na apropriacao do Estado por parte da classe senhorial e na apropriacao dos corpos e dos saberes tradicionais do sistema escravocrata. Ha, desde as primeiras decadas do seculo XIX, uma relacao entre as lutas sociais de negros escravizados e libertos contra o regime escravista e os projetos de ordenacao da cidade. Principalmente na entao capital do pais, a ordem, elemento ideologicamente estruturante de um mundo que se supoe ameacado pela desordem (4), sera fundada em um entrecruzamento da autoridade medicosanitaria e policial. Esta tendencia se reforca nas primeiras decadas da Republica brasileira, em que um projeto simultaneamente modernizador e conservador e assumido como politica de Estado. (5)

Para Madame Sata, o Estado que se pretende moderno e o mesmo Estado-Feitor, arcaico, que se vale do pau-de-arara e da caca de foragidos, regulando as relacoes de trabalho informal a favor dos proprietarios ou limitando as formas populares de expressao cultural (6). Em sua face cientificoburocratica, cumpre seu papel valendo-se do discurso criminologico para classificar infratores, construir as percepcoes judiciais quanto a culpabilidade e demarcar a anormalidade com base na raca e na orientacao sexual (7). Todavia, esse hibrido, o Estado repressor de Madame Sata, nao e uma estrutura a ser definida como um projeto incompleto, um simulacro do Estado europeu moderno. Tampouco se caracteriza pela sua originalidade, como se fosse uma peculiar anomalia historica. As instituicoes que cruzam o caminho de Madame Sata devem ser compreendidas pela sua singularidade enquanto produto e produtoras das relacoes concretas de poder vivenciadas no Brasil.

A formacao do moderno controle do delito (8), com a passagem de formas espetaculares para formas disciplinares de punicao (9) e a emergencia da prisao como reguladora da mao-de-obra (10), ocorreu de modo diferenciado no Brasil. No curso do seculo XIX, o pais ainda estava sob o regime escravista, do qual as instituicoes publicas herdaram as praticas de controle social na transicao para o seculo XX. Ao contrario do que ocorreu na Europa, a virada do seculo nao colocou a prisao no centro do sistema penal no Brasil (11).

Ao inves disso, como destacou Raul ZAFFARONI o controle social na America Latina apresenta diferencas significativas, se comparado com o cenario europeu ocidental: o sistema penal na regiao e formado por diferentes agencias quase autonomas, competindo entre si (12,13); ha um sistema penal paralelo, com menor poder normativo, mas que possui maior arbitrariedade institucionalmente (14); no sistema penal, seus integrantes, ou alguns deles, mantem um controle social punitivo para-institucional ou subterraneo (15), mediante condutas nao institucionais, ilicitas, porem que sao regulares em termos estatisticos (16). Do ponto de vista ideologico, ha saberes institucionalmente admitidos, como a medicina legal, psiquiatria forense, clinica criminologica, etc; e outros nao admitidos, mas que ainda assim subsistem, como as tecnicas de tortura e assassinato ou de desaparecimento.

Na America Latina, o controle social foi produto da transculturacao protagonizada pela revolucao mercantil e industrial, as quais transformaram o sistema penal no que ZAFFARONI descreveu como genocidio em ato (17). Se inicialmente a colonia foi organizada de modo semelhante as instituicoes de sequestro, no neocolonialismo o controle social sera atualizado a partir das teorias racistas (18). Dessa forma:

[...] o verdadeiro modelo ideologico para o controle social periferico ou marginal nao foi o de Bentham, mas o de Cesare Lombroso. Este modelo ideologico partia da premissa de inferioridade biologica tanto dos delinquentes centrais como da totalidade das populacoes colonizadas, considerando, de modo analogo, biologicamente inferiores, tanto os moradores das instituicoes de sequestro centrais (carcere, manicomios), como os habitantes originarios das imensas instituicoes de sequestro coloniais (sociedades incorporadas ao processo de atualizacao historica) (19). Madame Sata esteve sujeito tanto ao sistema penal subterraneo e seus saberes nao academicos, moldado para o controle dos ex-escravos, quanto ao saber cientifico da clinica criminologica, que buscava descrever as personalidades criminosas em termos de individualizacao do pertencimento racial e sua proximidade com os grupos negro e indigena. Essa aparente ambiguidade reflete a dupla face do processo de racionalizacao das praticas punitivas, marcado no Brasil pela passagem da ordem escravista para o capitalismo dependente e, com ela, pela transformacao do direito e das estruturas repressivas. O resultado dessa passagem nao foi uma transformacao radical dessas estruturas, mas a preservacao de caracteristicas da ordem antiga na nova (20). Neste contexto, por exemplo, a adaptacao de discursos cientificos e legislativos estrangeiros teve uma funcao paradoxal, servindo em muitos casos para justificar a reproducao de praticas tradicionais, ao inves de produzir novos padroes de organizacao (21). Como constatou MOURA: "O Brasil arcaico preservou seus instrumentos de dominacao, prestigio e exploracao, e o moderno foi absorvido pelas forcas dinamicas do imperialismo, que tambem antecederam a Abolicao na sua estrategia de dominacao" (22).

Porem, essa continuidade e ruptura de praticas de controle racializadas foram sistematicamente ocultadas pelos discursos hegemonicos da intelectualidade brasileira. As dificuldades criadas para se compreender o racismo das praticas de controle social se iniciam nas premissas teoricas. A definicao de racismo esta limitada, no senso comum, por uma referencia a normas que proibam acoes individuais. Por sua vez, o cientificismo positivista, ao buscar a reducao da complexidade do social a partir da linguagem e projetar nesse reducionismo o metodo privilegiado para a producao de conhecimento, esta pouco preparado para compreensao das dimensoes multiplas de um fenomeno onde o material e o simbolico estao entrelacados. Nos termos do raciocinio positivista, o fenomeno social deveria ser isolado, testado e medido, assim como o sao os fenomenos fisicos. De igual modo, o dualismo que cinde discurso e realidade intenta colocar a raca como mero fenomeno ideologico, secundario em face de uma suposta realidade pura da escravidao. Pior ainda, esse dualismo supoe que o racismo e fruto apenas da ciencia do final do seculo XVIII, cronologicamente posterior, portanto, ao surgimento da escravidao.

Entretanto, e necessario enfrentar alguns desses problemas que limitam e constituem os sonhos de personagens como Madame Sata: a) O racismo nao pode ser reduzido as concepcoes cientificas...

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