A zona do não-ser do direito internacional: os povos negros e a revolução haitiana

AutorKarine de Souza Silva - Luiza Lazzaron Noronha Perotto
CargoUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Programas de Pós-Graduação em Relações Intenacionais e em Direito da UFSC, Florianópolis, SC, Brasil. (Doutora em Direito) - Pierre Mendes France Université Grenoble-Alpes (UGA), França. (Mestre em Direito)
Páginas125-153
Sumário: Considerações iniciais. 1 Ressignicando e
visibilizando a Revolução Haitiana. 2 O Haiti entre a guerra
e o ocaso. 3 O Haiti, as historiograas não contadas e as
subjetividades omitidas pelo Direito Internacional Público.
Considerações nais. Referências.
Resumo: O objetivo deste artigo é defender a necessidade
de incluir o estudo da Revolução Haitiana na esfera do
Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esta pesquisa
é original porque demonstra, por meio do método do estudo
de caso e da utilização das epistemologias pós-coloniais e
decoloniais, que os povos negros têm sido vítimas de um
embargo político, historiográco e epistêmico por parte
do Direito Internacional Público (DIP), fato que favorece
a continuidade do racismo epistemológico e praxeológico
que exclui esses coletivos dos mecanismos de produção de
conhecimento e os destitui de capacidade de agência nas
estruturas de saber e poder. Em última instância, arma-
se que as subjetividades negras têm sido condenadas à
zona do “não-ser” pelo mainstream do DIP, que se encontra
totalmente acomodado aos arranjos imperialistas que
invisibilizam e desqualicam as narrativas e subjetividades
dos povos não-brancos e não-ocidentais.
Palavras-chave: Revolução haitiana. Povos negros.
Racismo epistemológico. Direito Internacional Público.
Abstract: This article aims to defend the need of inclusion
of the study of the Haitian Revolution in the sphere of
International Human Rights Law. The originality of this
research relies on its study case methodology, by using
Post-colonial and Decolonial approaches to show the
historical marginalization of black peoples as victims of a
political, historical and epistemological denial played by the
Public International Law. This favours the continuity of an
epistemic and praxeological violence, excluding this group
from knowledge production and undermining their agency
on the world-system power structure. Lastly, it is argued that
black subjectivity has been condemned to live in the zone
of non-being by the Public International Law mainstream.
The Public International Law will be shown as rearranged
I Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC),
Programas de Pós-
Graduação em Relações
Intenacionais e em Direito
da UFSC, Florianópolis,
SC, Brasil. (Doutora em
Direito). E-mail: karine.
silva@ufsc.br
II Pierre Mendes France
Université Grenoble-Alpes
(UGA), França. (Mestre
em Direito). E-mail:
luizalnoronha@gmail.com
A ZONA DO NÃO-SER DO DIREITO INTERNACIONAL:
OS POVOS NEGROS E A REVOLUÇÃO HAITIANA*1
THE ZONE OF NON-BEING OF INTERNATIONAL LAW: BLACK
PEOPLES AND THE HAITIAN REVOLUTION
Karine de Souza SilvaI
Luiza Lazzaron Noronha PerottoII
*1 Esta pesquisa foi nanciada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíco e
Tecnológico (CNPq).
126 | Revista Direito e Justiça: Reexões Sociojurídicas
Santo Ângelo | v. 18 | n. 32 | p. 125-153 | set./dez. 2018 | DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v18i32.2838
under imperialistic desires and aspirations, promoting an
epistemic violence by disqualifying and making invisible the
narratives and the subjectivity coming from non-Western
and non-white peoples.
Keywords: Haitian Revolution. Black peoples.
Epistemological racism. Public International Law.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Haiti, país que no presente lidera o ranking dos mais pobres
do Ocidente, já foi a colônia mais próspera do mundo durante o período
colonial. Até o início do século XIX, a denominada ilha de Saint Domingue
era conhecida como “Pérola das Antilhas”, já que sozinha era responsável
pelo fornecimento de cerca de 75% do açúcar e 60% do café consumidos
na Europa.
Entretanto, a gloriosa reputação e o colossal nível de produtividade
da colônia francesa foram estabelecidos à custa do sistema de escravidão
mais perverso já visto. Mesmo para os padrões dos colonialismos
sangrentos da época, as brutalidades cometidas pelos franceses contra os
negros escravizados em Saint Domingue eram aterrorizantes.
Diante da barbárie generalizada produzida pelos paladinos do
Iluminismo, a partir da década de 1790 os movimentos de resistência das
populações subjugadas se intensicaram e expandiram as reivindicações
por direitos de igualdade e liberdade. Assim, deu-se início à Revolução
Haitiana, considerada a revolta de escravizados mais bem-sucedida do
mundo, que derrotou o exército napoleônico – o maior e mais temido
exército da época – conquistou a independência, instituiu a primeira
república negra e o primeiro Estado moderno fundado e governado por
negros.
Como resposta, a França, amparada pelas demais potências
colonizadoras, iniciou um processo de asxiamento da sua ex-colônia e
impôs ao Haiti o pagamento de uma indenização leonina pelas “perdas”
que os colonizadores tiveram com a Revolução e a independência, como
condição sine qua non para o reconhecimento diplomático do novo Estado
e para o restabelecimento das relações políticas e econômicas. O chamado
“Débito da Independência” foi pago pelo Haiti durante mais de cem
anos, quitado somente em 1947 – momento em que já se discutiam as
reparações devidas às vítimas do Holocausto da Alemanha nazista.
Diante dos fatos que comprovaram o enriquecimento ilícito da França,
em 2003, o então presidente do Haiti, Jean Bertrand Aristide, reivindicou
abertamente a restituição dos valores pagos a título de indenização aos
franceses, estimando a quantia atualizada em mais de US$ 21 bilhões.

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